Marco Pestana
Durante dias, evitei escrever sobre os acontecimentos envolvendo a Aldeia Maracanã, não porque não tivesse uma posição acerca do processo, mas porque julgava – e ainda julgo – que outros, mais presentes nessa luta, poderiam ter mais informações e sintetizá-las de forma mais contundente e esclarecedora. Mas, agora, os episódios que têm se sucedido desde sexta-feira tornaram qualquer intervenção – mesmo que limitada, como essa – incontornável.
Continuo achando que outros podem escrever com muito mais propriedade sobre a luta específica dos índios da Aldeia Maracanã (respondendo aos questionamentos toscos acerca de seu direito de ali permanecerem e às afirmações preconceituosas de que “lugar de índio é na floresta”, ou de que “índio não pode usar calça jeans”, etc), mas acho que esse embate também nos diz muito sobre processos mais amplos atualmente em curso no Rio de Janeiro. Sinceramente, acho difícil de lembrar outro evento que tenha condensado tantos elementos do tenebroso quadro político-social que enfrentamos hoje, como os seguintes:
– o processo de privatização, hierarquização segregação e elitização do espaço urbano da cidade: retirados de uma das áreas que têm experimentado maior valorização pelos agentes do mercado imobiliário nos últimos anos (a região da Grande Tijuca), os índios foram deslocados para Jacarepaguá, uma área bem mais distante do centro nervoso da cidade. Assim toda a sociabilidade que constituíram ao longo de anos pela ocupação (e não invasão) daquele espaço ocioso – a despeito da falta evidente de infraestrutura e serviços – foi totalmente desconsiderada, em favor de mais um empreendimento que vai valorizar a região;
– o impacto dos megaventos esportivos, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas: utilizados como principal justificativa para a implementação decisiva desse processo de segregação e elitização acima mencionado, que os ultrapassa em muito, constituindo um projeto de cidade em termos muito mais amplos, os megaeventos estão diretamente ligados ao caso da Aldeia Maracanã, pela proximidade em relação ao estádio do Maracanã e pela intenção de construção do Museu Olímpico. De quebra, todo o ufanismo tacanho ideologicamente construído e reforçado pelo fato de sediarmos esses eventos impulsionam o esforço de deslegitimação da luta dos índios;
– a homogeneização e a dominação cultural: não bastasse a dizimação física a que os índios foram historicamente submetidos no Brasil (e ainda são, nos massacres perpetrados por ruralistas), nossa história também é marcada por sua contínua opressão cultural, da qual a expulsão da Aldeia Maracanã é só mais um episódio. Assim, damos outro passo rumo a uma cidade marcada pela homogeneização cultural típica da globalização, em que as tradições locais – que poderiam ser preservadas por um projeto elaborado pelos próprios índios, de constituição de um centro de tradições naquele espaço – são cada vez mais eclipsadas por arranha-céus envidraçados e pelo modo de vida que os acompanha;
– a truculência da ação policial: mesmo com transmissão ao vivo da desocupação da Aldeia, a PM não se furtou a utilizar uma violência absolutamente desproporcional às forças dos indígenas e seus apoiadores. Talvez o maior símbolo do modus operandi dessa instituição legada pela Ditadura Militar seja o da prisão de uma pessoa – em meio a uma entrevista para uma emissora de TV – efetuada por um policial sob a justificativa de que se o homem “estava ferido, era porque tinha feito algo errado”. Ora, nesse caso, a própria atrocidade cometida por policiais vira razão para a aplicação de uma punição, num ciclo que se auto-legitima e se auto-reproduz;
– a cobertura criminosa da maior parte da mídia de mercado: a tão propalada neutralidade de nossa mídia, mais uma vez, deu lugar à escolha de um léxico que, sorrateiramente, não deixa de evidenciar o partido tomado. Assim, a ocupação de um espaço ocioso e sua revivificação transformam-se em “invasão”; o massacre de manifestantes desarmados por policiais equipados com as últimas novidades em termos do arsenal da repressão aparece como “conflito”; um espaço que deixa de servir à especulação imobiliária em favor da garantia de condições de vida para seus ocupantes só é referido como “Antigo Museu do Índio”, apagando o fato de que outras formas de apropriação – significadas pelo nome, nunca mencionado, de Aldeia Maracanã – daquele espaço ocorreram após o fechamento do museu;
– o cerceamento de direitos básicos prezados até mesmo pelo discurso liberal democrata: imensas e gritantes violações de direitos – como o direito à manifestação – já havia ocorrido no episódio da desocupação da Aldeia pela PM, mas outras a elas se seguiram no caso dos protestos realizados no atual Museu do Índio, em que até mesmo a imprensa (um dos pilares de qualquer democracia liberal) foi proibida pelo cordão policial de se aproximar dos acontecimentos;
– a seletividade classista do sistema judiciário: o que mais poderia ser dito de uma “justiça” que autorizou a remoção dos índios, optando pelo projeto de Museu Olímpico, em detrimento do centro de preservação das tradições indígenas? Além disso, pelo relato da reportagem abaixo, não parece ter havido qualquer preocupação com a garantia de mínimas condições no local para onde parcela dos índios foi transferida, em Jacarepaguá.
Sei que o texto já se estendeu muito, mas é preciso atentar para o fato de que se nesse caso da Aldeia, em que houve relativa repercussão midiática, todas essas atrocidades foram cometidas, qual será a conduta das instâncias estatais (PM, judiciário, etc) e da sociedade civil (ONG’s, organismos do empresariado, etc) nos locais que não recebem tanta atenção? Embora a Aldeia tenha, como eu disse, condensado elementos muito variados, diversos deles também têm aparecido nas remoções que têm ocorrido nas favelas cariocas (muitas delas, sob a justificativa da realização de obras para os megaeventos), nas internações compulsórias de dependentes químicos, na apropriação privada do espaço público (como na região portuária), etc.
Se não começarmos a compreender que todos esses embates estão imersos em um mesmo processo histórico, mesmo nossas chances de obter vitórias pontuais – como teria sido a permanência da Aldeia Maracanã – não serão mais do que parcas. Não basta fazermos a crítica do governador e do prefeito, como se fossem os únicos responsáveis pela autoritarismo e pela elitização que assolam o Rio de Janeiro. Suas administrações encontram-se enredadas numa trama que envolve – não como conspiração, mas como realidade política e social – ainda muitos outros agentes públicos e privados que produzem o modelo de cidade que atualmente vem sendo truculentamente imposto a todos.
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