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TEORIA

Analfabetismo funcional, opressão de classe e exploração

Diego Braga

Não se pode dizer que a situação precária do letramento no Brasil seja alarmante. Afinal, alarmante é o problema que chama atenção por ser uma surpresa. Todos, até mesmo os que o negam, sabem que o número de analfabetos no país é gritante. Alguns reconhecem que o de analfabetos funcionais é muito maior*. Mas a situação é pior do que muitos imaginam. Para ter noção da dimensão de sua gravidade, comecemos examinando o que caracteriza o analfabetismo funcional.

Os analfabetos funcionais ou parcialmente alfabetizados se dividem em duas categorias. Os alfabetizados em nível rudimentar (ou analfabetos funcionais de nível 1) conseguem identificar a maior parte das palavras na forma escrita e localizar informação simples em microtextos, mas apenas se a informação for explícita. Têm dificuldades em produzir enunciados escritos maiores ou mais complexos que frases em bilhetes, pequenas mensagens de texto em meios virtuais ou cartões de natal, por exemplo, listas de informações básicas e respostas curtas. Ainda assim, mesmo ao redigir pequenos enunciados produzem uma escrita com graves problemas de coerência e de clareza.

Alfabetizados em nível básico (analfabetos funcionais de nível 2) leem e compreendem boa parte dos textos simples de tamanho pequeno, nos quais são capazes de localizar informações simples, mesmo que implícitas. Em textos de tema mais complicado deste mesmo tamanho, contudo, têm muita dificuldade de depreender informações complexas não explícitas ou resumir as ideias essenciais apresentadas. Ou seja, não conseguem interpretar com competência satisfatória textos senão de assuntos cotidianos. Assuntos densos lhes devem ser expostos em linguagem diluída. Ao escrever, conseguem produzir no máximo pequenas redações com tema simples. São quase sempre incapazes expressar ideias complexas por escrito ou de sintetizar textualmente informações colhidas de fontes diversas. Têm muita dificuldade em produzir paráfrases de informações ou argumentos, mesmo dos de média complexidade. No geral, não têm hábito de leitura. Embora possam esporadicamente atravessar livros de leitura fácil – ou ler com regularidade passagens curtas da Bíblia e de outros textos complexos, em geral com pouco entendimento – via de regra consideram cansativo ou incômodo ter de ler qualquer texto que não seja curto e óbvio.

Plenamente alfabetizado (alfabetização em nível 3) é quem consegue ler e compreender, depreender informação implícita e resumir o sentido geral da maior parte dos textos de qualquer tamanho e grau de complexidade. Os que o são, têm o hábito da leitura, o que no Brasil significa uma média de 4 a 6 livros por ano. Conseguem expressar com razoável clareza e coerência a maior parte de suas ideias e têm capacidade de produzir textos de qualquer tamanho que sintetizem ideias e informações colhidas em diversas fontes.

Antes de continuar a ler, firme-se na cadeira e respire fundo. Os dados, apesar de não serem novos, não deixam de apavorar. Segundo o Inaf – Indicador Nacional de Analfabetismo Funcional – publicado em 2012 (IPM; EA, 2012), o número de pessoas plenamente alfabetizadas com o ensino médio completo é de apenas 35%. Ou seja, 65% dos estudantes brasileiros considerados aptos a entrar na universidade são ou analfabetos ou – a maioria, provavelmente – analfabetos funcionais de nível 1 e 2. Assustado? Entre estudantes de nível superior completo a situação ainda é catastrófica. Esta “elite intelectual” do país, que era de 7,9% do total da população em 2010**, segundo os números oficiais, utilizados pelo MEC (2012) como se fosse uma propaganda positiva, tem no seu contingente um total assustador de 48% de analfabetos funcionais (a maioria, talvez, em nível 2, mas aqui tudo é possível!). Ou seja, quase metade das pessoas que concluem nível superior no Brasil não dominam plenamente a escrita e a leitura de textos mais longos ou complexos. Grosso modo, metade dos trabalhadores mais qualificados não é plenamente alfabetizada neste país.

Esta catástrofe é política e fruto de longos e longos anos de descaso, privatização e precarização da educação. A fabricação de analfabetos funcionais com diploma começa no ensino fundamental, onde as condições de trabalho são precárias, os professores ganham um salário humilhante, para dizermos o mínimo, e as crianças não contam com infraestrutura didático-pedagógica elementar. Nas escolas privadas, salvo as de elite, acessíveis a pouquíssimas rendas, a situação não muda ou muda pouco. No ensino médio, em geral, o drama segue, quando não piora, tanto no setor público como no privado. A proliferação de “uniesquinas”, universidades que brotam pelos prédios comerciais das cidades como cogumelos depois da chuva, institutos de ensino “superior” que fabricam bacharéis a toque de caixa e a preços altíssimos (pela qualidade do serviço oferecido), aliada ao sucateamento da universidade pública, é responsável pelo elo final da cadeia de produção de iletrados diplomados. Depois de mais de 12 anos de governos do PT, continuando a política do PSDB, a situação da educação brasileira segue trágica, ainda que a pátria, para fins de propaganda, se autoproclame “educadora”.

Em tal quadro, professores de português e literatura enfrentam uma realidade pelo menos horripilante. É a rigor impossível cumprir as metas mais elementares. Conforme se avança no ensino, ou melhor, nos anos do sistema de ensino, maior a distância entre o que se deveria ensinar e o que os alunos, na verdade, ainda precisam aprender. Um amigo meu, professor “de filosofia” da rede pública, disse que, em suas aulas, em vez de ler Platão com seus alunos, tentava apenas lhes ensinar a ler ao menos palavras e frases simples. E ele, como licenciado em filosofia, não tinha formação de alfabetizador. A tarefa, não precisamos ter muita imaginação, está condenada ao fracasso. Surgirá dela mais uma geração de jovens a que se negou o direito básico da educação plena. Ofereceu-se, em vez deste direito, quando muito, um canudo de papel.

O objetivo de formar diplomados semianalfabetos é, além de produzir estatísticas parciais alardeáveis, inundar o mercado de trabalho especializado com trabalhadores “qualificados” que servirão, como exército desempregado de mão de obra reserva, apenas para baixar a média salarial geral do trabalhador qualificado empregado. Nessa bola de neve, a cada geração, quem estuda mais recebe um salário menor, porque, como se diz: “há muita gente desempregada com diploma por aí. Se não quiser este salário, tem quem queira”. Some-se a isso o fato de que as vagas de empregos que exigem qualificação superior vêm diminuindo proporcionalmente no Brasil. Os governos do PT criaram empregos? É claro. Mas a maioria esmagadora destes empregos criados paga até 2 salários mínimos. É trabalho não qualificado. Estes trabalhadores, agora, sofrem com as demissões. A “alegria” do trabalho, mesmo do mal pago e desqualificado, durou pouco. Assim, ano após ano, os jovens perdem o estímulo para estudar: ou não encontrarão vagas para exercer as profissões para as quais “se qualificaram”, muitas vezes pagando muito caro por isso, ou encontrarão trabalho, mas receberão salários cada vez mais desmoralizadores. Os únicos a sorrir nesta história são os patrões, lucrando progressivamente mais com os salários continuamente menores que pagam.

Como professor, lamento, mas me esforço ao máximo, junto com meus alunos, para superar estes enormes desafios. Contudo, é preciso reconhecer que tal superação pressupõe ir além dos estreitíssimos limites de medidas pedagógicas ou administrativas. Não se trata de um problema didático ou de gestão, embora o professor de português tenha a obrigação de se esforçar didaticamente para ensinar técnicas avançadas de redação e interpretação a alunos que não raro mal conseguem redigir um único parágrafo com clareza. Nossa indignação cresce ao ver que muitos destes alunos não têm sequer ideia da sua condição de semianalfabetos ou analfabetos funcionais. Acham que tal condição é limitada aos moradores dos bolsões rurais de pobreza. Iludidos pelas estatísticas hasteadas pelos governos, que apontam o aumento de diplomados com nível superior, alguns acreditam, por frequentarem bancos de universidades ou do ensino médio, que são alfabetizados plenamente. Quando descobrem o tamanho do logro em que os enredaram, sua revolta é não somente esperada, mas necessária. O que mais me corta o coração, porém, é ver que muitos deles trabalham o dia inteiro para ganhar um magro salário, do qual boa parte é subtraída para pagar uma escola ou universidade incapaz de produzir o mínimo: um usuário da escrita, porque para ser “competitiva” no mercado de educação (que no Brasil tem a balbúrdia própria das feiras) a empresa escolar ou universitária precisa formar rápido e a baixo custo. Baixo custo para o dono da empresa, não para o “cliente”, que fique claro.

A política, a raiz do problema de que são vítimas, parece à maioria destes jovens e adultos semiletrados algo distante, que não entendem, e portanto suspeito. Creem, distorcidamente, que eles lá em Brasília fazem política, mas nós, aqui, pegando o ônibus para o trabalho, não. Iludem-se de que é possível para qualquer pessoa “não participar da política”, porque são levados pelos jornais, pela TV e pelos ideólogos a serviço da ordem dominante a pensar que política se limita a digitar números e apertar o botão verde, vermelho ou branco a cada dois anos, ou à lama que jorra à farta das sedes de todos os governos e dos parlamentos, estas instituições políticas gangrenadas, que não têm salvação. Pretender não se envolver com política já é uma postura política. E, acreditem, é a postura que eles querem que nós tenhamos: participar votando individualmente, isolados numa cabine, a cada dois anos, sem nos envolvermos com as decisões de fato. Assim, dividem nossa força política em um monte de dedos individuais que apertam botões às escondidas. Difícil imaginar maneira mais eficaz de destruir a força política de uma classe inteira que reduzir sua participação política à ação individual isolada a cada dois anos, escondida atrás de um papelão com brasão federal.

Na verdade, política, também a fazemos nós, todo dia. Como raiz do problema, a política é o único âmbito da ação humana em que estes alunos – vitimados pelos governos ao batalharem por diplomas que talvez não consigam ler – poderiam se engajar para canalizar sua indignação e vencer a demanda de toda a classe trabalhadora, que padece de analfabetismo em suas camadas mais proletarizadas. Saber que existem jovens e adultos que tanto sofrem para ler ou escrever pequenos textos assim, alheios à única possibilidade de solucionarem o seu problema, é entristecedor. Principalmente quando se sabe que só confiando em nossas próprias forças resolveremos o problema que assola a nós, que vivemos de salário, problema de que a educação é apenas parte. A passividade política, que só serve para conservar a ordem de coisas tal como está, é mais uma das condições opressivas sob as quais vivem tantos jovens e trabalhadores, condição gerada pela alienação que surge de serem explorados em troca de salário, pela carência de cultura, pela ideologia de competição individualista inerente a qualquer sociedade estruturada em torno das leis irracionais do mercado e, também, pelo analfabetismo ou semianalfabetismo, etc.

No entanto, alguns destes jovens e adultos podem ser, inclusive, meus próprios alunos. E quando estou em sala de aula e olho em cada rosto, percebo neles, também, contraditoriamente, uma enorme disposição para lutar e enfrentar os problemas. Enxergo, sobretudo nos mais jovens, uma imensidão de sonhos, os mais variados e bonitos, sobre como será o amanhã. Fito a mim mesmo em cada um deles quando, na tela crua do que todos somos hoje, desenham-se as flores de uma primavera nunca antes vista. E ela chegará, se depender de nós. Consigo entrever, em suas redações, ainda que por vezes não tão bem redigidas, que seus corações pulsam, cheios de uma vontade imensa de gozar os direitos à vida, à educação plena e aos sonhos, que suas cabeças pensam e fazem planos, e que são capazes de aprender tudo, bem como de descobrir coisas novas, desde que lhes sejam dadas as chances e as condições. São inteligentes e esforçados, brilhantes, capazes e inspiradores. Principalmente quando começam a reivindicar, conforme as marés da história novamente ficam altas, o papel que nos cabe de reconstruir a sociedade em novas bases, de tomar o destino em nossas próprias mãos.

Escrevo isto em agradecimento aos meus caros alunos, que me enchem de esperança e me inspiram com a força que guardam em si, de conjunto, apesar de todos os obstáculos que enfrentam todo dia. Embora costume eu ficar de frente para vocês nas aulas, não se enganem: estamos do mesmo lado nesta batalha e nas que virão.

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* Os últimos números do IBGE indicavam 20,3% de analfabetos funcionais sobre o total da população em 2009. (IBGE, 2009)

** O MEC alardeia propaganda sobre o aumento da quantidade de diplomados em nível superior, mas faz vistas grossas à precarização que está implicada no modelo de expansão universitária aplicado, que deteriorou o ensino superior.

Referências bibliográficas

IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
Tabela extraída das Síntese de Indacadores Sociais. 2009.
 Disponível em <http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=4&op=0&t=taxa-analfabetismo-funcional.&vcodigo=PD384>, acesso em 12/06/2015

IPM (Instituto Paulo Montenegro); EA (Educação Ativa). Inaf 2011/2012 – Instituto Paulo Montenegro e Ação Educativa mostram evolução do alfabetismo funcional na última década. 2012. Disponível em <http://www.ipm.org.br/pt-br/programas/inaf/relatoriosinafbrasil/Paginas/inaf2011_2012.aspx>, acesso em 13/06/2015.

MEC (Ministério da Educação). Número de brasileiros com graduação cresce 109,83% em 10 anos. 2012. Disponível em <http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&id=17725>, acesso em 13/06/2015