A notícia sobre as alterações nos critérios de avaliação dos livros didáticos chancelada por representantes do atual governo – e seu posterior recuo – no dia de ontem [1], do mesmo modo que tantas outras medidas enunciadas pela gestão recente nas últimas semanas, trata-se de mais um convite àqueles que ainda se colocam enquanto vanguarda do pensamento crítico: ou descemos aos infernos, ou seguiremos semeando ilusões!
A conjuntura política brasileira nos últimos anos exige de nós muito mais do que coragem. É necessário, como já disse Guerreiro Ramos, fazer a descida aos infernos, dominarmos sistematicamente os ângulos nos quais os ingênuos, os equivocados, os conformados, negligenciam ou não percebem. Somente a partir desse exercício o conhecimento poderá ser generoso conosco, de tal modo a possibilitar a construção concreta de uma alternativa à sinfonia do horror que comanda a vida nacional. Nesse sentido, o indubitável para compreendermos determinado aspecto da realidade é distinguir o essencial do secundário.
Diante do debate que está reverberando em relação aos critérios de avaliação dos livros distribuídos através do Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), a tônica da discussão tem sido a não obrigatoriedade das referências bibliográficas no que concerne ao conteúdo organizado no material didático. Todavia, na condição de sociólogo que, entre outros trabalhos, já realizou pesquisa sobre livros didáticos do PNLD, arrisco dizer que concentrar fogos na exigência ou não de referências bibliográficas é enquadrar o problema pelo aspecto secundário, pelo acessório, questão que caracteriza a ingenuidade dominante do campo progressista.
O cerne do problema está para além desse adestramento técnico e formal que aprendemos na academia, caso contrário, serei obrigado a aceitar que as fontes referenciadas que organizam o conteúdo dos livros didáticos, assim como a legislação em vigor que determina os critérios de avaliação do programa, são suficientes para a confecção e circulação de um material didático qualificado no que diz respeito às interpretações sobre o Brasil.
A Educação é um campo fundamental e estratégico na construção de um projeto nacional, de tal maneira que, não seria possível a manutenção do racismo no país – para falarmos do problema de primeira ordem em nossa sociedade – sem uma Educação rigorosamente racista. Se não há revolução sem teoria, tampouco existe racismo sem teoria. Por essa razão, nosso olhar precisa estar atento às narrativas, aos autores e conteúdos que, historicamente, não só fundamentam o material didático destinado aos jovens e adultos da Educação Básica, mas também organizam os currículos nas universidades e formam professores, pesquisadores e militantes.
A partir da pesquisa que realizei para o mestrado em Educação sobre a questão racial nos livros didáticos de Sociologia do PNLD (2015)[2] à luz de referenciais teóricos de dois grandes sociólogos brasileiros – Alberto Guerreiro Ramos e Clóvis Moura – ressalto alguns aspectos que podem contribuir para com esse debate que, a despeito de não ser novo, ganhou visibilidade através da nova gestão governamental.
Em primeiro lugar, embora tenha ocorrido um avanço em torno de políticas de promoção da igualdade racial nas últimas décadas, incluindo a legislação que obriga o ensino de história e cultura africana e afrodescendente nas escolas – artigo 26-A da LDB –, existe um abismo entre organizar conteúdos que discutam essa questão à altura que ela nos exige ou simplesmente cumprir o protocolo.
Não encontrei, durante minha investigação, nenhum livro didático que deixasse de citar adequadamente os cânones da Sociologia que estudaram as relações étnico-raciais no Brasil. Entretanto, esse é o drama: os cânones – majoritariamente homens brancos – são insuficientes para darmos novos sentidos às interpretações sobre nosso povo; a ciência da ordem não tem envergadura para nos oferecer ferramentas pedagógicas o suficiente para planejarmos um outro país, pois está viciada em narrativas eurocêntricas, em métodos e olhares colonizados.
O Brasil precisa ser reinventado, e não há saída para o país enquanto a Educação e as Ciências Sociais não pensarem a nação com o que de melhor foi produzido nos últimos séculos em termos de pensamento crítico brasileiro. Isso nos leva ao segundo aspecto que compartilho da minha análise: a ausência da produção intelectual de autores negros (homens e mulheres) na organização dos conteúdos do livro didático.
O lugar ocupado por intelectuais negros no material didático, de modo geral, ainda é de subalternidade. Os capítulos destinam muitas páginas para a discussão de obras e autores que, apesar de clássicos e comprometidos com o pensamento crítico, seus estudos já perderam atualidade – alguns já saíram ultrapassados na própria época, diga-se de passagem.
É necessário conhecermos, sem dúvida, as contribuições de Gilberto Freyre, Arthur Ramos, Florestan Fernandes, entre outros. Todavia, o tempo dedicado a esses autores não é o mesmo destinado à lucidez intelectual de Guerreiro Ramos, Clóvis Moura, Joel Rufino dos Santos, Virgínia Bicudo, Beatriz Nascimento, Lélia Gonzales, e uma série intelectuais que pensaram o Brasil com originalidade e compromisso social, mas que, por conta da pele preta, ocupam a lista de leituras complementares no material didático ou pequenas citações – isso quando são mencionados.
Sem contar o fato de pensadores estrangeiros como Malcolm X, Luther King, Nelson Mandela são mais destacados, em vários livros didáticos, do que os intelectuais negros que pensaram ao pé do canhão a dinâmica do racismo no Brasil. Devemos superar essa miséria cultural no que concerne às nossas epistemologias, além de realizarmos uma assimilação crítica da produção intelectual e das experiências históricas externas, tarefa que nos exige repensar o ensino brasileiro do nível básico à pós-graduação.
Portanto, considero que a discussão tenha mais fôlego e profundidade diante dos desafios que a história nos apresenta se o enfoque estiver na definição de uma bibliografia de referência para pensarmos o Brasil com rigor teórico e compromisso público com o ensino e a produção de conhecimento do que a exigência ou não de referência bibliográfica num material que pouco pode oferecer aos nossos estudantes sobre eles mesmos.
Afinal de contas, que debates, críticas e tensionamentos estávamos realizando na última década enquanto a correlação de forças estava minimamente a nosso favor? Que papel a militância de esquerda e a intelligentsia brasileira desempenhou no enfrentamento do racismo, problema de primeira ordem no país? Que tipo de formação os revolucionários estavam realizando para compreender o Estado, o Direito, a Economia, o povo e sua própria cultura? A ofensiva neoliberal e os retrocessos que estão vindo à galope não se materializaram a partir da última eleição, assim como o racismo estrutural permaneceu legitimado, entre outras razões, pela falta de uma Educação antirracista como princípio de nossa formação.
E quando falo de antirracismo, não me refiro especificamente aos estudos sobre raça, mas às teorias sociais com alcance para evidenciar que a dinâmica do capitalismo não pode ser compreendida sem estudarmos o racismo. O mesmo vale para questão de gênero e sexualidade, de tal modo que, nós, que manejamos o materialismo histórico enquanto método, corremos o risco de não entendermos todas as determinações do capitalismo se ignorarmos o que se convencionou chamar de “identidades”.
Penso a negritude não como identidade de grupo, mas como categoria, como um devir, um lugar a ser acessado por todos os brasileiros – negros e brancos –, pois, como diria Guerreiro Ramos, negro é povo no Brasil. Se negro é povo, não há como nos compreendermos e nos localizarmos no mundo sem entender a contribuição das pessoas que vieram do continente africano e construíram esse país.
O branco só percebe o militante negro como “identitário” porque constrói sua subjetividade olhando para a Europa. Eis a importância da negritude: descolonizar nossa gente. Não obstante, as contradições inerentes às relações entre todos os povos que constituem o Brasil e que historicamente são submetidos à superexploração demandam a superação da própria negritude e a construção de um projeto nacional revolucionário: o socialismo brasileiro. Mas para tal empreendimento, é necessário descer aos infernos, disputar, no mínimo, o poder de definição do que seria uma “bibliografia clássica” que dialogue com os anseios do nosso povo, ao invés de nos limitarmos a uma crítica sem dentes para morder, sem tocar no essencial.
Organizar a vida pessoal e social a partir do princípio de limites[3], evidenciando a caduquice das instituições burguesas – visto que não há capitalismo sem racismo, nem Direito sem capitalismo[4] – e do pensamento neoliberal no Brasil são, a meu juízo, nossos desafios enquanto cientistas sociais e militantes. Denunciar o desgoverno atual como se o passado recente fosse o melhor dos mundos possíveis em termos culturais e científicos é insuficiente para renovar nossa práxis e transformar a realidade, pois quando a possível ausência de referências bibliográficas causa mais indignação do que a ausência permanente do pensamento negro brasileiro/pensamento crítico latino-americano em nossa formação política e curricular, nossa derrota nas urnas e nas ruas faz bastante sentido.
1 Para mais informações, consultar.
2 Para mais informações, consultar Sociologia em “mangas de camisa”: representação do negro brasileiro nos livros didáticos, 2017, disponível aqui.
3 Sobre a categoria de “princípio de limites”, ver Alberto Guerreiro Ramos. Mito e verdade da revolução brasileira. Zahar: Rio de Janeiro, 1963.
4 Sobre a relação entre teoria geral do Direito e capitalismo, consultar as obras de Sílvio de Almeida e E. Pachukanis.
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