Elsa Ayala Castro tinha 89 anos. Seu marido e companheiro por toda uma vida, Jorge Oliveras Castro, era cinco anos mais novo, tinha 84. Os dois viveram juntos por longos 55 anos. Se conheceram quando Elsa trabalhava na parte administrativa de um hipódromo em Santiago, capital do Chile. Jorge era taxista, e constantemente aparecia no local. Em 1963 eles se casaram, alugaram uma casa perto da gigantesca Avenida Independência.
Não tiveram filhos. Elsa havia perdido um bebê durante uma gestação, e não gostava de recordar o fato, assim como não dava detalhes sobre o ocorrido e raramente falava no tema. Jorge, por sua vez, era como uma pedra quando esse era o assunto. Nunca tocou no assunto.
Jorge e Elsa viviam só, sem filhos e sem contato próximo com o resto da família, poucos sobrinhos iam visitá-los. Apesar disso, tinham riso fácil e demonstravam um enorme companheiros e cuidado um com o outro.
Os últimos anos foram difíceis para o casal. Elsa ficou dois anos doente, um câncer na coluna na idade avançada é algo extremamente difícil de lidar, somado a isso vieram diversas varizes nas pernas. Apesar disso Jorge tentava sorrir na medida do possível, e como o mesmo dizia para as enfermeiras buscava se apresentar elegante para a esposa com suas diversas camisas polos, maioria listradas, onde a cor branca era predominante no guarda roupa.
Nos últimos meses a situação havia de Elsa havia piorado e apresentado uma primeira etapa de demência senil. Os calmantes receitados pelos médicos não faziam efeito, e Elsa sofria com diversos ataques de dor. Jorge enfrentava há alguns anos uma hérnia lombar, que piorava por conta das noites sem dormir que passava cuidando de sua esposa.
Após anos, eles estavam doentes, cansados e sozinhos.
Elsa então iria ser internada em um asilo, lá se esperava que ela melhorasse com o atendimento e cuidado médico necessário. Mas aí se apresentou um problema. O casal não tinha dinheiro suficiente para pagar os meses que Elsa ficaria internada.
Jorge acreditava que juntando toda a aposentadoria dos dois seria possível, mas estava enganado. Dessa forma começou a vender os bens do casal e colocou a própria casa, que adquiriram e moraram durante muitas décadas, à venda.
Sem casa, sem dinheiro e com ambos sem apresentar melhoras, eles tomaram uma decisão drástica. O casal resolveu se suicidar. Fisicamente cansados, e humilhados pelo sistema financeiro chileno, essa foi a única alternativa encontrada para superar e acabar de vez com a dor.
Partiram juntos, lado a lado. Da mesma forma que viveram a maior parte de suas vidas.
Denisse, a enfermeira de Elsa, contou para os jornais chilenos que Jorge estava muito sensível naquela manhã. Convidou-a para tomar o café com eles, e Jorge contava sobre como ele e Elsa haviam se conhecido, histórias que viveram nas ruas daquela diferente Santiago dos anos 1950, a cidade que é docilmente beijada pela cordilheira dos Andes, e da dificuldade do tempo presente.
A tarde, quando estavam no quarto, Jorge tomou seu revólver Smith and Wesson de calibre 38, e atirou do lado esquerdo do rosto de sua esposa, entre a orelha e o olho de Elsa. Segundos depois, todos na casa de asilo ouviram outro disparo no instante que Jorge disparou novamente sua arma e se suicidou.
É inimaginável os últimos minutos dos dois juntos no quarto, assim como o que se passou na cabeça de Jorge, nos segundos que separam entre os dois tiros.
O caso de Jorge e Elsa, acontecido em julho passado, chocou o Chile, mas não foi um caso isolado. O número de idosos que cometem suicídio no país é altíssimo e muitos o fazem por conta da falta de aposentadoria.
O número recorde em suicídios de idosos
Entre 2010 e 2015, 936 adultos maiores de 70 anos tiraram suas vidas no Chile. O levantamento foi feito pelo Ministério de Saúde do país em conjunto com o Instituto Nacional de Estatísticas. Eles apontaram que com a população maior de 80 anos, as taxas de suicídio são as maiores do país, com 17,7 a cada 100 mil habitantes. A faixa etária com idade entre 70-79, vem em segundo lugar, com uma taxa de 15,4. Os números apresentados são muito superiores à média nacional, que é de 10,2. Ainda de acordo com o Ministério da Saúde, a taxa de suicídio entre a população idosa é a maior de toda a América Latina.
O sistema de Previdência social foi reformado no Chile durante a década de 1980, em plena ditadura militar de Augusto Pinochet. O Fundo Monetário Internacional (FMI) aponta o modelo de privatização da previdência chilena como um modelo e exemplo a ser seguido. Mas enquanto o FMI, os bancos e o mercado financeiro vê com bons olhos o resultado da reforma chilena, a realidade, 40 anos depois de feita a reforma, para a população do país em especial para os idosos é bem diferente. É de dor, exclusão social, e crise de tamanha força que os índices de suicídio falam por si só. Os idosos do país não tem condições de se manter.
O baixo valor das aposentadorias é alarmante, 90,9% dos aposentados chilenos recebem menos do salário mínimo. Os dados divulgados pela Fundação Sol apontam que em média estes 90% recebe, 149.435 pesos, o que daria cerca de R$ 694,00. O salário mínimo no país é de 264 mil pesos, que dariam R$ 1,226,00.
Isso mostra que os aposentados chilenos recebem um valor mísero, menor que meio salário, um verdadeiro descaso que tem gerado essa enorme quantidade de pessoas se suicidando. É a face mais triste e cruel do neoliberalismo, as pessoas tirando suas próprias vidas porque não têm mais condições de minimamente sobreviver.
A reforma da Previdência chilena
O Chile viveu entre 1973 e 1990 uma das mais assassinas e sangrentas ditaduras militares do nosso continente. Os anos em que o general Augusto Pinochet governaram foram anos nebulosos para os chilenos. Mais de 200 mil pessoas exiladas, e o número de assassinados pelo regime militar chegaram aos milhares – o relatório da verdade do país aponta que podem ter sido mais de 40 mil.
O sangrento regime militar deixou heranças que sobrevivem até hoje no Chile, entre estas o modelo atual de previdência. Não foi por acaso que o primeiro país do mundo que privatizou sua previdência social tenha sido o país andino, em 1981. O neoliberalismo, suas contrarreformas e a ditadura do capital financeiro, tem mais em comum com os regimes autoritários e militares do que reza a vã filosofia dos think tanks liberais.
Uma contrarreforma tão destrutiva, impopular, polêmica e anti-povo, como a feita na previdência chilena, só poderia acontecer em um país controlado pelas mãos de ferro e pelos tanques dos militares.
O modelo chileno abandonou aquele que é o modelo feito hoje no Brasil, o regime de repartição, e passou a adotar um regime de capitalização, o mesmo que buscam Paulo Guedes e Bolsonaro. Foi colocado em prática algo que até então não existia em lugar nenhum do mundo, somente nos livros de economia liberal. Daí em diante cada trabalhador faria a própria poupança, que seria depositada em uma conta individual, ao invés de ir para um fundo coletivo administrado pela União. Enquanto fica guardado, o dinheiro dos trabalhadores passa a ser administrados por empresas privadas, que utilizam o dinheiro dos fundos individuais para investir no mercado financeiro. Eis a mágica da privatização.
Hoje, todos os trabalhadores chilenos depositam 10% de seu salário por um mínimo de 20 anos para se aposentar. Caso o trabalhador tenha passado por uma crise financeira, uma emergência, tenha que escolher entre comer e pagar aluguel ou depositar estes 10% mensais, ou tenha passado um tempo desempregado, o Estado não tem nada haver com isso, e este trabalhador ficará sem aposentadoria.
Foi José Piñera que organizou a privatização da previdência, após ler as ideias do norte-americano Milton Friedman, de diminuir o tamanho do Estado privatizando serviços e empresas públicas.
Piñera e outros economistas vindos da Escola de Chicago, os Chicago Boys, fizeram do Chile um grande laboratório para as reformas neoliberais, retirada de direitos trabalhistas e privatizações. Um dos meninos de Chicago que passou por este laboratório tenebroso foi Paulo Guedes.
O guru econômico de Jair Bolsonaro, trabalhou como pesquisador acadêmico na Faculdade de Economia e Negócios da Universidade do Chile, a convite de Jorge Selume Zaror, ex diretor de Orçamento do regime de Pinochet. Desta forma, vemos que não é de hoje que Guedes tem uma queda por generais fardados.
A reforma na previdência chilena tem causado mais incômodo do que solução, hoje existem movimentos para reestatizar a previdência no país (No MAS AFP´s) e as ruas de Santiago e outras cidades assistem quase todo ano manifestações contra o atual modelo de previdência. A própria ex-presidente chilena, Michelle Bachelet, chegou a afirmar quando ocupava o Palácio de La Moneda, que a situação da previdência do país era insustentável.
As mudanças implementadas em 1981, foram tiradas de livros de economias liberal, e já mostraram que na realidade ela só dá certo para um setor da sociedade: os banqueiros e os donos dos fundos de pensão. Caso você não seja um destes dois, possivelmente você vai sofrer com o modelo de previdência privado.
Atualmente no Chile existem seis empresas administradoras dos fundos de pensão, às AFP´s. Destas cinco são controladas por empresas multinacionais: Principal Financial Group (EUA), Prudential Financial (EUA), BTG Pactual (BRA), MetLife (EUA) e o Grupo Sura (COL)
Uma pesquisa de 2015, feita pela OCDE (organização para Desenvolvimento e Cooperação Econômica) mostrou que estas cinco empresas juntas cuidam de um capital que acumulados correspondiam a 69,6% de todo PIB chileno na época. São 170 bilhões de dólares aplicados no mercado financeiro e nas bolsas de valores de Londres e de Frankfurt.
A burguesia brasileira e internacional, busca aprovar uma reforma da previdência que faz parte de todo um pacote de ajuste fiscal, que envolve privatizações e retirada de direitos, para assim permitir o crescimento da taxa de lucro para as elites e uma feroz extração de mais valia. Essa é a tarefa de governo Bolsonaro.
O dinheiro que será “poupado” da previdência irá para pagar os bancos por meio do juros da dívida pública, o povo pobre e trabalhador não tem nada a ganhar, o que acontece no Chile é uma mostra disso.
A falta de geração de emprego, a crescente informalidade e a quantidade de precários que fazem parte da classe trabalhadora, fruto das reformas neoliberais, gera a incapacidade de se pagar o valor necessário para a aposentadoria, o que gera uma geração de idosos que vivem com valores que não suficientes para sua sobrevivência.
As medidas neoliberais e privatizantes não geram solução para o povo, somente uma grande bola de neve.
O falido modelo chileno, bom para o mercado, um pesado para os trabalhadores é o exemplo que o governo Bolsonaro quer seguir, para aumentar os lucros da burguesia no nosso país.
O ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, aquele mesmo com nome de chuveiro, afirmou que “o Chile para nós é um exemplo de país que estabeleceu elementos macroeconômicos muito sólidos, que lhe permitiram ser um país completamente diferente de toda a América Latina”.
O exemplo chileno de suicídio em massa realizada por idosos que não tem direito a aposentadoria, de falta de perspectiva para uma juventude que não tem emprego e nem acesso a educação, é o futuro que Onyx, Guedes, Jair e a elite brasileira quer para nosso país.
O futuro que nós queremos é outro, radicalmente diferente. E iremos começar a construí-lo desde já. Iremos defender nosso direito à aposentadoria. Não somente por nós, mas por toda uma geração e pelos que ainda estão por vir.
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