Carlos Zacarias de Sena Júnior
No último dia 6 de junho morreu Jacob Gorender. Intelectual e militante marxista, ex-combatente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial, ex-membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB), de onde foi dirigente nos anos 1960, e do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), que ajudou a criar com Mário Alves e Apolônio de Carvalho em 1968.
Com a morte de Jacob Gorender aos 90 anos de idade, a esquerda brasileira fica mais pobre. Jacob Gorender foi stalinista, mas apesar de nossas irreconciliáveis diferenças, sua figura merece respeito. Por três grandes razões. Gorender foi um militante abnegado, corajoso e honesto. Não é pouco, se compararmos com o destino dos líderes da esquerda da geração seguinte, aquela que esteve à frente da experiência do PT.
Abnegação significa desapego e sacrifício. Gorender viveu uma vida simples, e morreu em uma casa humilde, cercado de livros e nada mais. Coragem significa disposição para a luta, ou seja, a busca de uma irredutível coerência entre o que se pensa e o que se faz, e a consciência de assumir os riscos que a militância pressupõe. Honestidade intelectual significa compromisso com a transparência: quando Gorender mudava de ideias, e o fez muitas vezes, teve sempre a dignidade de admiti-lo sem dissimulações. Por isso, não o esqueceremos.
Como a maior parte de sua geração no Brasil e no mundo, dirigentes e militantes que chegaram à vida adulta quando o exército da URSS derrotava gloriosamente o nazi-fascismo, manteve ilusões sobre o regime ditatorial que usurpou a bandeira internacionalista da revolução de Outubro. Embora tenha rompido como PCB sob o impacto da revolução cubana e da derrota da política do partido de Prestes em 1964, não chegou a romper com os fundamentos da estratégia stalinista. Mas teve a imensa coragem de optar pelo difícil caminho da luta armada, quando seu partido, o PCB, demonstrou incapacidade em oferecer alternativas. Fundou, então, o PCBR. A geração que optou por pegar em armas na luta contra a Ditadura é uma geração heróica, cuja memória todos devemos respeitar.
Derrotado, politicamente, com a destruição do PCBR, Gorender, quando saiu da prisão, desistiu do esforço de organização de novos instrumentos de esquerda. Manteve-se distante da reorganização que, ao final dos anos setenta, acabou resultando na fundação do PT, ao qual se filiou somente nos anos noventa. Iniciou uma trajetória de elaboração intelectual inspirada no marxismo. Sua pesquisa sobre o escravismo colonial foi extraordinária e brilhante, tão instigante quanto polêmica. Publicou o principal livro de referência para o balanço da experiência da luta armada, Combate nas trevas, que merece ser lido e estudado. No entanto, essa elaboração culminou com uma obra errática do marxismo. No final dos anos noventa Gorender apresentou sua última obra, Marxismo em utopia, em que concluiu sobre um proletariado ontologicamente reformista, e fez uma aposta na capacidade de mobilização dos assalariados com alta escolaridade, uma teoria impressionista que só pode ser compreendida no contexto de uma década de refluxo das mobilizações dos trabalhadores.
Gorender nasceu em 1923, quando governava o Brasil Artur Bernardes. Viveu sua infância de judeu-baiano pelas ruas da capital da Bahia, onde se defrontou com as dificuldades dos trabalhadores, principalmente negros, que perderam seus empregos nos anos 1930 em virtude da crise. Ainda muito jovem, Gorender começou a se interessar pela política durante a ditadura do Estado Novo, de Getúlio Vargas (1937-1945). Com menos de 20 anos ingressou no PCB, optando por vincular a sua vida a perspectiva de transformar o Brasil. Sofreu a sua primeira prisão em julho de 1943, após o fechamento da Revista Seiva, um periódico antifascista editado na Bahia, que trazia como matéria de capa uma entrevista do general Manoel Rabelo, presidente da Sociedade Amigos da América (SAA), realizada pelo jovem repórter Jacob Gorender. O Brasil queria ir à guerra enfrentar o nazi-fascismo, e os comunistas queriam, também, defender a União Soviética, a que chamavam de “pátria do socialismo”. Gorender foi solto alguns dias depois por pressão dos estudantes que se reuniam em congresso da jovem União Nacional dos Estudantes (UNE).
Retornado da Itália em 1945, Gorender foi um dos primeiros a escrever sobre a importância de Antonio Gramsci, demonstrando de alguma maneira que os comunistas brasileiros estavam dispostos a incorporar a bandeira da democracia na sua prática. Não obstante, mesmo depois de derrotado o fascismo em boa parte do mundo e mesmo depois do fim do regime do Estado Novo no Brasil, o PCB, retornado à legalidade em abril de 1945, teve o seu registro cassado em maio de 1947. No ano seguinte, todos os deputados eleitos e mais o senador Luiz Carlos Prestes foram também cassados, em um episódio que significou uma derrota profunda para os trabalhadores e para o seu principal partido na altura.
Os anos seguintes foram de ostracismo para os comunistas. Gorender seguiu no Partido, ocupando cargos de relativa importância, não fazendo sombra, entretanto, à dirigentes incontestes, como Prestes e Diógenes de Arruda Câmara. Em 1956, no XX Congresso do Partido Comunista da União Soviética (PCUS), o líder Nikita Kruschev surpreende o mundo denunciando os crimes de Stalin. A surpresa não foi tanto pelos crimes, boa parte deles conhecidos, mas pelo fato de que o principal membro da burocracia soviética-stalinista tenha feito as denúncias. A crise dos partidos comunistas pelo mundo não abalou as convicções de Gorender que seguiu no PCB. Não obstante, quando um longo debate se abriu entre os comunistas brasileiros, Gorender se perfilou ao lado de Prestes, primeiro para fazer cessar o debate e depois quando escreveu o principal documento do período, a famosa “Declaração de Março de 1958”, ofereceu ao velho dirigente o argumento que precisava para inflexionar a linha esquerdista que o PCB praticava desde os Manifestos de Janeiro de 1948 e de Agosto de 1950. A Declaração de Março fora preparada por um grupo de comunistas que ficou conhecido como “Grupo Baiano”, pois era composto pelo próprio Jacob Gorender e ainda Armênio Guedes, Giocondo Dias, Mário Alves, Carlos Marighella e Alberto Passos de Guimarães (o único não baiano, que mesmo assim havia vivido e militado por algum tempo na Bahia). Sobre o tal Grupo Baiano, Gorender negou sempre a sua existência, mas o fato é que a Declaração de Março foi escrita por estes militantes, inaugurando uma nova interpretação sobre o Brasil, pela primeira vez admitindo-se que o país não era feudal. Também se apontava a possibilidade de uma “via pacífica ao socialismo”, à maneira dos italianos do Partido Comunista (PCI), de Palmiro Togliatti.
Gorender ocupou um papel importante no interior do PCB durante os tumultuados inícios dos anos 1960, vindo a integrar o Pleno do Comitê Central a partir do V Congresso ocorrido em 1960. Foi durante aquela década que o PCB sofreu a sua principal derrota, demonstrando a sua incapacidade de interpretar a realidade e liderar as alternativas junto aos trabalhadores. Gorender nunca assumiu a parte da sua responsabilidade nos rumos do PCB, limitando-se a afirmar que a sua geração teve a infelicidade de viver sob a sombra de Stalin e Prestes. Ainda assim, Gorender foi parte de uma geração que ao fazer o balanço da sua própria passagem pelo PCB, pretendeu romper pela esquerda. E foi assim que à maneira de Marighella, Joaquim Câmara Ferreira, Apolônio de Carvalho, Mário Alves e tantos outros optou por fazer o caminho da guerrilha no combate a Ditadura Militar.. Todavia é preciso dizer que a opção pelas armas foi uma das mais trágicas em nossa história. Gorender esteve entre os poucos que escaparam com vida a sanha repressiva do regime ditatorial, mas sofreu dois anos de prisão e duras torturas como muitos dos seus companheiros. Durante os anos em que esteve preso, Gorender se dedicou a aprofundar suas reflexões sobre o marxismo e a história brasileira. Daí surgiu o visceral O escravismo colonial, publicado em 1978.
O escravismo colonial fez imenso sucesso, mas não foram poucas as polêmicas que enfrentou. Primeiro no interior do próprio marxismo, onde Gorender se pôs a enfrentar os adversários intelectuais propondo que a interpretação do Brasil tinha que ser feita com atenção a um modo de produção historicamente novo, o escravismo colonial. Durante os anos 1980, especialmente na altura do centenário da Abolição, quando os ventos sopravam em favor do aprofundamento do processo de restauração capitalista na URSS e no Leste Europeu, o debate de Gorender foi com o grupo de historiadores que reinventou este campo de estudos no Brasil. Contra estes, a maioria deles partidários do marxismo thompsoniano de matiz social e cultural, Gorender escreveu A escravidão reabilitada. Enfrentou com bravura o que lhe parecia ser uma espécie de revisionismo historiográfico. Efetivamente chamou atenção para aspectos que a maioria dos historiadores não estavam dispostos a aceitar, especialmente quanto a dimensão moral da história referida ao fenômeno da natureza da escravidão moderna. Gorender, que não tinha espaço na Academia, ficou em minoria, mas seus argumentos permaneceram, intelectualmente, intactos. Seus livros e artigos sobre o assunto permanecem inspiradores, tanto de uma perspectiva da análise marxista, quanto ao estilo polemista que desenvolveu como poucos.
O lado das suas reflexões sobre a escravidão no Brasil, Gorender empreendeu um significativo esforço para compreender a derrota do PCB. Desta empresa surgiu um dos mais importantes livros sobre a luta armada no Brasil. Com efeito, Combate nas trevas, publicado em 1987, é uma análise profunda e corajosa das razões e das opções da esquerda. Com traços abertamente autobiográficos, Combate nas trevas não se limita, contudo, a tratar da experiência do seu próprio autor. Indo além das memórias, Gorender ensaia uma autocrítica, sem nunca tê-la sido capaz de aprofundar quanto às suas próprias opções no interior do PCB e quando da criação do PCBR.
Em inícios dos 1990, Gorender ingressou no PT, ajudando a dotar o partido surgido de Santo André-Lins de alguma presença marxista. Curiosamente foi neste período que a Convergência Socialista foi expulsa do PT, abrindo caminho para o aprofundamento da virada à direita e a institucionalização sem medida.
No PT, Gorender nunca foi mais do que um simples filiado e uma permanente fonte de conhecimento a quem os marxistas recorriam como necessário, mas os marxistas foram minguando no PT ao longo dos anos. Quanto ao PCBR de Gorender, este foi praticamente desbaratado no início da década de 1970 e o que sobrou da organização ingressou no PT nos anos 1980. Um ex-integrante do PCBR, contudo, enquanto esteve no Chile em 1973, conheceu Mário Pedrosa, pioneiro do trotskismo brasileiro, e Hugo Blanco, dirigente trotskista peruano. Através de Mário Pedrosa e Hugo Blanco foram apresentados ao trotskismo e ao dirigente argentino Nahuel Moreno. Deste contato surgiu o grupo Ponto de Partida ainda no Chile, e Túlio Quintiliano, o ex-membro do PCBR e um dos fundadores do grupo, com a sua companheira Narcisa Beatriz Verri Whitakercom, foram presos quando do golpe de Pinochet. Quintiliano e Beatriz tiveram o destino de muitos, o de ser considerado desaparecido. Entre outros fundadores do Ponto de Partida, Enio Bucchioni, ex-militante da Ação Popular (AP), foi detido e expulso para a Europa, onde se uniu em Portugal ao PRT e à Fração Bolchevique da Quarta Internacional e, voltando ao Brasil em 1977, à Convergência Socialista; Maria José Lourenço (Zezé) e Jorge Pinheiro, ex-militantes do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR) e Waldo Mermelstein, fugiram para a Argentina ainda em 1973. No ano seguinte fundaram a Liga Operária partindo para fazer o trabalho político no Brasil junto aos trabalhadores. A liga Operária foi o núcleo fundador da Convergência Socialista, e a CS foi a principal organização na fundação do PSTU.
Com o PSTU Jacob Gorender teve uma relação de respeito mútuo. De minha parte conheci Gorender em 2005, quando fazia minha pesquisa de doutorado que deu origem ao livro Os impasses da estratégia. Precisava entrevistar o ex-comunista baiano. Eu estava em São Paulo e já tinha agendado uma entrevista com Armênio Guedes, mas necessitava encontrar Gorender para lhe perguntar sobre a sua trajetória no PCB dos anos 1940 desde a Bahia. Já imaginava das dificuldades de agenda do conterrâneo que andava ainda mais ocupado por conta das declarações que havia dado ao programa Fantástico, da Rede Globo, em função da queima de documentos da Ditadura Militar encontrados na Base Aérea de Salvador. Arrisquei o contato, mesmo com a possibillidade da negativa, e quando lhe falei dizendo que vinha da Bahia e que pesquisava a história do PCB ele concordou em me receber.
Gorender me recebeu em sua modesta casa na Vila Anglo-Brasileira em sua sala de estar repleta de livros. Falou-me por quase duas horas após conceder uma entrevista e um mestrando de Minas Gerais que estudava a luta armada. Falou sobre muitas coisas: da campanha na Itália, sobre o seu ingresso no PCB, sobre Mário Alves. Não falou dos seus erros, também não lhe perguntei, porque não era do meu interesse no momento. Fiquei emocionado com a sua história, e saí ainda mais impressionado com o seu compromisso político que permanecia inabalável. Saí com o seu livro Marxismo sem utopia debaixo do braço. Já conhecia a obra e não podia concordar que nenhum marxismo possa se livrar da sua dimensão utópica, mas também não era uma polêmica que eu pretendesse fazer. Sobre o assunto, outros já haviam escrito, inclusive Valério Arcary, das fileiras do trotskismo. Não lembro se disse a Gorender que meu interesse em estudar a história do PCB advinha da leitura deste seu livro seminal sobre a Ditadura e a luta armada. Também tinha me impressionado sempre com os seus estudos sobre a escravidão, embora discordasse de boa parte de suas teses. Se não fiz isso fica aqui registrado como últimas palavras sobre este grande camarada que era Jacob Gorender. Inspirador, polêmico, historiador e marxista, sempre presente!
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