Juliana Benício Xavier e Larissa Pirchiner de Oliveira Vieira, advogadas populares e do Coletivo Margarida Alves de Assessoria Popular
No dia 05 de novembro de 2015, o mundo assistiu ao maior desastre socioambiental da história do Brasil. Ficamos todas e todos consternados com o rompimento da barragem de rejeitos de propriedade da Samarco, joint venture da Vale e da BHP Billiton. O desastre causou a morte de 20 pessoas, 19 anunciadas mais uma atingida que sofreu um aborto em decorrência do trauma a que foi exposta. O rompimento da barragem destruiu o rio Doce, afetando o modo de vida de muitas comunidades que viviam de suas águas em relação de dependência, exercendo atividades relacionadas à pesca, à agricultura, à extração de areia e outras.
Defende-se a utilização do termo desastre para designar o acontecimento sem que seja acompanhado do adjetivo “natural” ou, ainda, em contraposição ao termo “acidente”, em razão de o evento não ter decorrido de fatores relacionados à natureza. Tampouco resultou de uma situação imprevisível, ligada ao acaso. Um laudo do Instituto Prístino, encomendado pelo Ministério Público, em 2013, recomendava uma série de ações de segurança a serem adotadas pela empresa diante da precariedade de seu sistema de gestão de risco. Tais providências não foram adotadas pela Samarco e o MP não se dignou de ajuizar ação para obrigar a empresa a tomar as necessárias ações de segurança.
Lembra-se, ainda, o descumprimento do programa de gerenciamento de riscos elaborado pelas engenheiras e engenheiros da própria empresa, documento esse que apelava para a necessária instalação de equipamentos de segurança na estrutura do maciço.
Fato é que rompimento da barragem da Samarco decorre de uma série de falhas humanas, previsíveis a priori, o que descaracteriza, portanto, a “naturalidade” do evento.
Papel do Estado
O papel de coadjuvante do Estado brasileiro no acontecimento do novembro passado não pode ser renegado.
O Estado cria uma estrutura jurídica a favor das empresas transacionais, dentre as quais, as empresas extrativistas minerais, compondo um verdadeiro “paraíso judicial”. O Executivo e Legislativo tratam de elaborar e aprovar leis que favorecem esse setor, a exemplo dos projetos ligados ao afrouxamento das regras de licenciamento ambiental, conhecidos como fast tracking; o novo marco regulatório da mineração e o código florestal.
Não se pode deixar de mencionar também que o Direito, com atenção especial para o ambiental, trabalhista e o previdenciário, é um instrumento limitado que retroalimenta e se beneficia da separação entre as classes sociais e que não raramente são olvidados pelos próprios órgãos criados para efetivá-los.
Ao Judiciário, é reservado o papel de legitimar a utilização da legislação brasileira em favor dos interesses da classe dominante, contra as comunidades tradicionais e como forma de criminalização de grupos que se colocam em oposição aos megaempreendimentos.
O paraíso estende-se, ainda, aos órgãos fiscalizatórios, que deveriam averiguar regularmente os empreendimentos para garantir a redução das nocividades impostas à natureza e ao povo. Órgãos ambientais, Ministério do Trabalho e Previdência Social e o próprio Ministério Público são deliberadamente sucateados em proveito daquelas e daqueles que vivem de explorar a força de trabalho alheia e os bens comuns, recursos sobre os quais não poderiam recair direitos privados.
Nesse cenário, não causam espanto, mas nem por isso é menor a indignação, informações segundo as quais a Samarco começou a depositar rejeitos na barragem de Fundão seis meses antes da liberação oficial.
Não se tem dúvidas de que o desastre derivou de uma série de irregularidades que não tiveram origem no dia 05 de novembro de 2015. Foi um processo que se arrastou ao longo do tempo. Tal constatação abre espaço para a reflexão acerca de quais teriam sido os rumos dos acontecimentos caso os poderes públicos tivessem cumprido regularmente o seu dever fiscalizatório, valendo-se, inclusive, do embargo à atividade econômica caso tivessem constatado previamente as irregularidades que colocavam em risco a segurança das comunidades e de trabalhadoras e trabalhadores.
Dentre as consequências da estruturação atual do capital está a precarização da força humana que trabalha, o desrespeito por todas as formas de vida e a degradação ambiental em proporções elevadas, sendo Mariana um símbolo importante de tal afirmação.
Se os três poderes da República fecham os olhos às irregularidades que colocam em risco a saúde e a vida do povo brasileiro, se concedem inúmeros benefícios às empresas mineradoras, elaborando leis permissivas à atividade econômica e aplicando-as em detrimento dos interesses daquelas e daqueles que deveriam proteger, só nos resta a auto-organização para a construção de saídas emancipatórias que nos libertem desse sistema que cerceia o nosso direito a uma vida digna, saudável e feliz.
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