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BRASIL

Um mês do incêndio do Museu Nacional: ele vive, nós lutamos

Por Fernanda Castro, do Rio de Janeiro, RJ
Agência Brasil.

Já se passou um mês desde a noite na qual o Museu Nacional sofreu o incêndio que o transformou em ruínas e extinguiu parte fundamental da história e da memória do país. Nesse pouco espaço de tempo, algumas alterações significativas foram propostas para o serviço público, a universidade pública, a memória e a cultura nacionais e poucos recursos foram garantidos.

Uma verba emergencial foi obtida pela UFRJ para a reconstrução do Museu Nacional, em menos de uma semana. O dinheiro que foi cortado e negado por mais de uma década chegou como em um piscar de olhos, demonstrando que ele existe, mas é desviado de sua função, a de manter e preservar o patrimônio público.

Cerca de R$ 8,5 milhões recebidos pelo MEC estão sendo empenhados em obras de contenção e escoramento das paredes e fachada do museu. Mas os R$ 21 milhões que o Museu receberia do BNDES a partir de outubro, por meio de acordo assinado três meses antes do incêndio, não chegaram.

Um monumento ao descaso

Apenas dentro de duas ou três semanas será possível que equipes de arqueólogos entrem no Museu para tentar recuperar parte do acervo em segurança. Mas já circulam notícias de que o governo não quer deixar que os próprios servidores, que conhecem e sempre zelaram pelo acervo, sejam os responsáveis por essa busca. A máquina do mercado tem que girar e empresas privadas já estariam sendo contatadas para esse fim.

Como o acervo perdido é irreparável e insubstituível, alguns sugerem que sejam conservadas as ruínas do Museu, como um monumento ao descaso de à irresponsabilidade de sucessivos governos com a história e memória nacionais.

Outros, como o prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, sugeriram um novo museu, tecnológico e cheio de réplicas, como se cópias impressas com alta tecnologia pudessem substituir os vestígios do passado, o acúmulo científico e as relações de afeto perdidos com o fogo.

Medidas Provisórias

O incêndio que chocou os brasileiros e o mundo tem sido usado de pretexto para ataques às áreas da educação e cultura e para o agravamento do desmonte do serviço público, por parte do governo ilegítimo de Michel Temer.

Imediatamente, o governo reuniu-se com empresários e banqueiros sobre a reconstrução do Museu Nacional. E o mercado respondeu: com esse reitor de esquerda, que luta pela universidade pública e gratuita, não haveria conversa ou financiamento. O governo chegou a dizer que havia a possibilidade de retirar o Museu Nacional da UFRJ. Mas a notícia não caiu bem e o governo voltou atrás.

A saída foi apostar na privatização da gestão e do financiamento. Em 10 de setembro, assinou duas Medidas Provisórias. A MP 850 autoriza o Poder Executivo a instituir a Agência Brasileira de Museus – instituição privada no modelo de serviço social autônomo – e a extinguir, automaticamente, o Instituto Brasileiro de Museus – instituição pública, autarquia da administração indireta. Além de deixar a cargo da nova instituição privada a ser criada a gerência da reconstrução do Museu Nacional. A MP 851 autoriza o governo a firmar contratos com organizações gestoras dos Fundos Patrimoniais, fundos de financiamento privado do serviço público.

Ministro viu no incêndio uma “janela de oportunidades”

No dia 11 de setembro, dia seguinte das Medidas Provisórias, o ministro Sérgio Sá Leitão fez uma reunião com servidores do Instituto Brasileiro de Museus, para prestar esclarecimentos.

Sem demonstrar o menor interesse no diálogo, Sá Leitão chegou cerca de duas horas atrasado, não garantiu a transmissão para os museus vinculados ao Ibram, que situam-se fora de Brasília, o que só foi garantido pelos próprios servidores, que transmitiram de seus celulares.

A reunião resumiu-se a uma apresentação propagandística do conteúdo da MP 850. Na ocasião, o ministro afirmou que o incêndio do Museu Nacional foi “uma janela de oportunidades” aberta para a administração dos museus do Brasil.

Sem ter tido tempo de estudar ou mesmo entrar em contato com o texto das MPs, os profissionais do Ibram dedicaram-se a tentar esclarecer dúvidas e apontar contradições, e fizeram a leitura de uma carta de repúdio às MPs, assinada pelo conjunto dos servidores.

Os servidores questionaram o ministro sobre a falta de consulta aos especialistas da área, em especial após a criação, por meio da Portaria nº 411 de 24 de novembro de 2017, de um Grupo de Trabalho “constituído para realizar estudos preliminares sobre modelos alternativos de gestão para os Museus vinculados ao Instituto Brasileiro de Museus”.

Encenando intenção de diálogo, participou de uma reunião do Conselho Consultivo do Patrimônio Museológico, uma das instâncias de participação da sociedade civil ignoradas por quem formulou as MPs. Como propaganda, o ministério afirma ter aberto diálogo com a área museal. Mas na verdade o governo não encontrou nenhum apoiador no Conselho. Entre falas indignadas e emocionadas dos conselheiros, uma representante da sociedade civil, professora do curso de Museologia da UFBA, chegou a passar mal e teve de ser hospitalizada.

O futuro dos museus em disputa

O projeto de reconstrução do Museu Nacional e de sobrevivência dos museus públicos ainda está em disputa. Muitos eventos e manifestações têm sido feitos em defesa do Museu Nacional e dos Museus públicos. A Seção de Assistência ao Ensino (SAE), que é o setor educativo do Museu Nacional, por exemplo, está todos os domingos na Quinta da Boa Vista, realizando atividades educativas e recebendo o público do museu, que se solidariza e presta homenagens.

Mas o desgoverno Temer não contava com a capilaridade do Ibram na sociedade e do poder que suas instituições têm diante da comunidade museal nacional e internacional. Vinte dias após a assinatura da MP 850, a consulta pública organizada pelo Congresso Nacional conta com 216 votos a favor da medida e 7.158 contrários.

Até hoje já são mais de 100 organizações e instituições que assinam notas de repúdio à MP 850, por diversas instituições, organizações e movimentos, como associações, conselhos, redes comunitárias e de educadores museais, representações internacionais do Conselho Internacional de Museus e seus comitês específicos, como o Comitê para Ação Educativa e Cultural, reunido em conferência no final deste mês.

O próprio Ibram, após pressões internas e externas, lançou uma nota técnica apontando os problemas da MP 850 e indicando sua revogação.

Até a grande mídia já mudou o seu discurso sobre a extinção do Ibram e criação de uma agência privada, dando espaço para discursos de diversos especialistas e agentes da cultura que emitiram opiniões a respeito da extinção sumária do Ibram.

Os servidores têm contado com o apoio de parlamentares e advogados, que encaminham as medidas legislativas e jurídicas contra a manutenção das MPs 850 e 851. A primeira recebeu 69 propostas de emendas parlamentares, enquanto a segunda recebeu 114 emendas. Além de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a MP 850, movida pelo PCdoB.

Barrar a privatização e o ajuste fiscal

A inconstitucionalidade da MP 850 e seu conteúdo privatista somam-se a outros desmandos desse governo golpista, como o Decreto n° 9507/18, de 24 de setembro, que regulamenta a contratação de terceirizados; o Decreto n° 9498, de 10 de setembro, que dispõe sobre as aposentadorias no serviço público, ou a Instrução Normativa n °2, que reproduz no serviço público elementos da Reforma da Previdência. Todas essas medidas subordinadas a Emenda Constitucional 95, que impõe o teto dos gastos públicos, com congelamento e contingenciamento de gastos por 20 anos.

Está colocada a chance de uma reconstrução do Museu feita com e pela a sociedade. Está colocada a possibilidade de rechaço ao projeto de privatização da cultura e do serviço público no Brasil.

*Fernanda Castro é servidora do Instituto Brasileiro de Museus, no Rio de Janeiro

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