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Colunas

Eduardo Paes e a internação compulsória: sequestro, escravidão contemporânea e lucratividade

Adriana Lorete

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde:

Ana Beatriz Valença – Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;

Jorge Henrique – Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;

Karine Afonseca – Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;

Lígia Maria – Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;

Marcos Filipe – Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;

Rachel Euflauzino – Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;

Paulo Ribeiro – Técnico em Saúde Pública – EPSJV/Fiocruz, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH/UERJ e doutorando em Serviço Social na UFRJ;

Pedro Costa – Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

Pedro Henrique Antunes da Costa

Na terça-feira, dia 21 de novembro, o prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes (PSD) publicou na Plataforma X, antigo Twitter, que pretende implantar uma proposta de internação compulsória para usuário de drogas. Segundo o prefeito, “não é mais admissível que diferentes áreas de nossa cidade fiquem com pessoas nas ruas que não aceitam qualquer tipo de acolhimento e que mesmo abordadas em diferentes oportunidades pelas equipes da prefeitura e autoridades policiais, acabem cometendo crimes”.

Primeiramente, é importante salientar que não se trata de novidade vindo de Eduardo Paes e sua gestão. Em sua primeira gestão na prefeitura do Rio de Janeiro (2009-2012), ele também implementou uma política de internação compulsória, aproveitando o pânico social e moral criado sobre a suposta epidemia de crack – que, depois, foi desmentida por estudos científicos. Após uma série de críticas de ação do Ministério Público do Rio de Janeiro, tal política foi suspensa. Agora, não mais “somente” como tragédia, mas também como farsa, busca reeditar tal medida, surfando em um populismo manicomial que aumenta com a onda neofascista em nosso país e no mundo na mesma magnitude que cresce a pobreza, a desigualdade social e as demais mazelas sociais no atual estágio de desenvolvimento capitalista – cada vez mais barbárico.

Numa evidente medida higienista, o prefeito busca imputar aos pobres, mais especificamente à população de rua a causa do “caos que vemos nas ruas da cidade”, da criminalidade, em uma tática nova-velha de acabar com a pobreza, punindo, quando não eliminando os pobres. Cabe a nós dizer o que não está dito no dito de Eduardo Paes: trata-se uma política que não só busca higienizar a cidade e eliminar tal população de rua, deixando intactos os problemas que diz combater (como a pobreza, a criminalidade), mas fazendo isto repassando verbas públicas para um amplo e reatualizado mercado ou comércio da loucura, das drogas, sobretudo, pelo financiamento das Comunidades Terapêuticas (CTs).

Tal medida não é um raio em céu azul, considerando que vivemos um momento de intensificação de repasses públicos a tais instituições, por governos municipais, estaduais e o federal. A internação compulsória, nesse sentido, não só esconde e mascara o seu caráter manicomial, de violência – sob a forma de cuidado, de assistência – como oculta seu caráter mercantil, privatista, lucrativo, afinal, é o Estado repassando verbas para tais instituições “cuidarem”, “acolherem” estas “pessoas”. Além disso, as CTs se pautam na chamada laborterapia, que é um termo utilizado para ocultar o que, de fato, acontece em tais instituições: trabalho escravo. Temos, portanto, um cenário perfeito para quem lucra – literalmente – com tal política, na forma do repasse de verbas públicas e da acumulação proveniente do trabalho escravo, mas com roupagem de tratamento, de cura. Ora, e quem seria contra o tratamento, contra o acolhimento, como colocou o prefeito? Quem se opõe à cura, a um trabalho que acolhe salva as pessoas? Eis mais alguns elementos que compõem perversidade retórica e concreta da iniciativa de Eduardo Paes.

E quem é majoritariamente, preso, segregado, manicomializado e escravizado nas CTs? Não só a população em situação de rua, mas pessoas, no geral, pobres e negras.

E quem é majoritariamente, preso, segregado, manicomializado e escravizado nas CTs? Não só a população em situação de rua, mas pessoas, no geral, pobres e negras. Se somarmos outro pilar constitutivo de tais instituições, que é a religiosidade compulsória, também violenta, temos uma instituição exemplar e contemporânea do que o Brasil tem sido: uma mistura de manicômios, prisões, igrejas e senzalas. Chamemos, portanto, as coisas pelo nome: a proposta de Eduardo País é racista. Ela reatualiza formas – infelizmente, tradicionais – de sequestro e escravidão da população negra em nosso país. Logo, por mais que ela seja, por si só, um insulto, o fato de ser aventada e publicizada horas depois do Dia da Consciência Negra, aumenta ainda mais a sua violência. Não por acaso, tal proposta também vem à tona na trilha de outras igualmente segregatórias, encarceradoras e racistas, como a privatização de presídios.

Se o prefeito está interessado, de fato, em “combater o caos” se utilizando de “instrumentos efetivos para se evitar que essa rotina prossiga” que invista nos reais instrumentos efetivos que temos: em propostas de cuidado psicossocial e serviços públicos como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), consultórios na rua, Unidades de Acolhimento, dentre outras, da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no SUS; que implante mais Centros de Referência da Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS), Centros POP e serviços de acolhimento – real – no SUAS; que forneça melhores condições de trabalho para os profissionais destas e outras políticas sociais. Se tem algo que contribui para o “caos” nominado pelo prefeito, é a sua própria gestão que, na esteira das anteriores, atua sistematicamente para fragilizar e precarizar as políticas sociais e os “instrumentos efetivos” que elas dispõem por meio de terceirizações, de parcerias público-privadas, nas quais a gestão de tais serviços, políticas e das verbas públicas acaba repassado às Organizações Sociais, as OSs.

No conto Os alunos, Eduardo Galeano escreve que: “O mundo trata os meninos ricos como se fossem dinheiro, para que se acostumem a atuar como o dinheiro atua. O mundo trata os meninos pobres como se fossem lixo, para que se transformem em lixo”. Parafraseando o autor, o mundo capitalista, com o luxuoso auxílio de governantes como Eduardo Paes trata os meninos, as meninas, os adultos e as adultas pobres (e negros/as) como se fossem lixo, para que se transformem em dinheiro, em riqueza – para outras pessoas ricas, os mercadores da loucura, das drogas, que não à toa, também são os da fé.