Bernardo Boris Vargaftig
Leonardo Padura é um escritor e jornalista cubano, autor de livros policiais cuja trama se passa na Cuba pós-revolucionária, notadamente (mas não só) no período especial, logo após a restauração do capitalismo na União soviética, com a supressão de sua ajuda econômica e política.
O policial Mario Conde, herói destes livros (4 publicados no Brasil) enfrenta situações que ilustram aspectos negativos da sociedade cubana. Mario Conde tornou-se cético, desmoralizado pela degeneração política e social a que assiste, ele que esteve na África em luta contra os mercenários do apartheid, e que depositava suas esperanças no socialismo.
Padura é autor de um livro admirável, « La novela de mi vida » (2001), sobre o poeta cubano da primeira metade do século XIX, José Maria Heredia (homólogo de outro poeta, que escreveu na França um pouco mais tarde e que, segundo Padura, seria primo do primeiro). Neste livro Padura já demonstra maestria em articular situações complexas no espaço e no tempo, e em integrá-las na história viva: a conspiração pela independência de seu pais. Prossegue agora com mais maestria ainda, com “O homem que amava os cachorros”, Editora Boitempo, São Paulo, 2013).
Através dos destinos cruzados do revolucionário Leon Trotski, de seu assassino Ramon Mercader, alias Monard, e do escritor fictício cubano Ivan, gêmeo literário do melancólico Mario Conde, assistimos ao refluxo progressivo da vaga revolucionária dos anos pós-1917. De seu interior, na intimidade deste monstro frio que foi a burocracia soviética, percebe-se a destruição das esperanças nascidas da revolução operária liderada pelos bolcheviques.
Os atentados e o treino de Mercader
Extraordinárias são as páginas em que Padura mostra o treino de Mercader pelos serviços policiais secretos da URSS stalinizada. Mercader nasceu em uma família burguesa catalã. Sua mãe, Caridad Del Rio, separada do marido, emigrou para a França, e quando voltou foi militante do Partido Comunista, associada, estreitamente, aos agentes russos da NKVD, sucessora da KGB. Difícil situar-se na atmosfera daqueles anos, notadamente quando os fascistas ganharam a guerra civil espanhola, e Stalin efetuou uma virada inesperada, assinando e aplicando o pacto de aliança com o regime hitleriano.
Neste contexto, em que se acumulavam as provas da traição do regime stalinista à causa do socialismo, o movimento trotskista e, particularmente, Leon Trotski representavam para Stalin uma ameaça, bem superior a suas forças reais. Era preciso liquidá-lo, assim como seu filho Leon Sedov e tantos outros, pois na guerra que se aproximava, uma virada revolucionária seria possível, senão provável, e o revolucionário e sua pequena organização poderiam oferecer perspectivas idênticas àquelas que souberam oferecer os bolcheviques durante a primeira grande guerra.
Eis a atmosfera histórica do livro, cuja veracidade é atestada, entre outros, pelo livro de Sudoplatov, diretor da Administração para Tarefas Especiais do NKVD, preso em 1953 após a morte de Stalin, mas que sobreviveu e foi liberado em 1968. Deixou um livro (Special Tasks, Pavel e Anatoli Sudoplatov, Little Browen and Company, Canada, 1995) em que relata suas atividades de agente do stalinismo.
A primeira tentativa desastrosa de assassinato de Trotski no México por um grupo chefiado pelo pintor Siqueiros fora planejada por Sudoplatov, e é relatada admiravelmente por Padura (como o confirmou o neto de Trotski, Sieva, oferecendo testemunho quando de viagem a São Paulo). Mercader, treinado pela NKVD, foi então levado ao primeiro plano e, em circunstancias que relata Padura, assassinou o velho dirigente. Condenado no México a 20 anos de prisão foi liberado em 1960, e acolhido como herói na União Soviética de então. Anos depois, veio a morrer em Cuba, acolhido por Fidel. Tudo isto é admiravelmente relatado por Padura.
A verdade histórica
Às vezes o livro está no « meio de campo » e faz especulações que não têm fundamento histórico. Apresentar Ramon Mercader como uma vitima deste sistema stalinista que acaba por devorar seus próprios filhos, traz o risco de inspirar compaixão pelo assassino, cúmplice da loucura de Stalin e do sistema que o ergueu. Padura abunda neste sentido, quando afirma que Trotski não era um anjo, e tinha sangue nas mãos, pois reprimiu a revolta de Kronstadt, publicou o decreto sobre os réfens etc., e sugere que poderia ter se arrependido. Padura, porém, não vai mais longe. Finalmente, sem transigir, confirma que os carrascos são os carrascos, e as vítimas, vítimas.
Algumas intervenções de stalinistas confessos e não arrependidos mostram hoje a mesma tendência. Foi o caso do coordenador da reunião de lançamento do livro de Padura em São Paulo, Breno Altman, que defendeu o assassinato de Trotski “dentro do contexto”, como disse em sua abertura ao debate.
http://www.boitempoeditorial.com.br/v3/titles/view/381;
http://blogconvergencia.org/blogconvergencia/?p=1897).
Afirmou este “coordenador-debatedor” que teria tido orgulho, como seu avô e seu pai, se o na época o Partido lhe pedisse de matar Trotski. Por extensão, imagino que qualquer acusado do crime de “trotskismo”, “nazi-nipo-trotskismo” ou outra denominação extravagante que os assassinos inventaram nos “processos” de destruição do que restava do Partido Bolchevique nos anos 30, e começo dos anos 40.
Trata-se de uma posição defensiva, já que se tornou hoje impossível afirmar que Trotski ou seus seguidores fossem agentes do imperialismo, das forças reacionárias internas etc.. Esta posição consiste em afirmar que todo mundo errou, mas que a defesa da URSS (defesa, aliás, que Trotski pregava, ao reafirmar seu caráter de Estado Operário, embora deformado) exigia a destruição dos quadros antigos do Partido, emperrados numa concepção contra-revolucionária da defesa da revolução internacional, quando a situação exigia a estratégia de “socialismo em um só país”: vejam no que deu, a volta ao capitalismo mais brutal.
Alvaro Bianchi em “Anti-trotskismo: manual do usuário” (http://pstu.org.br/node/14173) cita Trotski ao afirmar que Stalin não é uma personalidade, mas a personificação da burocracia e que a burocracia soviética encontrou em Stalin sua encarnação. O stalinismo sempre foi, para Trotski, não a encarnação do mal em abstrato, mas um regime político e um aparelho internacional com um programa ao serviço de seus privilégios: subsubstanciado nas teorias do socialismo em um só país e da revolução por etapas.
Há anos os movimentos trotskistas afirmam que não será possível construir um movimento revolucionário socialista sem resolver no plano histórico e político o problema da URSS. De fato, como defender a continuidade com o movimento revolucionário internacional, se este deixou como herança um Estado degenerado tornado, plenamente, contra-revolucionário e capitalista, e derivados como a Coreia do Norte e outras caricaturas do socialismo? Por esta razão a posição stalinista atual (pregada, por exemplo, pelo intelectual italiano Domenico Lossurdo, bom especialista do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, mas anti-trotskista alucinado) deve ser combatida; trata-se de um relativismo em que ninguém tem razão e todos erraram, mas no final das contas, acertou quem persistiu.
Méritos do livro
Não se exige que um escritor redija teses ou programas políticos. O grande mérito de Padura é de fazer reviver um Léon Trotski em seu ambiente de revolucionários, íntegro e apaixonado pela causa, buscando explicações histórico-sociais para os impasses da luta contra o capitalismo. Ramon Mercader nos é apresentado como uma criatura que só pode ser compreendida no contexto de uma família patologicamente enlouquecida, e nas circunstâncias abomináveis do regime stalinista, e das aberrações que promoveu em escala internacional. O melancólico Ivan, finalmente, é um sobrevivente nos marcos do regime cubano burocrático decadente. Porém, escrever uma ficção política (mais do que um romance histórico) não é um empreendimento neutro, supondo-se que Padura tenha pressupostos políticos, o que é, aparentemente, o caso. Infelizmente, de alguma forma, isto limita seu texto excelente.
Fica claro que, se Padura libertou-se do pseudo-marxismo instilado pelo regime cubano, não se emancipou do ar dos tempos, uma atmosfera que se ressente da pseudo-democracia burguesa. Assim, fica subentendida a ideia de que a violência da burocracia stalinista já estava presente na dos bolcheviques, o que é grave. E que Trotski durante seu exílio em Prinkipo (ilha no Bósforo, em frente a Istambul, na Turquia) se arrependera, segundo Padura, de seu papel « vergonhoso » no esmagamento da insurreição dos marinheiros de Kronstadt.
E ainda que ele sabia que, se em março de 1921, os bolcheviques tivessem autorizado eleições livres, teriam provavelmente perdido o poder: « no momento em que as massas cessaram de crer (no bolchevismo) era preciso crer nele à força ». Na realidade, para Padura, a Democracia com um D maiúsculo seria o valor supremo. Isto, aliás, aparece num artigo recente na coluna Tendências/Debates da Folha de São Paulo. Os bolcheviques eram partidários da democracia, mas não da democracia em geral, e sim da democracia operária exercida pelos soviets. Lutavam por um regime capaz de ser o ferro de lança da abolição da propriedade privada dos meios de produção, e da supressão das classes num plano mundial.
A teoria marxista da revolução permanente, elaborada por Trotski, afirma, entre outras coisas, que para realizar e consolidar inclusive as tarefas democrático-bgurguesas, como a reforma agrária nos países subdesenvolvidos, a revolução deve ultrapassar os limites da democracia para se transformar em revolução socialista que leve ao poder um governo operário e camponês. Consequentemente, tal revolução não se produzirá por “etapas” (uma etapa capitalista seguida por uma revolução socialista num futuro indeterminado), mas será contínua ou “permanente” e passará rapidamente à etapa pós-capitalista.
O atraso da revolução levou ao retrocesso socialdemocrata (Frente Popular na França e na Espanha, por exemplo), em seguida à subida do fascismo com o apoio da URSS. Vide a recusa da frente única com os socialdemocratas na Alemanha às vésperas da tomada de poder pelos nazistas, que Trotski pregava continuamente, ou o pacto Stalin-Ribbentrop, ou ainda a sabotagem da revolução na Espanha, na França e na Itália após a 2a guerra mundial.
Na Alemanha em 1933, e na Espanha e França em 1936, o problema não mais consistia na luta pela democracia no Partido contra a ditadura de Stalin, como em 1927. Nos anos 30, o movimento comunista devia proceder a uma escolha decisiva: ou os trabalhadores soviéticos, esgotados por anos de guerra civil, eram esmagados pelo stalinismo, um regime político ditatorial burocrático-bonapartista, ou então, contra ventos e marés, mantinha-se a defesa da revolução mundial para derrotar o imperialismo nas suas cidadelas, o que tentava fazer Leon Trotski. Não se tratava, portanto, de uma simples luta fratricida pelo poder como, às vezes, sugere Padura.
Comentários