Fábio José Cavalcanti de Queiroz
Sempre nos pareceram intelectual e politicamente excitantes os temas do bonapartismo e do frentepopulismo, independentemente da sua localização histórica. Para efeito de análise, no presente artigo, consideramos os diversos elementos que constituem esses conceitos em uma manifestação particular: a América Latina. Tratam-se- a nosso ver, de casos-limite de realização dessas tramas categoriais no plano da história. É disso que a nossa pesquisa tenta dar conta.
Não há nada mais distinto do que o peronismo – no seu tempo de glória, nos anos 40 e 50 do século XX – e, por exemplo, o chavismo, urdido no núcleo essencial do até agora brevíssimo século XXI; do mesmo modo, é lícito dizer: nada mais desconforme do que a Frente Popular nos anos 2000 – como é o exemplo do governo Lula da Silva, no Brasil – quando comparada com a experiência congênere que marcou a conjuntura do inexcedível princípio dos anos 1970, no Chile, sob a liderança de Salvador Allende.
Nesse texto, não está subsumido o desejo ambicioso de estudar cada uma dessas experiências, visando elucidá-las e explicitá-las. Longe de nós a ideia de ir além de uma modéstia contribuição a uma temática que tem sido posta como irrelevante: verificar como organizações que se reivindicam da classe trabalhadora, ao longo da história latino-americana, não se furtaram (e nem se furtam) de adaptar o que seria uma estratégia – a organização e mobilização independentes da classe trabalhadora – a uma injunção tática: acordos pontuais com estratos da burguesia nativa.
Se a nossa hipótese se revelar correta, aí se delineia um complexo problema: podemos dizer, grosso modo, que, sem embargo, a tática se transfigurou em estratégia e, sob essa perspectiva, a classe trabalhadora estará sempre um passo atrás de um desafio que lhe fora colocado, desde Marx e a I Internacional, que é o de se organizar com toda independência.
Vale assinalar que não estamos na presença de um tema de irredutível ineditismo. Já vai longe o tempo em que esse debate foi principiado. Por que, então, retomá-lo? Circunstâncias trágicas, de alguma maneira, nos fizeram remexer no velho baú da vovó. O passamento de Hugo Chávez (1), presidente da Venezuela e a comoção daí resultante, bem como as discussões que se reabriram nos arredores e sob o impulso do drama humano, tudo isso combinadamente, trouxe, uma vez mais, a triste verdade: entre os trabalhadores e a realização dos seus interesses de classe percebe-se nitidamente um bloqueio histórico: o da colaboração de classe.
Longe da sistematicidade necessária (e desejável), aqui, aspiramos uma análise satisfatória de dois embaraços à organização independente do proletariado, o latino-americano, em especial. Essas duas obstruções históricas são, sob decisivos aspectos, os governos burgueses nacionalistas (Vargas, Perón, Jango, Chávez, Correa etc.) e as frentes populares (Allende, Lula, Morales, dentre outros). Esse infausto destino, no entanto, não é obra do acaso. Em larga medida, é proveniente de um itinerário teórico, político e programático de um reformismo ilustrado que não se enfada em vender aos trabalhadores o que não pode ser outra coisa senão o que denominamos de afinidades indevidas.
São dessas afinidades indevidas que tratamos nesse artigo.
Trotsky e o bonapartismo na América Latina: um nacionalismo espremido
O nacionalismo burguês, ao longo do século XX, na América Latina, revestiu-se de traços bem peculiares: adotou uma feição bonapartista, semidemocrática, com forte apelo de massas e eventuais atritos com o imperialismo. Vargas, no Brasil e Perón, na Argentina, adentram a essa moldura, sem grandes contratempos. Na presente etapa da luta de classes, acompanhamos a recente experiência com Chávez, na Venezuela, cujas linhas gerais do seu condomínio governamental o aproximam dos casos-arquétipo, sem, no entanto, com eles se confundir inteiramente.(2)
Certa sociologia burguesa se contenta em aplicar a categoria de populismo ao fenômeno e fechar por aí as suas pesquisas. É interessante notar que o termo tem sido empregado para classificar diferentes tipos de governo. Para não ir muito longe, é suficiente relembrar que a expressão populista tem sido empregada para governos e personagens tão díspares como Vargas, Jânio, Goulart, Collor e Lula, no Brasil. Constata-se também o uso da noção em tela para avaliar jocosamente qualquer governante que tome por impulso uma maior aproximação com as camadas populares. Tendo em vista o caráter um tanto quanto espalhado desse conceito, tendemos, aqui, a tomá-lo apenas como colateral, uma definição de segunda ordem, praticamente o destituindo como parâmetro de análise.
Ao que tudo indica, precisaremos de outros critérios e normas. Para efeito da análise posterior, ambicionamos trazer a lume um corpo de pesquisas que, tampouco, cabe em uma compreensão puramente intelectual e acadêmica do problema. A nosso ver, contudo, esse material tem o condão de constituir um quadro inicial basilar e capital.
Entre os anos de 1938 e 1940, Leon Trotsky, um dos líderes da Revolução de Outubro na Rússia, residiu no México, único país que se dignou a recebê-lo. É nesse contexto que surge o conceito de bonapartismo sui generis aplicado a governos latino-americanos – como o do general Cárdenas (então presidente mexicano) – que se vêem comprimidos entre as reivindicações populares e as pressões imperialistas. São governos que, em geral, oscilam entre essas linhas de forças e, sob determinadas condições, vêem-se compelidos a adotar medidas que os conduzem a choques momentâneos com o imperialismo. Esse é o berço principal das modernas correntes burguesas nacionalistas latino-americanas.
Ainda que careça de desenvolvimento, adiantamos que o caráter bonapartista dessas burguesias decorre sobremaneira do seu temor quanto aos propósitos que fluem da ação direta do proletariado industrial, dos setores médios assalariados empobrecidos, dos camponeses, indígenas e demais camadas infortunadas pelo passo travado do capitalismo dependente. De resto, o seu limite se expressa em uma atitude que lhe é típica: jamais atua a contrapelo da ordem. Não por acaso, algumas dessas lideranças burguesas nacionalistas, socialmente falando, se originaram no útero de uma corporação que é sinônimo do respeito à ordem: as FFAA. São exemplares os casos de Cárdenas, Perón e Chávez.
Historicamente, o bonapartismo (3) surgiu para arbitrar conflitos que se estabeleceram sem encontrar uma solução pelas vias representativas que a burguesia criara historicamente para dirimir questões que, direta ou indiretamente, lhes dizia respeito. O caso do sobrinho de Napoleão, examinado por Marx em o 18 brumário, é sintomático dessa tendência burguesa.
De plano, fica uma pergunta no ar: qual o sentido do conceito acrescido da expressão sui generis? Para Trotski (2000), em linhas gerais, o regime bonapartista da América Latina encerrava laços profundos com o seu congênere clássico, mas tinha uma particularidade que o distinguia do seu modelo europeu. Tratava-se de um momento em que o Estado também pairava acima das querelas de classe e por essa via assegurava a estabilidade política necessária para a desenvolução do capitalismo. Aplicava, porém, uma estratégia que o impulsionava a uma situação de relativo antagonismo com os interesses imperialistas. O exemplo emblemático, estudado pelo velho revolucionário russo, e como já anteriormente sugerido, foi o do general Lázaro Cárdenas Del Rio que, à frente do Estado mexicano, aplicou uma política nacionalista, entrando em rota de colisão com o imperialismo britânico. Nas décadas seguintes – em países tão diferentes como Brasil, Argentina e Peru – foram observados casos muito semelhantes de regimes semidemocráticos, isto é, bonapartistas sui generis, que se colocando acima da luta de classes, resistiam parcialmente à dominação imperialista.
Esse exemplo é uma demonstração de como o velho revolucionário procurou aplicar criativamente a teoria e o método de Marx. Tratava-se de tomar o modelo teórico de forma maleável e não como um saber irrespondivelmente talmúdico. Ou seja: o caráter típico de um fenômeno é típico somente em relação a uma determinada realidade. Em consequência, dever-se-ia admitir que Trotsky procurasse o desvelamento da particularidade da linha de evolução do bonapartismo, um fenômeno que deixou de ser unicamente europeu, mas que ao transbordar as suas fronteiras adotou as formas típicas que diziam respeito à realidade de outras regiões do planeta. Nesse sentido, é suficientemente plausível a fórmula do bonapartismo sui generis no que concerne à América Latina.
Os benefícios particulares dessa análise é que esta responde à concretude de uma realidade dada e isso é o que levou Trotsky, de modo intencional, a tornar a teoria mais operatória, aplicando-a sem desconsiderar a especificidade da América Latina, da sua cultura e das suas instituições.
Nessa direção, de caso pensado, o velho Trotsky utiliza a sua passagem pelo continente americano para discorrer sobre temas tão ligados como o papel da burguesia latino-americana, as suas relações com o imperialismo e a sua postura ante a possibilidade da ação revolucionária. Essas reflexões, de modo veemente ou de forma mais mediada, encerram certo grau de utilidade em relação ao Brasil, o que tentaremos demonstrar a partir de agora.(4)
Em termos categóricos, a burguesia latino-americana, e a brasileira, em particular, se estabeleceu social, política e economicamente associada aos capitalistas dos países de economia central, já com esta devidamente assentada em uma ortodoxia petrificada: a da reação em todos os planos. Antes, fatos e frases dialogavam, ainda que de modo quebradiço; agora, tomam-se as frases por fatos. Em suma, a burguesia das economias dependentes – espremida entre o imperialismo e o proletariado – prefere se aliar com o latifúndio, internamente, e, apesar de uma ou outra escaramuça com o opressor externo, celebra com ele uma associação da qual resulta um nexo histórico insidioso. Assim, a burguesia aborígine se deixa resignar aos limites impostos pela ordem imperialista vigente. Contenta-se com a função subalterna que cumpre. Explicitamente, não rege; deixa-se reger. Apraz-se em ser parte de uma orquestra sem ambicionar o lugar de solista ou regente.
Há de se argumentar, com justeza, que existiram (ou existem) alguns momentos de radicalidade no terreno das contendas das burguesias locais com o imperialismo, conforme ilustra o caso mexicano das primeiras décadas do último século. Acontece que os burgueses mexicanos não só não conduziram a revolução democrático-burguesa até as últimas consequências, como a fizeram retroceder até o limite de forjar, como o seu maior legado, o Partido Revolucionário Institucional (PRI), cujo DNA encerrava uma natureza institucional relativa combinada com a ausência absoluta de cromossomos revolucionários. Na verdade, foram remanescentes do PRI que patrocinaram, pelo lado do México, a adesão deste país à jaula de ferro da Área de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA). Outros casos, como o do Peronismo ou do Varguismo, patinaram, desceram ladeira abaixo e restringiram a sua assiduidade aos etéreos manuais de história sobre as tragédias latino-americanas. Hugo Chávez, apesar da retórica antiimperialista, nunca deixou de estabelecer sólidos laços comerciais com os EUA, e, em geral, apresentava as potências imperialistas européias como se elas se constituíssem em uma verdadeira alternativa ao “colosso do norte”.
Das formulações clássicas do marxismo acerca do problema, as contribuições de Trotsky contêm um vigor facilmente explicável: o período em que ele esteve no México e pôde examinar, in loco, as debilidades de um projeto revolucionário independente da burguesia regional. Examinando as questões a partir de uma localização privilegiada, uma vez que o México era cenário de um processo em que a burguesia nativa conjugava acordos gerais com tensões nada insignificantes em relação ao imperialismo, o velho revolucionário russo, embebido da vivência, conseguiu perceber, com maior precisão, os desconcertantes paradoxos da burguesia latino-americana. Para ele, os burgueses aborígenes, por
“(Sua) debilidade geral e sua atrasada aparição os impede alcançar um mais alto nível de desenvolvimento que o de servir a um senhor imperialista contra outro. Não podem lançar uma luta séria contra toda cominação imperialista e por uma autêntica independência nacional por temor a desencadear um movimento de massas dos trabalhadores do país, que por sua vez ameaçaria sua própria existência social” (Trotsky, 2000, p.93).(5)
Além disso, a burguesia da periferia da América não se furta a uma acirrada competição contra o proletariado e o campesinato pobre, aliando-se, em seu sentido mais profundo, à escória dos proprietários da terra: os latifundiários. Nesse rumo, o horizonte da revolução burguesa mais do que nebuloso se torna um horizonte gangrenado. A burguesia autóctone se mostra incapaz, no plano externo, de conduzir a nação contra a sujeição imperialista e, no que estar dentro, expõe à vista a sua incapacidade de levar a cabo outra tarefa democrática essencial: a extinção do monopólio da terra. Num certo nível, o ajuste com os minúsculos grupos de fazendeiros desvenda a escassez de disposição para tornar real o que é necessário e atesta a ausência de compromisso com o usufruto democrático do solo. Em síntese: os processos locais não se revelam como revolução, mas, com demasiada condescendência, drama histórico protagonizado por uma classe impotente e, dessa maneira, manifesta-se na forma de um deplorável simulacro.
Com um panorama como esse, o remate de Trotsky é peremptório: A burguesia nativa “é impotente de nascimento e organicamente ligada por um cordão umbilical à propriedade agrária e ao campo imperialista” e desse modo “incapaz de resolver as tarefas históricas de sua revolução (2000, p.273-274).(6) Partindo da análise dos burgueses mexicanos, não é estranho, portanto, que conclua acerca das burguesias latino-americanas: “Nascidas tardíamente, confrontadas a uma penetracão imperialista, e ao atraso do país, não podem resolver com êxito às tarefas que suas equivalentes nos países avançados realizaram já faz muito tempo” (idem, p. 275)(7)
Sendo assim, na perspectiva marxista há uma nítida impossibilidade de falarmos de uma revolução burguesa tardia em países como o Brasil, Venezuela, Equador e demais nações subordinadas. Essa é uma contribuição preciosa nascida da pena de Trotsky e que carece de ser devidamente reconhecida. É mister citar a sua reflexividade acerca desse temário por que, à época, prevalecia um ponto de vista diametralmente oposto e este, com efeito, esteve consignado nas políticas dos partidos comunistas regionais e em suas desenfreadas buscas pelo elo perdido de uma burguesia a quem caberia cumprir um papel progressivo no patíbulo da história latino-americana. Para Leon Trotsky, a etapa das revoluções burguesas, e, por conseguinte, da ação progressiva da burguesia, em geral, já estaria definitivamente vencida e sepultada. Realçando a teoria da revolução permanente, o velho revolucionário entendia que o papel de levar a cabo as tarefas da revolução burguesa – indefinidamente adiada e relegada às calendas gregas pelos próprios burgueses latino-americanos organizados em classe – caberia unicamente ao proletariado liderando as nações oprimidas. Os seus últimos textos somente reforçaram essas convicções. Por sua vez, as tragédias históricas e políticas resultantes das políticas dos PCs latino-americanos apenas corroboraram a justeza das teses trotskystas. Nesses termos, o golpe militar de 1964, no Brasil, é um exemplo emblemático de como a fé na consequência democrática de uma pretensa burguesia progressista tende a produzir verdadeiras catástrofes históricas.
A derrocada dos governos militares na América Latina não submeteu a política de segmentos majoritários da esquerda – de buscar um “burguês progressista” – a uma crítica empírica e teórica. Esse era o enfoque dos PCs latino-americanos antes das experiências dolorosas com o militarismo celerado. Hoje, esse prisma está mantido.(8) O apoio ostensivo aos governos de Hugo Chávez (Venezuela), até o seu mítico e dramático falecimento, e Rafael Correa (Equador), dentre outros governos burgueses nacionalistas, demonstra – de modo sintomático – as relações entre as práticas do presente e as velhas tradições; evidencia singularmente o legado cuja substância se encontra na ideia da existência de um estrato da burguesia bafejado por seu tom progressista (democrático e nacional).
Trata-se de um legado decisivo e catastrófico, visto que a possibilidade de se construir uma alternativa dos trabalhadores – independente de qualquer dos estratos burgueses – fica condenada a respirar debilmente em uma zona repetitiva de colaboração de classes.(9) Ademais, reflete uma convergência particular de circunstâncias em que o atual momento do nacionalismo latino-americano pode ser objetado até por se revelar como um simples vestígio de um passado, por si, caracteristicamente pouco glorioso. Repropor as antigas estratégias dos nacionalistas burgueses pré-ditaduras é retomá-las não em sua ancestral significação, mas tão-só como uma desoladora caricatura.
A clássica âncora conceitual que sustentou o muito mal denominado “populismo” parece pesar sobre os ombros de Correa (como se tornara molesto para Chávez) e demais legatários das assimetrias vigentes. As medidas que estes adotam mostram-se reféns de um nacionalismo burguês arrefecido e restringido. Parece facilmente observável que as relações entre as burguesias locais e o imperialismo assomam cada vez mais desprovidas de contaminações, ainda que um lance de absoluta pureza não esteja posto nem para hoje e nem para o futuro. Há uma lacuna que sugere um círculo de problemas, mas a solução burguesa-nacionalista – importa assinalar brevemente – tornou-se não apenas curta, circunscrita; semelhantemente tornou-se, no presente, até muito mais do que antes, um beco sem saída histórico.
As dívidas externas da Venezuela (aproximadamente 90 bilhões de dólares em 2012) e do Equador (cerca de 10 bilhões de dólares no mesmo período) seguem sendo tratadas mais retoricamente do que por meio de medidas concretas e incisivas, ainda que o segundo pais tenha adotado em relação à chamada dívida externa comercial uma postura menos subserviente em comparação com o primeiro. Nessa polêmica, todavia, a dessemelhança é unicamente de grau. Do ponto de vista da análise dos fatos, o antiimperialismo das correntes burguesas nacionalistas exibe um traço mais falador do que prático.(10) Como já expusemos, o que interessa ressaltar é que a burguesia nacionalista permanece refém dos seus limites históricos e incapaz de oferecer uma saída consequente à variedade de problemas para a qual ela só tem a conceder fogueiras brandas para iluminar a longa noite da América Latina.(11)
O lugar da frente popular na história
O VII Congresso da Internacional Comunista, ocorrido em 1935, é um marco na história da organização. Aqui, a Frente Popular é elevada à categoria de tática privilegiada frente a um momento caracterizado pela vertiginosa ascensão do nazi-fascismo. No conjunto, essa expressão taticista se encontrava em nítido e inexorável contraste com a orientação ultra-esquerdista que pautara os passos da IC no período imediatamente precedente.
De conteúdo, a Frente Popular é um governo de colaboração de classes e, ainda que dialeticamente, tal componente conteudístico se traduz no terreno da forma. Nas palavras de Moreno (1991), a forma de todo governo frentepopulista é a de um governo onde estão partidos ou dirigentes burgueses e partidos operários.
As primeiras – e que se tornaram clássicas – experiências dessa tática se deram na Espanha e França. Analisando este segundo caso, Leon Trotsky escreveu: a “Frente Popular é uma aliança do proletariado com a burguesia imperialista, representada pelo partido radical, e outros despojos da mesma espécie e menor envergadura” (TROTSKY, 1994:117).
Acreditamos, portanto, que se estabelece nitidamente a significação histórica mais profunda da política frentepopulista: a aliança do proletariado com um setor da burguesia para fazer frente a outro setor diretamente burguês.
Nos dois casos – Espanha e França (12) – essa política abriu caminho, não para amplas conquistas do proletariado, mas franqueou trilhas e mais trilhas para o áspero galope da reação. Laconicamente, esse é o balanço.
Ao findar a Segunda Guerra Imperialista, no entanto, a tática já se transformara em estratégia e, em diversas partes do planeta se aplicou com uma rotina acachapante.(13) As derrotas dos anos 1930 ficaram para trás. Os sobreviventes que enterrassem os seus mortos. In nuce: tudo parecia um ponto sem retorno.
Na América Latina, ocorreram situações que podem ser citadas como esboços da aplicação dessa política. No Brasil, a Aliança Nacional Libertadora, surgida em março de 1935, era uma frente popular em potencial,(14) e, no Chile, a partir da eleição de outubro de 1938, que conduziu Aguirre Cerda ao governo, apareceram manifestações iniciais do frentepopulismo latino-americano. De feito, os PCs, em cada lugar e no seu devido tempo, procuraram implementar essa linha como se ela fora um desenlace natural da realidade.
Essa dinâmica, do ponto de vista da análise dos fatos, prevalecerá também em cada país da região ao término da conflagração belicista. A ideia de uma burguesia progressista se incrustará na ação política dos comunistas latino-americanos. É interessante notar que essa conduta política levou a que os comunistas cubanos chegassem a apoiar Fulgêncio Batista. No Brasil adotou uma linha de oscilação quanto ao varguismo e, paradoxalmente, aliou-se aos “liberais” argentinos para combater Perón.
No caso brasileiro, nos anos 1960, o PCB apoiou João Goulart, abrindo mão de qualquer veleidade no terreno da independência de classe. Essa postura de obediência voluntária ao governo Jango, em larga medida, explica a inércia do partido diante do golpe, uma vez que aguardava que o dispositivo militar governista impedisse a consumação de qualquer ato que rompesse com a legalidade constitucional. Houve uma simetria catastrófica entre a apatia do condomínio governamental liderado pelo PTB e a impassibilidade das lideranças mais reconhecidas do “Partidão”, notadamente de Luis Carlos Prestes.
Uma das críticas mais contundentes veio exatamente de um intelectual pecebista: Caio Prado Jr. Para ele, os episódios vinculados ao golpe de Estado de 1964, revelaram o magro arsenal teórico e de diretrizes políticas do partido. Em seu escrutínio crítico, Prado Jr. atacou rotundamente à categoria de “burguesia progressista” (presente em todos e cada um dos documentos do Partido Comunista Brasileiro pós-1935), esgrimindo juízos muito duros contra a prática de se entregar “diploma de progressivo” a esse ou aquele elemento e/ou setor da classe dominante brasileira. Convém assinalar que a noção de “burguesia progressista” (ou “nacional”) rasgava o caminho para que se adotasse como estratagema a política da Frente Popular.(15)
Para arrematar a sua censura às insuficiências teórico-políticas do PCB, o autor de a Revolução brasileira escreveu:
“Atadas como se encontravam ao capital burocrático, sem definição programática muito precisa, as forças progressistas sucumbiram ao golpe, praticamente sem resistência, porque não contaram, no momento decisivo, com o apoio e o concurso ativos de suas bases naturais: o povo trabalhador” (PRADO JR., 2004:129).
Note-se, desde logo, que a obsessão de fisgar um estrato “democrático”, “progressista” e “nacional”, regra geral, esteve sempre como esteio impartível do plano, da política e do método típicos do frentepopulismo. O ensaio brasileiro mostrou somente uma nuança do problema. Considerando escrupulosamente a situação em tela, dir-se-ia que o mais provável é que tivemos uma frente popular em potencial; quer dizer: esta existiu mais como possibilidade, anelo e rascunho. Buscando formular o problema fundamental, ter-se-ia um governo burguês nacionalista que se escorava em um comunismo timorato sem, entretanto, se estender como governança frentepopulista no sentido clássico do marco categorial.
Nestes termos, o caso mais emblemático só se daria quase dez anos depois, e não exatamente no Brasil, mas no país de maior tradição civilista da América Latina: o Chile. O golpe militar que derrubou o governo de Salvador Allende representou não somente o trágico desenlace da “via (pacífica) chilena ao socialismo”, mas o acréscimo de um novo número, de inaudita intensidade, às estatísticas das calamidades resultantes da aplicação da tática frentepopulista. Nesse caso, o presidente morreu no Palácio de la Moneda com uma arma na mão. Na ocasião, ao que tudo indica, a tragédia adquiriu contornos de um ineditismo bravio.
Com efeito, minadas por seus próprios paradoxos, as frentes populares, historicamente falando, findam – quase sempre – em um banho de sangue. No que toca à experiência da Unidade Popular (UP), no Chile, essa tática, elevada à categoria de estratégia inconteste, descortinou caminhos – por vias implícitas e tortas – para contra-revolução pinochetista (diga-se, de passagem, que Augusto Pinochet era ministro do governo Allende).
Para entendê-los – frentes populares e seus defensores – não custa rememorar que nem mesmo o balanço das tragédias se fez suficiente para lograr uma autocrítica e uma mudança de orientação. Por isso, consideramos que, para eles (os ideólogos do frentepopulismo), a sua tática privilegiada se tornou um princípio, uma estratégia, e, por conseguinte, um ponto sem retorno em suas trajetórias.
Diferentemente do passado embebido em sangue, as frentes populares mais recentes conseguiram não apenas concluir os seus mandatos, mas conseguiram inclusive reproduzi-los por mais anos mediante o estatuto da reeleição (Lula, Morales etc.). A reação democrática conseguiu adquirir um tal grau de amplitude, numa conjuntura de regressão econômica e ideológica, que esse tipo de governo, ainda que visto com desconfiança pelo imperialismo e a burguesia, já não provoca o mesmo nível de inquietação perceptível em outros momentos da história. O sentimentalismo liberal, que parece haver tomado conta dos corações desses governos, talvez nos ajude a entender os seus programas drasticamente limitados se, por exemplo, compararmos esses documentos programáticos com o da Unidade Popular do Chile.
Tampouco cabe não observar a adesão de outros tantos segmentos do campo da esquerda às teses frentepopulistas. Essa postura já não é monopólio dos PCs. No Brasil, há um caso emblemático: o Partido dos Trabalhadores (PT).(17) Os seus arautos preconizam que a chegada de Luis Lula da Silva à presidência da república (2002) se fez fundamentalmente por uma aliança política simbolicamente traduzida na união entre um operário metalúrgico e um megaempresário do ramo têxtil. De feito, a Frente Brasil Popular (1989) já apontava cabalmente nessa direção, não obstante a coligação se realizar entre a representação operária e não propriamente a burguesia, mas a solerte sombra desta classe materializada na figura de José Paulo Bisol (PSB), vice da chapa presidencial. Em 2002, todavia, a Coligação Lula Presidente colocou de lado qualquer veleidade classista e adotou – agora, de forma definitiva – o frentepopulismo como estratégia. Não acidentalmente, PCB e PCdoB compuseram a coalizão. Isso tem lá sua importância, haja vista que eles podem dizer com absoluta serenidade: no Brasil, tudo começou conosco!
Pense também, a título de exemplo, o caso da Bolívia, presidida por Evo Morales, uma liderança do campesinato daquele país, acaudilhando amplos setores das massas urbanas. De um modo geral, ali aconteceu uma circunstância muito assemelhada à brasileira. Um líder sindical e popular, ainda que também campesino e indígena, Morales chegou à presidência da república em torno de um projeto de Frente Popular. O slogan principal do seu partido era “somos povo, somos MAS”. O que é essencial frisar é que, diferentemente do PT, o Movimento ao Socialismo, em suas origens, já adotava uma postura explicitamente frentepopulista, embora adotando medidas consideradas mais avançadas que as encaminhadas, primeiro por Lula da Silva e depois por Dilma Roussef, no Brasil. O próprio vice de Morales era um sociólogo e um acadêmico e não um empresário, o que confere ao governo boliviano um lugar simbólico mais arrojado em paralelo com o brasileiro. As estatizações, ainda que limitadas, ajudam a colocar Evo Morales em um lugar de maior vulto na consciência do ativismo social. Seja-nos permitido, no entanto, recordar que as medidas adotadas por Lula e Morales estão longe daquelas que foram desposadas por Salvador Allende, no início dos anos 1970, em terras chilenas.(18)
Nas condições históricas dadas, o programa da Frente Popular é continuamente rebaixado e adaptado à ordem do capital. Os efeitos dessas mudanças são perceptíveis. Tais governos se mostram mais palatáveis ao imperialismo. Lula da Silva foi tratado por Bush de “amigo” e por Obama de “o cara”. Se a Frente Popular existiu como tragédia, hoje se realiza como farsa.
Fica evidente, queremos crer, que a quadra histórica é outra. A reação em toda linha (que marcou os anos 1990), e fortemente questionada na dobra do século, ainda não foi derrotada. Como se sabe, os trabalhadores já não guardam uma relação de correspondência com a estratégia socialista. Mais do que um marco histórico formal, estamos frente a um quadro em que os que se organizam e lutam para mudar radicalmente a sociedade se deparam com situações, em geral, menos propensas às transformações mais profundas.
Nesse contexto, amplia-se o arco dos aderentes à causa frentepopulista e, semelhantemente, constrange-se e se restringe o seu programa, admitindo (como nunca), expressis verbis, a eternidade da ordem capitalista, esperando assim todos se salvarem no dia do juízo final.
Caso estudemos detidamente, no caso brasileiro, as experiências de frentes eleitorais espalhadas em estados e cidades, os mais variados, talvez possamos elucidar com maior maestria, a significação mais profunda dessa tática que torna os agrupamentos políticos majoritários da esquerda em adeptos de uma orientação que poderia ser resumida em uma palavra: vale qualquer coisa.
Por sua parte, passados 78 anos do inolvidável VII Congresso da III Internacional, o elemento categorial da frente popular, a tristemente famosa “injunção tática” , naturalizou-se de tal modo que o classismo parece haver encontrado um ponto de estrangulamento. Isso parece tornar o desafio da independência de classe dos trabalhadores uma tarefa de proporções descomunais. O pouco que disso se sabe parece encerrar quase o sentido de um elo perdido. Paradoxalmente, são as afinidades indevidas que assumem a aparência de afinidades eletivas. Isso não exime, evidentemente, os apologetas dessa política das suas responsabilidades, mas tão-somente demarca e esclarece o tamanho das suas despesas a pagar.
Nestes termos, mais do que nunca, o lugar da Frente Popular guarda estreita relação com a preservação do ordenamento capitalista. Em seu quase inenarrável e indizível trajeto, sempre haverá “um burguês progressista e nacional” com quem conformar um campo “democrático e popular”. Nesse teorema, a burguesia é a banda democrática (José de Alencar) e a esquerda é o rosto popular (Lula) do consórcio policlassista. Se cada uma, hipoteticamente, puxa para o seu lado, a questão, a saber, é: para onde vai essa frente? Em linguagem popular, a regra tem sido uma só: o proletariado tem engolido a brasa, enquanto a burguesia tem comido a sardinha.
Considerações finais
A lógica que ordena o apoio do reformismo ilustrado, tanto ao nacionalismo-burguês (do qual germina o bonapartismo sui generis), quanto à arquitetura frentepopulista, se sustenta na mesma escora: a ideia de um campo progressista que abarca segmentos nacionalistas, democráticos e até antiimperialistas da classe dominante.
Nessa lógica, há sempre um inimigo imediato a enfrentar. Consequentemente, a estratégia de se construir uma alternativa independente da classe trabalhadora será sempre inarredavelmente impelida a um futuro nublado e ininteligível. Quer dizer: a estratégia se sujeita à tática. No empuxo da política, efetivamente, a tática se transforma em estratégia.
Logo, atente-se bem, há sempre de se levar a cabo um alinhamento inquebrantável com um setor progressivo para fazer frente ao inimigo imediato, conformando um campo, necessariamente, progressista.
Eis o resumo da ópera. No conjunto, essa é a linha que tem preponderado no reformismo ilustrado desde meados dos anos 1930. De feito, o reformismo clássico já desenhara essa orientação desde a dobra do século XIX para o XX. Apenas para dar um exemplo: a II Internacional – por intermédio de algumas das suas seções federativas e de alguns dos seus tribunos e publicistas – foi pródiga nessa elaboração colaboracionista.(19)
Não há incompatibilidade dos novos tempos com a teoria, assim pensa o reformismo ilustrado. Há situações em que os seus adeptos encontram dificuldade para justificar a coalizão com esse e aquele segmento da burguesia. Como justificar a aliança com um mega-empresário do ramo têxtil – como José de Alencar, no Brasil, em 2002 e 2006? Manifestamente, esgrimem argumentos que giram em torno da excepcionalidade do momento e da necessidade de derrotar o neoliberalismo etc. O inimigo é outro, a tática é a de sempre. E ai de quem se recusar a aderir a esse novo campo progressista!
Isso não faz senão declinar inexoravelmente o campo que propugna o critério da luta de classes e da necessidade de se construir um instrumento independente da classe trabalhadora. Nessa perspectiva, seguidamente, e, em todos os níveis, é preciso entender e explicar pacientemente, à luz da história, e a cada passo da realidade, o verdadeiro significado da teoria de um campo progressista, de onde vem, como vem e a quem serve.
Nas condições históricas dadas, em que as tarefas do proletariado parecem haver se tornado ainda mais difíceis, mesmo no terreno do enfrentamento ao bonapartismo sui generis (nacionalismo burguês) e ao frentepopulismo, mais do que antes, seguem atuais as palavras de dois velhos revolucionários alemães: “Para nós, não se trata de reformar a propriedade privada, mas de aboli-la; não se trata de atenuar os antagonismos de classe, mas de abolir as classes; não se trata de melhorar a sociedade existente, mas de estabelecer uma nova.” (MARX; ENGELS, s/d: 86/87)
Referências bibliográficas
MARX, Karl, ENGELS, Friedrich. Mensagem do comitê central à liga dos comunistas, in: obras escolhidas, São Paulo: Editora Alfa-Ômega, s/d.
MORENO, Nahuel. A traição da OCI, São Paulo: Instituto José Luis e Rosa Sundermman, 2003.
_____ El revisionismo: princípios e política, in: Escuela de cuadros; Nuestra experiencia com el lambertismo (Nahuel Moreno – Mercedes Petit), Buenos Aires: Crux Edicionoes, 1991.
PRADO JÚNIOR, Caio. A revolução brasileira, 7ª ed., São Paulo: Brasiliense, 2004.
TROTSKY, Leon. Escritos latino-americanos, Buenos Aires, Argentina: CEIP, 2000.
______ Aonde vai a França, São Paulo: Editora Desafio, 1994.
Notas:
(1) O passamento de Hugo Chávez, em 5 de março de 2013, decerto, é que deu azo para que retomássemos essa discussão. Não pretendemos, porém, abordar esse tema especificamente. Na realidade, as circunstâncias melancólicas que se instalaram na Venezuela apenas nos deram a oportunidade de novamente pautar uma temática que, a nosso ver, é histórica e estratégica para as forças políticas da região e que tem a ver com as orientações de colaboração de classes que, ao longo de quase 80anos, têm marcado (a ferro e fogo) a trajetória latino-americana. Eis o verdadeiro objeto desse artigo,
(2) Um pesquisador escrupuloso sabe que a morte de Hugo Chávez não significa, forçosamente, o fim do chavismo, mas, certamente, implicará em mudanças nada desprezíveis em seu cerne, porquanto o personalismo é uma característica muito importante dessa corrente. O desaparecimento do líder não tem o mesmo sentido da extinção do movimento que, em regra, se constituiu à sua volta. O trabalhismo (Vargas) e o peronismo são expressões desse fenômeno. Nicolás Maduro começa a aparecer como o legatário da herança chavista, embora seja prematuro qualquer tipo de afirmação conclusiva.
(3) O bonapartismo tem uma particularidade que parece contrariar a teoria marxista das classes, uma vez que a correspondência entre a dominação de classes e o Estado parece prescindir do mais diminuto sentido. No fundo, trata-se de uma modalidade política própria de momentos de crise quando a irresolução se instaura de permeio entre as diversas facções das classes dominantes. Por isso, ele é um regime político de exceção. Não nega o capitalismo, mas o defende por métodos menos convencionais, prescindindo, por exemplo, das sutilezas e elasticidade do regime democrático-burguês. No caso específico da América Latina, o bonapartismo sui generis se apresenta, em larga medida, associado a um regime político semidemocrático.
(4) Nos próximos seis parágrafos nos apoiaremos em um estudo que fizemos acerca do conceito de revolução em Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes e cujos resultados foram apresentados em um artigo publicado pela revista Outubro.
(5) Essa citação foi por nós diretamente traduzida de uma passagem da miscelânea de textos de Trotsky “Escritos latino-americanos”, lida diretamente do espanhol.
(6) Idem.
(7) Procedimento similar aos dos itens 5 e 6.
(8) A centralidade desse discurso é parte da prática política do que temos aqui chamado de reformismo ilustrado, estabelecendo uma analogia com o seu homônimo da época da transição revolucionária do feudalismo para o capitalismo. Em fins do século XVIII, diferentemente dos revolucionários, os reformistas ilustrados temiam as ações das massas mais do que qualquer outra coisa. Em última análise, defendiam transições moderadas e controladas desde a cúpula. Para entendê-los, basta dizer que entre eles e os revolucionários de então havia uma distinção tão cabal quanto a que diferia um Robespierre de um marquês de Pombal. No caso presente, os reformistas ilustrados da esquerda preconizam uma fé imensa na existência de um campo progressivo para o qual não deixam de ampliar esforços com vistas a arrastar as massas para o interior dessa esfera mágica. Por outro lado, a expressão ajuda a diferenciar o reformismo nascido do VII Congresso da I.C do que chamamos aqui de reformismo clássico – que, de algum modo, deriva do lenho da II Internacional.
(9) Quando a classe trabalhadora se depara com personagens nacionalistas carismáticas – como pode ser observado no caso de Hugo Chávez – as dificuldades de se construir uma alternativa classista independente, por parte dos explorados, se agigantam; e, nesse torvelinho insano, decerto, o discurso do reformismo ilustrado – que está sempre em busca de um burguês progressista para formar com ele um único campo – se torna uma muralha, ainda que toda muralha, com efeito, encerre em segredo um sentimento de vulnerabilidade.
(10) É evidente que esse antiimperialismo retórico, em certas oportunidades, assume uma postura prática (nacionalizações parciais, expulsão de diplomatas norte-americanos etc.) Mesmo assim, esses fatos eventuais apenas confirmam a dinâmica não-sistemática desse “antiimperialismo burguês”. No caso do chavismo, na Venezuela, o seu discurso acerca do socialismo do século XXI engendra ilusões de que esse posicionamento frente ao imperialismo encerra um conteúdo resolutamente principista e estratégico. Eis porque toda a confusão que se formou em torno dessa corrente que, de conjunto, se fortaleceu nos últimos anos. Também neste caso, não custa rememorar que os EUA seguem como um dos parceiros prioritários do Estado venezuelano.
(11) No caso do chavismo, não devemos minimizar o seu potencial de atração de amplos setores de massas latino-americanos. Diferentemente do peronismo (menos) e do varguismo (mais), que praticamente ficaram confinados aos seus países de origem, a corrente política chavista, até por conta da falência (não desaparecimento) do stalinismo, e até mesmo pelo apoio deste (e de agrupamentos que reivindicam as tradições trotskystas), adquiriu uma feição regional nada desimportante. Como não há vácuo na política, o chavismo tem ocupado um espaço significativo na América Latina. Esse fato torna ainda mais dramática e urgente a necessidade histórica de se avançar nas questões estratégicas que dizem respeito tanto a revolução como ao socialismo. Tal urgência se explica até quando se observa a compatibilidade entre o que costumeiramente se chama de “socialismo do século XXI” e a preservação – quase natural – da ordem capitalista.
(12) As ascensões ao poder de Leon Blum na França e Largo Caballero na Espanha não abriram as comportas para grandes triunfos do proletariado, nem mesmo para “unificação da nação”, mas se constituíram em senhas para que a reação encontrasse a cabeça da classe trabalhadora ao alcance do cutelo. Na França, se deu o acordo com a Inglaterra, Itália e Alemanha, que alentou ao nazifascismo. Na Espanha, a resultante não foi outra senão o adensamento do franquismo. Esses foram os primeiros exemplos práticos da política de Frente Popular.
(13) Provavelmente, a linha contivesse algo muito além do contingencial e da tática. Um eminente historiador de nacionalidade britânica (embora nascido em Alexandria), que não pode ser acusado de ojeriza pela política das frentes populares, a esse respeito, escreveu: “Mas, ainda que formulada com cautelas e amplas reservas, era evidente que a nova linha pretendia ser mais do que um simples intermezzo tático” (HOBSBAWM, 1987:304).
(14) No Brasil, a ANL se constituiu no mesmo ano em que a I.C aprovou em seu VII congresso a frente popular como “injunção tática”. A impressão, no entanto, era que nos trópicos os PCs ainda não teriam trocado de passaporte e pareciam ainda viajar obedecendo ao velho roteiro (“radical” e não moderado). Nesse sentido, a tentativa de derrubar Vargas (1935) manifesta a ambiguidade de um período em que as velhas e novas orientações ainda se mostravam um tanto quanto perdidas. Caso essa hipótese secundária detenha algum grau de consistência, não custa, entretanto, recordar que as hesitações – se é que existiram – não perduraram por muito tempo e viraram pó. Os ajustes de classe logo se imporiam como uma regra quase inexpugnável.
(15) Em alguns momentos da história, as linhas de fronteira entre nacionalismo burguês e frentepopulismo são dramaticamente tênues. Dir-se-ia que, em determinados instantes, certos governos burgueses nacionalistas se exprimem praticamente como frentepopulistas em potencialidade. Talvez o exemplo de Perón exija estudos mais apurados. Moreno (1991) levantava a hipótese de tratá-lo como frente popular em forma de partido, empregando um método de “especulação” muito próximo do que Trotsky cogitara em relação ao governo Cárdenas. No limite: as balizas entre um condomínio governamental nacional-burguês e uma frente comum de colaboração política de classes socialmente antagônicas, por meio de suas representações, são indecisas e de pouca espessura. Nasce daí certa licença poética no que toca as hipóteses de trabalho.
(16) Há quem rejeite a ideia de definir o governo de Evo Morales como frentepopulista, preferindo adotar a expressão de nacionalista-burguês como modo mais exato de caracterizá-lo. Já frisamos as tênues zonas de fronteira que separam essas tramas categoriais. Incluímos o condomínio governamental boliviano nesse âmbito partindo do fato de que à sua cabeça se encontra um dirigente sindical indígena-camponês que se apóia amplamente em significativos estratos da classe trabalhadora (rural e urbana), ainda que acreditemos que seja necessário dedicar a esse fenômeno mais pesquisa e atenção. O próprio surgimento, na Bolívia, de um Partido dos Trabalhadores, decisão apoiada em um congresso realizado nos dias 7 e 8 de março de 2013, é uma demonstração de que estamos diante de uma realidade que merece ser estudada com mais circunspecção.
(17) O Partido dos Trabalhadores, no Brasil, surgiu no panorama política (anos 1980) na condição de crítico das tradições frentepopulistas, difundindo um classismo vago, mas colado a sua identidade. No começo, preconizou esse classismo através de slogans como “vote 3, pois o resto é burguês”, “trabalhador vota em trabalhador” e “para que o trabalhador tenha voz e vez”. Discussões à parte, esse espírito, de certo modo, resgatava aspectos que ajudaram a delinear o caráter da política eleitoral dos comunistas brasileiros nos anos 1920, nomeadamente a tática do Bloco Operário e Camponês. Ainda que de forma progressiva, o PT vai se aproximando da estratégia frente populista. De maneira um pouco diversa, repetiu a trajetória pecebista. Expostos aqui tão-somente em suas grandes linhas, há de se concluir que ambos, no curso da sua trajetória política, adotaram uma prática de classe pelo anverso.
(18) Em determinado momento, afirmamos que as experiências frentepopulistas acabam em verdadeiros banhos de sangue. A sua face atual é de tal modo moderada que essa norma tem se transformado em uma fuga a regra. O procedimento usual tem sido os governos com o caráter de frente popular concluírem mandatos dentro dos preceitos da democracia parlamentar (“via inglesa”). O sangue tem dado lugar ao chope e a champanhe.
(19) A teoria dos campos que está na raiz da política frentepopulista não é uma elaboração completamente original de Stálin e da III Internacional stalinizada, e muito menos de Mao Zedong. Só para ficarmos em um exemplo: o menchevismo, na Rússia, elaborou uma teoria policlassista, de colaboração de classe, que antecedeu, em muitos anos, a emblemática resolução do VII Congresso da IC. Sobre isso, veja Moreno (2003).
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