Alvaro Bianchi
Se levarmos a sério revistas e suplementos culturais de jornais diários – e por que não fazê-lo? – um espectro ronda o mundo: o espectro do comunismo. Na América Latina fala-se sem constrangimentos a respeito do “socialismo do século XXI” e discute-se acaloradamente a respeito da existência ou inexistência de processos de transformação social no Continente. A conjuntura política européia certamente não é a mesma, mas isso não impede que sob várias fórmulas a própria idéia de comunismo esteja sendo retomada: Antonio Negri escreveu sobre o “comunismo da imanência”, Alain Badiou sobre a “hipótese comunista”, Slavoj Zizek fala da “reabilitação do comunismo”. É de se convir: essa desenvoltura toda seria inimaginável alguns anos atrás. Pois o socialismo e o comunismo não haviam sido definitivamente derrotados pelo liberalismo? A queda do Muro de Berlim não havia sepultado definitivamente as utopias?
O que significa, então, esse resgate? Trata-se de um gesto desesperado que revela mais a impotência de seu sujeito do que sua força? Sim, para alguns não passa disso mesmo. Quando nos capítulos finais de seu livro De quoi Sarkozy est-il le nom? Alain Badiou (2007) relança aquilo que chama de a “hipótese comunista”, ele está pensando em uma reação ao que considera uma derrota. Mas, então, por que esse grito encontra eco e reverbera? O espaço no qual esse grito é ouvido é aquele criado pela crise do neoliberalismo. Que o neoliberalismo como ideologia esteja em crise é algo que seus próprios defensores afirmam depois do colapso dos mercados financeiros. Não é uma mera coincidência o fato de que o Prêmio Nobel de Economia tenha sido, em 2008, dedicado a Paul Krugman um dos mais ácidos críticos da desregulamentação dos mercados. Paradoxalmente, o desmanche das formas históricas que as ideias do socialismo e do comunismo haviam adquirido, respectivamente a social-democracia e o stalinismo, foi sucedido pelo desmanche da forma histórica que o liberalismo assumiu.
É, pois, em um espaço vazio de ideias que o “socialismo do século XXI” e o “comunismo” repercutem. Um espaço vazio porque ainda não foi preenchido por ideias capazes de expandir-se e ocupar todos os lugares. Não faltam ideias com alcance universal para tal, mas faltam aquelas que tenham assumido a força material para isso. A situação é, entretanto, favorável ao desenvolvimento da teoria para aqueles que não têm saudades das formas históricas que viraram pó e das ideias que não deixavam ninguém pensar. Para socialistas/comunistas que recusam as formas históricas da social-democracia e do stalinismo, a estrada parece estar livre. Pode-se, agora, criticar abertamente o liberalismo sem correr o risco da marginalidade política ou intelectual. Pode-se, agora, discutir livremente sobre o socialismo e o comunismo, sem que argumentos de autoridade ou autoridades sem argumentos interrompam o debate.
Pode-se, assim retomar em condições favoráveis para a crítica uma questão primeira: o que é o socialismo/comunismo hoje? A resposta de Alain Badiou a essa resposta é simples e clara e pode ajudar, por meio de um diálogo crítico, a investigar a respeito desses conceitos após o desmanche. Para o filósofo francês, a “hipótese comunista” estaria assentada no Manifesto comunista de Marx e Engels e afirmaria as seguintes idéias chaves:
- que é possível superar a subordinação do trabalho a uma classe dominante;
- que é possível uma organização coletiva que elimine a desigualdade na distribuição de riquezas e a divisão do trabalho;
- que é possível que a apropriação privada desapareça como forma de organização social;
- que é possível superar a existência de um Estado coercitivo separado da sociedade civil (BADIOU, 2007, p. 131).
O comunismo seria, assim, uma ideia reguladora capaz de orientar uma prática social, um modelo intelectual sempre renovado. Na prática social essa ideia invariante assumiria suas diferentes formas. Fazer a história da hipótese comunista seria, assim, reconstruir as diversas formas que essa ideia reguladora assumiu com o passar do tempo. Na era moderna essa hipótese teria assumido duas formas nitidamente demarcadas. Na primeira delas, vigente entre a revolução Francesa e a Comuna de Paris – aproximadamente entre 1792 e 1871, portanto – ocorreu o estabelecimento da hipótese comunista e esta assumiu o perfil de um movimento o qual esteve, cada vez mais sob direção da classe operária (idem p. 139-141).
A segunda dessas formas teve lugar entre a Revolução bolchevique e a Revolução Cultural chinesa e foi marcada pela realização dessa hipótese e pelo perfil de partido que ela assumiu. Segundo Badiou, a segunda forma teria dado conta dos problemas evidenciados pela primeira. Na Comuna de Paris a forma movimento deixou evidentes os seus limites. Os communards não conseguiram criar um poder estável nem estender a revolução a toda a França. Sequer foram capazes de defender Paris quando esta foi assediada pelas forças da contrarrevolução. A forma partido, por sua vez, teria realizado aquilo que o século XIX havia sonhado. Mostrou-se eficiente para conduzir a revolução à vitória e mostrou ser capaz não apenas de construir um poder estável como, também, de defender esse poder do assédio inimigo (idem, p. 141-145). Para Badiou, uma primeira característica do século XX foi sua paixão pelo real: “O século XIX anunciou, sonhou, prometeu, o século XX declarou que ele fazia, aqui e agora” (BADIOU, 2007a, p. 58. Cf. tb. 2007, p. 143). A forma partido teria sido um dos instrumentos privilegiados dessa realização dos sonhos.
A nova forma partido trouxe, entretanto, novos problemas consigo. Ela foi capaz de conduzir a revolução à vitória e de transformar o sonho em realidade. Foi uma máquina de guerra eficaz em um século cuja outra característica é a guerra, as guerras ferozes que o marcaram, mas também a semântica da guerra que organizou os discursos a partir dos quais o século se pensou (cf. BADIOU, 2007a, p. 60-61). Mas esta nova forma da hipótese comunista não teria sido capaz de construir aquilo que Marx denominou de “ditadura do proletariado”, um Estado transitório que organizava sua própria extinção. O resultado foi uma nova forma de autoritarismo e burocratismo que se expressou na prolongada crise daqueles países nos quais primeiramente a hipótese comunista teria se realizado.
O argumento de Badiou apesar de simples e claro, deve ser compreendido no complexo contexto metapolítico definido por ele. De fato o filósofo francês recorreu a duas estratégias diferentes em seu pequeno livro. Na primeira dessas estratégias, ele procura compreender aquilo que é, e pergunta-se a respeito: De quoi Sarkozy est-il le nom? A perspectiva de Badiou é vincada pela antropologia do nome de Sylvain Lazarus (1996). Para Lazarus, o nome é o real, é aquilo que é pensado no pensamento e que não deve ser objetivado por uma definição ou referente. O nome não pode ser nomeado. Por isso, não tem uma definição e a historicidade pura de sua singularidade, ou seja, aquilo que seria apreendido pela definição, permanece impensável. A singularidade do nome seria apenas apreendida nos seus lugares, ou seja, pela materialidade das prescrições que permitiriam localizá-lo numa multiplicidade homogênea. Assim, o nome “política revolucionária” entre 1792 e 1769 poderia ser apreendido em sua singularidade nos debates da Convenção, nas sociedades sans-cullotes e no exército do ano II (BADIOU, 1999, p. 44 e 47).
Apreender o nome naquilo que ele indica em sua singularidade é, assim, descrever os lugares que permitem localizá-lo em uma multiplicidade homogênea. Para Badiou e Lazarus a multiplicidade homogênea dos lugares é co-extensiva à natureza prescritiva do nome. Assim, quando o lugar deixa de existir, o modo político daquilo que é nomeado também cessa. “Por exemplo, desde que os soviets, que são um dos lugares da política bolchevique desapareceram (logo desde o Outono de 1917), o modo político bolchevique, do qual Lenine nomeia o pensamento, deixa de existir” (BADIOU, 1999, p. 49). Ai está a razão pela qual Badiou não pôde escolher como estratégia investigar aquilo que o comunismo dá o nome. Pois se fizesse isso seria levado a concluir que a) o comunismo cessou de existir e que isso aconteceu muito antes de 1989, ou b) que o comunismo poderia ser apreendido em sua singularidade nos processos de Moscou e no gulag soviético, na perseguição aos intelectuais durante a Revolução Cultural chinesa, nos massacres promovidos pelo Khmer Rouge, na execução do general Arnaldo Ochoa em Cuba.
Recordando e levando a sério uma daquelas banalidades filosóficas de Mao Zedong que encantaram jovens franceses, Badiou escreveu: “Um se divide em dois” (2007, p. 99-100). Esse filosofema expressa um antagonismo não dialético que se resolve sem a superação interna da contradição pela supressão de um dos dois termos. Para concluir que o comunismo cessou de existir muito antes de 1989 Badiou deveria identificar no stalinismo (em todas as suas variantes) o antagonista não dialético do comunismo, o stalinismo como o simples cancelamento do comunismo. Mas Badiou foi um francês maoísta e embora tenha se distanciado de suas origens nunca rompeu explicitamente com elas e isso lhe impede de chegar a esse ponto. “Dois se fundem em um”, diziam os opositores de Mao na “grande luta de classes no campo da filosofia”, para expressar a síntese dos termos contraditórios nessa simplória dialética. Para concluir que o comunismo pode ser apreendido em sua singularidade pelo gulag os termos contraditórios comunismo e stalinismo deveriam ser fundidos em uma nova síntese. Mas Badiou foi um sofisticado maoista francês e isso lhe impede de chegar a esse ponto.
É verdade, como muitos franceses de sua geração, sua querida geração marcada pelos eventos de 1968 os quais representam para Lazarus uma coupure, Badiou foi maoista. Sob vários aspectos, o maoismo francês é completamente singular, incorporando vários elementos da cultura política e intelectual desse país: ele contemplou uma recusa ao stalinismo soviético que ia muito além do próprio Mao Zedong e que repercutiu a crescente ruptura da juventude com o Partido Comunista Francês; encontrou na Revolução Cultural uma crítica à divisão do trabalho similar àquela que intelectuais como André Gorz haviam produzido; enfatizou a crítica ao “primado das forças produtivas”, traduzindo em termos voluntaristas a recusa althusseriana ao economicismo; procurou “ir ao povo”, do mesmo modo como os prêtres-ouvriers haviam feito logo após a Segunda Guerra. Mas na sua singularidade esse maoismo francês não deixou de reproduzir as linhas essenciais da linha chinesa.
O próprio Badiou, também é verdade, espelhou, embora não sem ingênuo incômodo, a apologética que caracterizou esse movimento. Assim, em 1976, escreveu em sua Theorie de la contradiction, sob o impacto da Revolução Cultural chinesa, que “apenas o empreendimento maoista desenvolve integralmente o que os proletários fazem e nos permite reconhecer o incondicional e permanente caráter de sua revolta” (BADIOU, 1976, p. 22). Essa ideia Badiou nunca renegou. Ainda em 2002, ele escrevia, “O livrinho vermelho de Mao foi nosso guia, absolutamente não como dizem as marionetes, como um catecismo dogmático, mas, pelo contrário, na medida em nos permitia esclarecer e intervir de novos modos em todo tipo de situações disparatadas que eram desconhecidas para nós” (BADIOU, 2002, p. 4). O fracasso da Revolução Cultural teve efeitos avassaladores sobre a extrema-esquerda francesa. Badiou refletiu profundamente sobre esses efeitos e sobre a própria Revolução Cultural. Notável é, sobre essa perspectiva, sua conferência de 2002 a respeito e a conclusão à qual chega: a Revolução Cultural foi uma “experiência política que saturou a forma do partido-Estado” e “a última sequência política significativa que é ainda interna ao partido-Estado.” (Idem. Cf. tb. 2007, p. 102.)
O fracasso da Revolução Cultural teria, segundo o filósofo francês, evidenciado a impossibilidade de libertar a política dos estreitos quadros do partido-Estado que a aprisionavam (BADIOU, 2002, p. 29). Dessa experiência, Badiou chegou a uma conclusão de alcance supostamente universal: a política emancipatória deve emancipar-se do modelo do partido, deve ser política sem partido. A crítica aos limites da Revolução Cultural assumia, assim, a forma da crítica de toda representação e a defesa de uma política sem representação. Mas esta última é uma conclusão à qual é possível chegar a partir do balanço a respeito do fracasso da Revolução Cultural? É possível identificar a incapacidade de autorreforma do partido-Estado-exército, ou seja, do partido burocrático, com a incapacidade de todo partido conduzir um processo revolucionário.
Este é um claro limite das conclusões postas por Badiou. A aposta da Revolução Cultural foi sempre uma aposta na capacidade de Mao Zedong enfrentar a burocracia do partido. Mas Mao Zedong era parte da própria burocracia que dizia enfrentar. O culto à personalidade denunciado por Badiou (cf. 2002, p. 26-29) nunca foi um acidente, um desvio, ou um limite da Revolução Cultural. Era uma parte inalienável dela própria; era a afirmação de sua personificação. Consternado, Badiou concluiu quase trinta anos depois de ver sua aposta fracassar:
“pode-se sustentar que ‘Mao’ é um nome intrinsecamente contraditório no campo da política revolucionária. Por um lado, é o nome supremo do partido-Estado, seu presidente incontestável, aquele que detém como chefe militar e fundador do regime, a legitimidade histórica do partido comunista. Por outro lado, ‘Mao’ é o nome daquilo que no partido não é redutível á burocracia de Estado.” (2004, p. 28.)
Haverá de fato contradição nesses lugares distintos dos quais Mao Zedong é o nome? O enunciado da contradição pressupõe que a burocracia só encontrava seu espaço na administração direta do Estado. Mas o próprio Badiou em seu relato identifica outros espaços. Há o Exército, o lugar do qual Lin Biao era o nome e que foi usado por este para impedir em agosto de 1966 que os membros do Comitê Central do Partido Comunista Chinês que se opunham a Mao Zedong participassem da reunião, episódio narrado candidamente por Badiou, sem se dar conta que ele revela o caráter antidemocrático do PCCh e do próprio Mao Zedong (cf. 2002, p. 11 e 31). Há os sindicatos operários, que liderados por velhos quadros enfrentaram os Guardas Vermelhos em Xangai, em 1966, e lançaram um movimento grevista que o filósofo francês não deixa de lamentar, devido a suas “demandas setoriais de natureza puramente econômica” (2002, p. 18). E há ainda a burocracia do partido (ou pelo menos de uma parte deste), que não pode ser identificado de modo absoluto ao Estado, e cujo nome é Grupo de Revolução Cultural do Comitê Central, segundo Badiou uma dúzia de pessoas lideradas por Mao Zedong cujo objetivo era “inspirar aos adversários um medo durável de modo a preservar o quadro geral do exercício do poder que continuava a ser a seus olhos o partido único” (2002, p. 20-21).
Não interessa aqui discutir se a Revolução Cultural pode ser resumida a um choque de burocracias. O filósofo francês rejeita veementemente esse argumento, mas não deixa de afirmar que o conflito do qual Revolução Cultural é o nome teve lugar no interior do partido. É essa sua tese e é por isso que chega às conclusões que já foram expostas aqui. O espaço, então, é o partido. Mas quais são forças sociais, dessa estranha revolução? Sim, é isso o que falta nomear! Quais são, afinal, os sujeitos da emancipação? Estes não são nunca nomeados nem dão nome a ninguém. São o nada. Tendo afirmado com Althusser que a estrutura não tem sujeito, Badiou termina por chegar à conclusão de que a subjetividade não tem sujeito (cf. BADIOU, 1999, p. 81-82).
Pode-se brincar com as palavras e repetir o bordão althusseriano, afirmando que esse claro limite da abordagem de Badiou é o efeito de um obstáculo epistemológico. De fato, o filósofo francês tem uma sofisticada teoria do sujeito. A importância da crítica da althusseriana à “problemática do sujeito” não deve ser menosprezada. De várias maneiras ela permitiu romper com uma concepção do sujeito ao mesmo tempo essencialista, naturalista e teleológica. Badiou desenvolveu essa crítica, na afirmação de que o sujeito “está na dependência de um acontecimento e só se constitui como capacidade de verdade, de modo que sendo sua ‘matéria’ procedimento de verdade, ou procedimento genérico, o sujeito não é de maneira alguma naturalizável.” (BADIOU, 2007a, p. 156.) O evento é um acontecimento sem passado, nem futuro, que encontra seu lugar em uma situação sem ser definido ou previsto por meio dela. O sujeito que está na dependência desse evento, é intermitente, depende de um evento, começa e acaba (BADIOU, 1996). Daí que não possa existir para ele um sujeito da revolução, do comunismo, ou da emancipação. Cada evento encontra seu próprio sujeito.
O problema está, justamente nessa intermitência do sujeito, que não é, senão, a intermitência da própria historie événementielle. Louis Althusser havia percebido muito bem que a expulsão do sujeito do âmbito da estrutura exigia a recusa da história. Badiou procurou reconciliar subjetividade e história, mas para tal recorreu ao evento para expurgar destas toda memória e experiência. Por essa razão, o sujeito de Badiou está condenado a fracassar. Ele é recriado, a todo o momento a partir do ponto zero por um evento sem conexão com os eventos precedentes. Esse sujeito é, por isso, indiferente às derrotas e às vitórias dos movimentos de emancipação ao longo dos séculos XIX e XX. Não tem suas memórias, não adquiriu suas experiências. É por isso que o mais eventual dos sujeitos, um indivíduo – Mao Zedong – pôde aparecer como o demiurgo. Moisés teria conduzido o povo de Israel através do Egito em direção a Canaã, a terra prometida por Deus a Abraão. A longa marcha liderada por Mao Zedong não ficaria nada a dever a essa façanha. Para Badiou: “Mao certamente fez um serviço infinitamente maior para seu povo, o qual libertou simultaneamente da invasão japonesa, do colonialismo desenfreado das potências ‘Ocidentais’, do feudalismo no interior do país e da pilhagem pré-capitalista.” (BADIOU, 2002, p. 27).
Uma ruptura radical com o stalinismo e todas as suas formas (e não apenas a soviética) exige encontrar esse sujeito perdido do comunismo. O filósofo francês critica a articulação do sujeito sobre transcendências coletivas universalizáveis – classe operária e partido, para os stalinistas; raça e nação para os fascistas. Com base no poder de Estado, o stalinismo teria substituído os processos políticos reais por tais entidades coletivas transcendentais (BADIOU, 2007, p. 159). Mas o que o stalinismo substituiu foi justamente a classe operária e o partido pelo poder do Estado.
Os obstáculos que Badiou enfrenta não são apenas de ordem epistemológica, são, também, de ordem política. Sua fidelidade ao maoismo lhe impede de levar a cabo uma crítica radical desse substitucionismo. Badiou reconhece que o culto à personalidade expressa um processo de substituição política no qual o partido se autonomeia representante da classe operária e fonte hegemônica da política e única garantia da verdade. A seguir, uma pessoa assume o papel de fiador da verdade sob a forma clássica do gênio, o qual encarna a capacidade representativa do partido. Mas para Badiou o caso de Mao Zedong seria diferente, ele não teria substituído a classe operária e o partido porque sua luta teria tido lugar no próprio partido. Assim, Mao Zedong ao invés de ser o chefe absoluto do partido real seria “para a massa de revolucionários” a “encarnação, somente ele, de um partido ainda por vir. Ele é como uma revanche da singularidade sobre a representação.” (2002, p. 28.) Em sua cruzada contra a representação, Badiou comemora o fato desta ter sido usurpada em nome do futuro por um único indivíduo.
Impossibilitado de chegar à crítica radical do stalinismo Badiou precisou abandonar sua estratégia argumentativa inicial. Para definir o que é o comunismo seria necessário dizer o que ele nunca foi, seria necessário nomear sua radical negação. Mas ao invés de interrogar-se a respeito daquilo que o comunismo dá o nome, ou seja, ao invés de definir aquilo que o comunismo é, o filosofo francês apresentou uma segunda estratégia: definir o comunismo como aquilo que deveria ser. Para tal, recorreu a uma idéia reguladora: o comunismo é uma hipótese. O risco é evidente.
Badiou rejeita explicitamente que sua hipótese comunista seja um programa. Sua recusa a inscrever um projeto político na história o leva a recusar todo programa sócio-político. A política de emancipação não deveria ter partido nem programa se não quiser se confundir novamente com o Estado. Daí que essa política possa ser traduzida sob a forma de prescrições tais como as que se encontram resumidas em sua “hipótese comunista”. Aquilo que nela é afirmado como um conjunto de possíveis é traduzido em enunciados prescritivos incondicionais pelas quais vale a pena lutar. Badiou propõe agora uma nova prescrição, unidade performativa que poderia traduzir a hipótese comunista nos dias atuais: “não há mais que um mundo” (2007, p. 71).
Separar a política do Estado deve ser, para o filósofo francês, o fundamento de toda política. Para fazer isso seria necessário negar toda idéia de partido e de representação. Mas é de se perguntar o que fica da política quando são suprimidos os partidos políticos (BENSAÏD, 2001, p. 157-158). Qual a possibilidade das prescrições se transformarem em uma força material? Badiou sabe que sua opção está a um passo de confundir-se com a negação da política e o anarquismo, o qual considera que “nunca foi nada mais do que uma crítica vã” (2002, p. 29). Mas não são os anarquistas os que encontra nesse caminho. Ao definir o comunismo como uma ideia reguladora o filósofo francês aproximou-se perigosamente de Kant e daquela filosofia política que quer recusar (p. ex. BADIOU, 1999, p. 21-37). Pois ao definir a hipótese comunista como uma idéia reguladora, não está ele também se colocando na posição do filósofo que determina abstratamente, os princípios da boa política? As prescrições de Badiou contrapõem-se, claramente, à preguiçosa política parlamentar da social-democracia e do stalinismo. Mas isso não basta. É evidente que a prescrição “não há mais que um mundo” tem “a forma dogmática de comandos religiosos” e como tal não necessita ser confrontada com a prática (cf. BENSAÏD, 2001, p. 164). Ela permite manter as mãos limpas, mas não permite muito mais do que isso.
A definição da hipótese comunista como uma ideia reguladora não pode ser considerada suficiente. Se é verdade que o comunismo tem uma dimensão que permite que o olhar se projete sobre o futuro definindo o que ele deveria ser, não pode ser esquecido que o comunismo foi também um movimento e um programa político inscritos na trágica história do século XX. É verdade que para Lazarus (1996), o nome não tem história e a própria categoria do tempo deveria ser recusada. Nesse ponto, Lazarus, assim como Badiou, revela a influência de seu querido Althusser, para quem a filosofia não tinha história.1 Mas é justamente essa recusa o que lhes impede de avaliar politicamente a história do comunismo. Pois o comunismo deu nome ao movimento de emancipação dos trabalhadores, à Comuna de Paris, à Revolução Russa e à Chinesa, à Internacional. Mas a capacidade da palavra comunismo nomear foi afetada pelo stalinismo; a relação entre o nome e o real que ela nomeava foi desfeita. Nada mais distante do real do que chamar o resultado histórico do stalinismo de “socialismo real”, pois era justamente a irrealidade desse socialismo aquilo que esse nome nomeava. Comunismo, então, passou a designar aparelhos burocráticos de sujeição dos trabalhadores, assassinato de militantes revolucionários na União Soviética, perseguição dos intelectuais na China. Sim, o ato de nomear é um momento da luta de classes que tem lugar na história. O nome tem história, assim como aquilo que é nomeado.
É preciso, pois, distinguir historicamente aquilo que dá o nome à emancipação e aquilo que dá o nome à sujeição, aquilo que dá o nome ao movimento revolucionário das classes trabalhadoras e aquilo que é nomeado por Stalin, Tito, Mao Zedong, Pol Pot, Ho Chi Minh ou Fidel Castro. E é preciso marcar a profunda descontinuidade que há entre essas duas coisas. Se quisermos distinguir de maneira precisa essas coisas será preciso ir além daquelas ideias chaves às quais Badiou fez referência em sua definição da hipótese comunista – superação da subordinação do trabalho, da desigualdade, da apropriação privada e do Estado coercitivo separado da sociedade civil. Pois foi dizendo agir em nome delas que o stalinismo procurou sua legitimidade. Será preciso ir além da política performativa que se satisfaz com abstratas prescrições. E para tal precisaremos encontrar os agentes sociais dessa superação.
Os agentes da emancipação só podem ser aqueles que se emancipam. Um comunismo da emancipação, por oposição a uma política da sujeição, é um comunismo da autoemancipação. A autoemancipação implica na ação autônoma dos sujeitos dessa emancipação. Inerente a esta ideia está a rejeição de toda substituição política ou social desses sujeitos por sujeitos outros que não aqueles que devem se emancipar. Esse sujeito da emancipação tem seu lugar na história. Sua emancipação se dá em nome de um passado que ele quer vingar, de um presente que o oprime e de um futuro que deseja. Mas isso só é possível na medida em que acumulou experiências e com base nelas construiu um identidade que lhe permite reconhecer-se a si próprio, reconhecer seus iguais e, também distinguir seus inimigos.
Esta não é uma idéia incompatível com todas as formas de partido ou de representação. Mas é incompatível com aquelas formas nas quais representantes e representados encontram-se em uma relação de exterioridade. Para compatibilizar a ideia de representação com a ideia de autoemancipação é preciso concebê-la como autorrepresentação, ou seja, o sujeito deve se representar a si próprio e os representantes não devem ser algo estranho aquilo que é representado, mas devem ser suas partes integrantes. No mesmo sentido, a organização política da autoemancipação deve ser concebida como auto-organização, ou seja, uma organização que embora não se identifique com a totalidade do sujeito é por ele criada a partir de suas experiências históricas.
Como se pode ver, não há muito que inventar. Trata-se, na verdade, de reencontrar o comunismo da emancipação, de emancipar as próprias ideias do socialismo e do comunismo da prisão à qual foi condenada pela social-democracia e pelo stalinismo. Nessa busca, o pior caminho é aquele que identifica a história com um nome próprio. O melhor caminho é ainda aquele que a identifica com a experiência das revoluções nas quais a autoemancipação e a auto-organização deixaram de ser prescrições para tornarem-se práticas sociais.
Referências bibliográficas
ALTHUSSER, Louis. Solitude de Machiavel: edition préparée et comentée par Yves Sintomer. Paris: PUF, 1998.
BADIOU, Alain. Theorie de la contradiction. Paris: François Maspero, 1976.
BADIOU, Alain. Compêndio de metapolítica. Lisboa: Instituto Piaget, 1999.
BADIOU, Alain. La Révolution Culturelle: la derniere revolution? Paris: Les Conférences du Rouge-Gorge, 2002.
BADIOU, Alain. De quoi Sarkozy est-il le nom? Paris: Lignes, 2007.
BADIOU, Alain. O século. Aparecida: Idéias & Letras, 2007a.
BENSAÏD, Daniel. Résistances: essai de taupologie générale. Paris: Fayard, 2001.
LAZARUS, Sylvain. Anthropologie du nom. Paris : Seuil, 1996.
[Publicado originalmente em: OLIVEIRA, Francisco de; BRAGA, Ruy Braga; RIZEK, Cibele Rizek. (Org.). Hegemonia às avessas. São Paulo: Boitempo, 2010, v. , p. 330-342.]
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