Por Waldo Mermelstein, São Paulo, SP
Sem maiores surpresas, Jeremy Corbyn venceu a disputa contra a direita laborista no dia 24, obtendo 61,8% dos 506 mil votos contra 31,2% dados a seu oponente, Owen Smith. Houve um aumento da diferença em relação aos 59% obtidos no ano passado (com um total de votantes de 422 mil).
Corbyn é um veterano militante da esquerda laborista, sendo parlamentar desde 1983 por seu distrito na Grande Londres. O Labour Party concentra há quase um século o apoio majoritário dos trabalhadores da Grã-Bretanha. Mas é um partido eleitoral em que normalmente há um pequeno número de ativistas militando cotidianamente. Como peculiaridade, os sindicatos, especialmente seus dirigentes, participam organicamente do partido e têm voz ativa na eleição dos parlamentares das instâncias partidárias, inclusive do líder da bancada parlamentar.
A partir dos anos 90, o partido teve uma inflexão à direita com a ascensão do chamado Novo Laborismo encabeçado por Tony Blair, que defendeu e aplicou abertamente o neoliberalismo e colocou, em 2003, o Reino Unido na Guerra do Iraque junto com Bush.
Em 2014, a direita partidária tentou se fortalecer em relação aos sindicalistas dentro do partido e aprovou as recomendações do Relatório Collins sobre a organização interna. Entre outras coisas ele mudava a forma de eleição do líder partidário no Parlamento. Até então, havia um colégio eleitoral composto por um terço de votos dos parlamentares, um terço para os membros dos sindicatos filiados, e o restante era reservado aos membros plenos do partido. Com a mudança, a eleição tornou-se universal entre os aderentes: uma pessoa, um voto. Até a eleição, novos filiados poderiam votar, cadastrando-se pela internet e pagando somente 5 libras (o preço de um chope em Londres). Cento e vinte mil pessoas o fizeram até aquele momento.
Vitória inesperada
Entretanto, o tiro saiu pela culatra. Jeremy Corbyn, da esquerda do partido, o azarão da eleição, ganhou arrasadoramente contra todas as previsões e contra todo o aparato partidário e a grande imprensa.
Os 100 mil novos filiados votaram esmagadoramente por Corbyn (84%). Provinham de uma sociedade exasperada por anos de austeridade sem fim, promovida pelo governo conservador desde 2010 e queriam mudar a liderança passiva ou pró-austeridade do partido.
O programa de Corbyn incluía estímulos estatais ao investimento, resgatar e manter a educação pública e o Sistema Nacional de Saúde, que têm perdido cada vez mais financiamento a partir da crise de 2008 e aplicação dos planos de austeridade. Além disso, propunha a reestatização das ferrovias, uma agenda não intervencionista na política externa, combinada com a não-renovação da frota de submarinos nucleares Trident, sustentáculo do arsenal nuclear britânico.
Uma agenda de reformas que mesmo modesta até em comparação com outros líderes da esquerda laborista como Michael Foot (que, nos anos 80, incluía em seu programa a nacionalização dos bancos). Mas no contexto da brutal austeridade Conservadora, da imensa precarização do trabalho e da diminuição do peso do movimento sindical (mesmo alta comparada com outros países, a sindicalização geral dos trabalhadores caiu de 55% em 1979 para 25% em 2014), surgiu como uma esperança para os trabalhadores.
A reeleição de Corbyn e o contexto britânico
A votação da saída da União Europeia (a chamada “Brexit”) causou uma importante instabilidade política no país, pelas enormes repercussões no status do Reino Unido como principal centro financeiro europeu, o que afeta também a estabilidade do próprio bloco europeu, dada as dimensões econômicas do país.
Ressalte-se que a votação pela saída ocorreu apesar de a maioria da burguesia ter feito campanha frenética pela permanência, inclusive toda a grande imprensa, a começar pela BBC, Financial Times e Guardian.
A direita Conservadora e o partido xenófobo UKIP foram os principais impulsionadores da saída e os que mais se fortaleceram. A esquerda dividiu-se entre os que tentaram dar uma expressão de esquerda ao Brexit, a chamada “Lexit”, ou saída pela esquerda, e os que fizeram campanha por permanecer no bloco europeu, ambos rejeitando as políticas de austeridade e o racismo em relação aos imigrantes.
Uma crise política e sintomas de crise social
O resultado mostrou a existência de um profundo mal-estar social. De forma confusa, reflete também o cansaço e revolta contra os ataques constantes ao nível de vida, às condições de trabalho e aos serviços sociais, nesses seis longos de austeridade patrocinada pelo partido Conservador.
A crise atingiu também os partidos políticos. O primeiro-ministro, David Cameron, que dirigiu o país por 6 anos em sua cruzada pela austeridade e pelos cortes nas verbas sociais, renunciou.
Após o resultado do referendo, a maioria parlamentária do Partido Laborista pronunciou um voto de desconfiança no líder do partido, renunciou aos postos no chamado gabinete paralelo ou sombra que funciona em alguns regimes parlamentaristas, o que obrigou a novas eleições internas para a liderança partidária.
O horror da maioria parlamentar do Partido Laborista a uma mudança de curso na orientação neoliberal adotada nas últimas décadas já tinha sido expressada de forma patética pelo próprio Tony Blair após a eleição de Corbyn em 2015, quando disse: “se seu coração estiver com Corbyn, faça um transplante”.
Para tentar assegurar seu triunfo, a Executiva do partido impugnou a participação daqueles que se filiaram após janeiro deste ano, o que significou que 130 mil novos participantes não puderam votar, além de cerca de 50 mil impedidos de votar por uma cruzada macarthista realizada pela direção partidária.
Um enfrentamento que continuará
O triunfo de Corbyn torna a situação mais tensa no Partido Laborista. Antes como agora, a direita laborista, solidamente implantada no Parlamento, nas câmaras municipais (o Labour possui cerca de 7 mil vereadores), na Executiva Nacional, na burocracia partidária, tudo fez e tudo fará para remover ou fazer capitular Corbyn. Alguns setores avaliam a possibilidade de romperem e formar outro partido mais à direita.
Após sua vitória, Corbyn fez acenos de pacificação com a direita laborista após sua vitória durante a Conferência do Labour que terminou no dia 28. Aparentemente, já reverteu sua oposição à renovação da frota de submarinos Trident e sobre a OTAN, a julgar pelas declarações do ministro de defesa “paralelo” de Corbyn na própria Conferência. Mas a direita laborista não sossegará enquanto não conseguir a capitulação completa e/ou retomar as rédeas do partido.
É interessante observar que essa crise política e mesmo existencial do Reino Unido como parte da União Europeia se dá no momento em as estatísticas mostram que estamos perante os níveis mais baixos da década em termos de conflitos laborais (por exemplo, de 1,4 milhão de horas em greves em 2011, o pico da década, em 2015 houve apenas 170 mil horas não trabalhadas).
Mas pode ser que as mobilizações recentes, como as inéditas paralisações dos médicos em início de carreira (cerca de 55 mil no Sistema Nacional de Saúde) contra a extensão de sua jornada de trabalho, a dos 4 mil trabalhadores dos correios contra fechamento de agências, demissões e mudanças nas aposentadorias ou a marcha de 20 mil pessoas em solidariedade com os refugiados no passado dia 17 de setembro, sinalizem uma reversão desse quadro.
Em outro nível, as inúmeras mobilizações politicas em defesa da candidatura de Corbyn contra a direita laborista podem também ajudar a reforçar o ânimo para enfrentar a cruzada de austeridade que não cessa: o mais recente ataque da nova primeira-ministra Teresa May é a instituição de exames seletivos para crianças de 11 anos entrarem em escolas públicas diferenciadas, condenando a maioria das crianças filhas de trabalhadores a escolas de segunda classe.
Os contínuos ataques feitos pelo governo conservador e o aumento da instabilidade provinda da implementação do Brexit não darão muita margem para a conciliação. E o decisivo será o caminho que adotará o movimento social.
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