A forte mobilização de mulheres argentinas neste 8 de agosto certamente tornará a data um marco na história do feminismo na América Latina e na luta pela legalização do aborto. Independentemente do resultado da votação no Senado, que barrou o projeto por 38 votos a 31, a força deste movimento mostrou que as mulheres não vão retroceder.
Resultado de um debate que se constrói há oito anos, a pauta levou às ruas de Buenos Aires mais de um milhão e meio de pessoas, e muitas milhares mais em diversas províncias (estados) da Argentina, no chamado 8A. A heterogeneidade da manifestação mostra o quanto esta pauta transcende o movimento feminista. Eram mulheres, homens, jovens e idosos, todos com seus “pañuelos verdes”, os lenços que se tornaram símbolo da luta pela legalização do aborto.
Este debate é parte da defesa de um Estado laico, de direitos democráticos elementares e de saúde pública. Não a toa, este poderoso movimento se entrelaçou com diversos outros por direitos humanos, com as Mães da Praça de Maio, e a luta por memória do período da ditadura militar no país.
Foram horas de manifestação, sob forte chuva, vento e um frio de oito graus. Nem mesmo isso fez calar as multidões, que até às três horas da manhã, quando se encerrou a votação, cantava e gritava palavras de ordem em defesa da legalização do aborto, contra o governo e o patriarcado.
Esta foi a sétima vez que o projeto de lei foi levado à voto no Congresso. O movimento feminista argentino tem longa tradição neste processo, que se torna cada vez mais forte. Os encontros de mulheres, gestados desde a década de 1990, reúnem, anualmente, milhares de feministas. O “Ni Una Menos”, movimento contra o feminicídio, ganhou projeção internacional e levou milhares às ruas nos últimos tempos.
Os avanços gerados pela pauta feminista incomodam os setores mais conservadores da sociedade e da direita tradicional, que hoje governa a Argentina por meio do presidente Mauricio Macri. Além do governo, a Igreja Católica tem forte influência política no país, potencializada pela figura do Papa Francisco.
Apesar de se esforçar para manter uma aparência progressista, o Papa argentino mostrou o quanto a Igreja ainda impede o avanço dos direitos da mulher, ao mobilizar forças, dentro e fora do país, contra a aprovação da lei do aborto. Os movimentos evangélicos, que vêm crescendo na Argentina, também deram seu recado e demonstraram força na mobilização contrária.
Todos esses elementos colocam a luta pela legalização do aborto numa situação muito peculiar. Por uma lado, existe uma força social imensa em defesa dessa pauta histórica e por outro um governo acuado pela mobilização e pressionado para barrar este projeto.
Nosso caminho, especialmente no Brasil, é longo. Precisamos enfrentar o conservadorismo que se impõe na sociedade, que impede a educação sexual na escolas, que trata o debate do planejamento familiar e da liberdade das mulheres como “ideologias de gênero” e que cria leis que tentam retroceder o que existe de aborto legal no país, como o Estatuto do Nascituro.
A rejeição do Senado não encerra a discussão. Muito pelo contrário. O debate sobre os efeitos da legalização já estão muito avançados na sociedade e ultrapassam fronteiras. No dia da votação, mulheres de mais de 30 países – incluindo o Brasil – realizaram protestos em frente às embaixadas e consulados argentinos, em apoio à luta pela legalização do aborto. Outras tantas mulheres latino-americanas viajaram até o país, para viver esse momento histórico.
Com a população cada vez mais informada, aumenta a compreensão de que a descriminalização e legalização do aborto é uma questão de saúde pública, que visa evitar as milhares de mortes e mutilamentos que ocorrem todos os anos, em decorrência de abortamentos clandestinos. Para além disso, também ganha força entre as mulheres o direito a decidirem sobre seus próprios corpos e suas vidas.
A vitória do “não” no Senado é mais uma contradição do momento que vivemos. Na Argentina, no Brasil e em outros países, o debate sobre o aborto legal e seguro ganhou as ruas e não vai retroceder.
Como se ouvia pelas ruas de Buenos Aires: independentemente do resultado, as coisas não serão mais as mesmas. Não mesmo!
Que seja lei!
Nem presa Nem morta!
É pela vida das mulheres!
VISITE O ESPECIAL
Comentários