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TEORIA

Crítica ao conceito de Estado na obra de Carlos Nelson Coutinho

Vitor Rollin Prudêncio

Como apontou Demian Melo em um belíssimo artigo, a obra de Carlos Nelson é de suma importância para o marxismo brasileiro, desde suas contribuições para a militância política no campo da esquerda, em seus embates contra as teorizações estalinistas, suas traduções de diversos autores marxistas até suas contribuições e problematizações teóricas que sempre caminharam no sentido de conhecer melhor os clássicos marxistas e compreender politica e teoricamente o que é o Brasil. Melo aponta também que o artigo “A democracia como valor universal” deve ser conhecido “Seja para concordar, tecer críticas ou discordar completamente, sua obra é incontornável.” (MELO, 2012). Os apontamentos do colaborador do Blog Convergência são fundamentais, mas devemos ir além já que outras obras de Coutinho passaram a ter uma importância maior para a esquerda do que o polêmico artigo citado por Demian. Os motivos não serão desenvolvidos aqui, mas seguem nas referências bibliográficas outras obras de Coutinho para conhecimento do leitor. Este artigo tem portando o objetivo de “tecer críticas” em alguns momentos e “discordar completamente” em outros, à obra deste importante marxista. [1]

 

Conceito de Estado em Carlos Nelson Coutinho

Coutinho parte da premissa de que o Estado é um instrumento politico que é controlado pelas classes dominantes e que este parte, em menor ou maior medida, da necessidade de utilizar a repressão para manter sua dominação politica. Mas o autor não para por aí, a partir de seus estudos de Gramsci e outros gramscianos, Coutinho defende posicionamentos políticos e teóricos que, no nosso entendimento, vão na contramão da concepção marxista do Estado.

Para entender a proposta politica de Coutinho para a superação da sociedade de classes, devemos entender primeiramente sua caracterização teórica do que se tornou o Estado capitalista a partir do desenvolvimento das forças produtivas e das conquistas políticas e econômicas do proletariado mundial. Para que isso seja feito de uma forma mais didática, separei a apresentação em três categorias teóricas utilizadas pelo autor, são estas: Estado Coerção, Sociedade Civil e Estado Ampliado.

Estado Coerção

Podemos dizer que o Estado Coerção (também chamado de “sociedade politica” ou “Estado Estrito”) para Coutinho é a forma pela qual a classe dominante detém o monopólio da violência sobre as classes subalternas. Por meio da sociedade politica as classes exercem a dominação de classes mediante a violência. Podemos dizer também que, segundo o autor, esta é a forma central de como se apresentava o Estado para Marx e Engels. Os Estados onde a dominação politica se dava (ou se dá) principalmente pela coerção, são caracterizadas por Gramsci e Coutinho como sociedades “orientais[2]” (COUTINHO, 2008, pag. 57).

Esta caracterização não nega, pois, a relação desta forma de dominação com outras que não se utilizam diretamente da violência, o autor defende que existe uma relação de “identidade distinção” com a sociedade civil. Isto quer dizer basicamente que a dominação se apresenta, portanto, de uma forma violenta (sociedade politica) e de uma forma ideológica (sociedade civil).

a sociedade política é o “aparelho de coerção estatal que assegura ‘legalmente’ a disciplina dos grupos que não ‘consentem’, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção [nos aparelhos privados de hegemonia[3]], quando fracassa o consenso espontâneo. (COUTINHO, 1989, p.78)

Estas duas formas de dominação existem em qualquer tipo de Estado,

mas o fato de que um Estado seja mais hegemônico-consensual e menos “ditatorial”, ou vice-versa, depende da autonomia relativa das esferas superestruturais, da predominância de uma ou de outra, predominância e autonomia que, por sua vez, dependem não apenas do grau de socialização da politica alcançado pela sociedade em questão, mas também da correlação de forças entre as classes sociais que disputam entre si a supremacia. (idem ibidem)

Sociedade Civil

Já o conceito de sociedade civil é visto por Coutinho como a mediação entre a estrutura econômica e o Estado Coerção. Para o autor aquela é formada pelo conjunto de organizações responsáveis pela elaboração e difusão das ideologias. Todavia o autor deixa claro que a sociedade civil, assim como a sociedade politica, tem o mesmo objetivo de manter a dominação de classe.

Como vimos acima, a sociedade civil é a forma pela qual as classes dominantes exercem sua dominação politica pela via ideológica, através da direção politica, ganhando aliados. É necessário colocar também que para Coutinho, o conceito de sociedade civil em Gramsci adquire um significado diferente do que para Marx. Para o autor

enquanto Marx identifica sociedade civil com base material, com infra-estrutura econômica, a “sociedade civil em Gramsci não pertence ao momento da estrutura, mas ao da superestrutura”. (idem, ibidem p. 73)

A existência da Sociedade Civil, segundo Coutinho, não existe apenas nas sociedades contemporâneas.

Também as formas pré-capitalistas de dominação de classe, mesmo as abertamente ditatoriais e despóticas, apoiavam-se igualmente na ideologia, carecendo de algum modo de legitimação para poderem funcionar regularmente. Papel decisivo, na conquista dessa legitimidade por um Estado de tipo feudal-absolutista, por exemplo, era desempenhado pela ideologia religiosa: a igreja era uma “aparelho ideológico de Estado”, fundamental na época feudal e na época do absolutismo, o que certamente explica a razão por que Gramsci, em algumas notas dos Cadernos, parece identificar a relação Igreja-Estado com a relação sociedade civil-sociedade politica, mesmo em épocas onde não existe uma sociedade civil no sentido moderno da palavra, no sentido que é dominante nas reflexões gramscianas e que marca sua originalidade e especificidade. (idem, ibidem, p. 79)

Estado Ampliado

A ampliação do Estado para Coutinho se dá quando existe um equilíbrio entre a Sociedade Civil e o Estado Coerção, esta deixa, portanto, de imperar sobre aquela. A teoria da ampliação do Estado apoia-se na descoberta dos “aparelhos privados de hegemonia”, que são para Coutinho “organismos de participação politica aos quais se adere voluntariamente (e, por isso, “privados”) e que não se caracteriza pelo uso da repressão” (idem, ibidem, p. 76).

Esta alteração no Estado capitalista, para Coutinho, é caracterizada enquanto uma mudança em sua natureza, e não simplesmente em sua aparência. O Estado deixou, graças a sua ampliação, de ser um simples “comitê executivo da burguesia”, como afirmam Marx e Engels no Manifesto do Partido Comunista, e passou a ser um espaço onde se manifestam e se disputam os diversos projetos de sociedade, mesmo que sobre a hegemonia de uma das classes (COUTINHO, 2008, p. 40).

A novidade de Gramsci tem a ver com a questão da hegemonia. Para Carlos Nelson esta recebe, nas sociedades onde ocorreu a ampliação do Estado, uma base material própria, “um espaço autônomo e específico de manifestação” (COUTINHO, 1989, p. 77).

A sociedade civil, em sociedades onde o Estado foi ampliado (nomeadas por Gramsci de sociedades “Ocidentais[4]”) passa a ter a função, além da produção e proliferação da dominação ideológica, de conquistar o consenso e a hegemonia mediante vias pacíficas que atuem como base da dominação de classe.

Com a ampliação do Estado e da politica, a sociedade civil passa a ter, então, o que podemos chamar de autonomia material, passando a ser dotada de uma legalidade própria, não sendo vinculada tão diretamente à estrutura econômica e nem à sociedade politica. Para Coutinho “em Gramsci, não há hegemonia, ou direção politica e ideológica, sem o conjunto de organizações materiais que compõem a sociedade civil enquanto esfera do ser social”. (idem, ibidem, p. 78). Com esta alteração na relação entre a sociedade civil e sociedade politica, abre-se para Coutinho

a possibilidade, que Althusser nega explicitamente, de que a ideologia (ou o sistema de ideologias) das classes subalternas obtenha a hegemonia no interior de um ou vários aparelhos hegemônicos privados, mesmo antes que tais classes tenham conquistado o poder de Estado em sentido estrito, ou seja, tenham se tornado classes dominantes. É a possibilidade que Gramsci entrevê quando diz que “um grupo social pode e mesmo deve ser dirigente [hegemônico] já antes de conquistar o poder governamental”; uma possibilidade que, aliás, no quadro das sociedades complexas, onde o Estado se “ampliou”, torna-se também necessidade, já que – prossegue Gramsci – “essa é uma das condições principais para a própria conquista do poder”. (idem, ibidem, p. 81)

Concepção marxista do Estado e do sufrágio universal

 Engels aponta que surgimento do Estado se dá por causa da divisão das sociedades em classes sociais antagônicas, de forma que o Estado serve para fazer valer os interesse da classe dominante à toda sociedade. A manutenção desta dominação “em todos os períodos típicos, é sem exceção o Estado da classe dominante e, de qualquer modo, essencialmente uma máquina destinada a reprimir a classe oprimida e explorada.” (ENGELS, 2010, p. 274). O Estado moderno é formado centralmente por duas instituições: o funcionalismo e o exército permanente. Podemos dizer que as duas se inter-relacionam com divisão hierárquica. Lenin afirma que “O Estado é a organização especial da força, é a organização da violência para a repressão de uma classe qualquer” (LENIN, 1988, p. 238). Esta afirmação coloca claramente que a essência do Estado é a repressão e opressão das classes subalternas e que, mesmo a relação com o funcionalismo serve para, além de garantir a exploração econômica, garantir a dominação politica através da violência, por isto a principal característica do Estado, e também do Estado moderno, é monopólio da violência.

Quando falamos de democracia burguesa, estamos falando de uma das formas de dominação politica exercida pela burguesia. A teoria marxista da política faz uma separação entre o que é o Estado e o que é o regime. O Estado pode ser definido pela classe dominante que controla a produção de riquezas e a instituição politica; por exemplo: na sociedade capitalista caracterizamos que o Estado é burguês porque defende a propriedade capitalista, oprime e garante a exploração dos trabalhadores. Na sociedade feudal caracterizamos que o Estado é feudal porque defende a propriedade dos senhores feudais e oprime os servos etc. Já o regime é caracterizado pela principal instituição pela qual é exercido o poder do Estado, por exemplo: o Brasil entre 1964-1985 e o período atual houve uma mudança de regime. Antes as principais instituições de dominação imediata eram as forças armadas e vivíamos sob uma ditadura militar. Atualmente as principais instituições de dominação imediata são o parlamento, o judiciário e o executivo, vivemos então sob uma democracia burguesa. O caráter de classe do Estado, no entanto, permanece o mesmo, em ambos os períodos o este permanece servindo à burguesia (MORENO, 2003, 16-18).

A teoria marxista admite que existem diferenças entre os regimes e que nem todas as formas de dominação exercidas pelas classes dominantes são iguais. Lenin apontava em 1918 em polêmica com Kautsky que

Falar aqui de forma de governo é triplamente estúpido, porque qualquer criança sabe que monarquia e república são formas de governo diferentes. É preciso demonstrar ao senhor Kautsky que ambas estas formas de governo, como todas a “formas de governo” transitórias sob o capitalismo, não são mais que variedades do Estado burguês, isto é, a ditadura da burguesia. (LENIN, 2004, pág 11)

Mas levava em consideração também que

Somos pela república democrática como melhor forma de Estado para o proletariado sob o capitalismo, mas não temos o direito de esquecer que a escravatura assalariada é o destino do povo mesmo na república burguesa mais democrática. (LENIN, 1988, pág 235)

Lenin considera que as mudanças de regime são mudanças na forma da dominação, não em seu conteúdo. Deixa claro também, e reivindica, a conquista do regime democrático burguês como uma vitória para os trabalhadores. A conquista do sufrágio universal é certamente uma vitória da classe trabalhadora, mas como todas as vitórias da classe sob o capitalismo foram apropriadas pela burguesia, podemos dizer que é uma vitória distorcida da classe porque foi resultado de um processo de lutas, mas é utilizada pela burguesia para melhor explorar e oprimir o proletariado.

Ao analisar o governo que foi formado após a Revolução Russa de fevereiro de 1917, o dirigente da Revolução de Outubro caracterizou que as democracias burguesas são, contraditoriamente, o melhor governo para a burguesia explorar e oprimir o proletariado. Isto acontece porque esse tipo de regime permite incorporar dirigentes da classe trabalhadora nos cargos do Estado o que faz com que os trabalhadores confiem que suas antigas direções poderão mudar a estrutura do Estado por dentro da ordem. Além disso, o sufrágio universal é utilizado pela burguesia como um “medidor” de consciência do proletariado (LENIN, 2004, pág. 16).

Por mais que reconhecesse a diferença da democracia burguesa em relação à outros regimes, Lenin entendia também que esta diferença tem limites.

Tomai as leis fundamentais dos Estados contemporâneos, tomai sua administração, tomai a liberdade de reunião ou de imprensa, tomai a “igualdade dos cidadãos perante a lei”, e verás a cada passo a hipocrisia da democracia burguesa, bem conhecida de qualquer operário honesto e consciente. Não há Estado, nem mesmo o mais democrático, onde não haja escapatórias ou reservas nas constituições que assegurem à burguesia a possibilidade de lançar as tropas contra os operários, declarar o estado de guerra, etc. “em caso de violação da ordem”, de facto em caso de “violação” pela classe explorada da sua situação de escrava e de tentativas de não se comportar como escrava. Kautsky embeleza desavergonhadamente a democracia burguesa, nada dizendo, por exemplo, daquilo que fazem os burgueses mais democráticos e republicanos na América ou na Suiça contra os operários em greve. (LENIN, 2004, 16)

Os equívocos teóricos de Coutinho

Coutinho defende que a socialização da politica (legalização dos sindicatos, dos partidos de esquerda, conquista do sufrágio universal etc.) fez com que o Estado mudasse sua natureza, sua essência, e que, portanto, a estratégia dos socialistas frente a esta instituição deve mudar (COUTINHO, 2008 p. 40).

Por seu turno, Nahuel Moreno afirma que “O caráter do Estado define-se, pois, pela classe exploradora que o utiliza para continuar explorando as outras classes” (MORENO, 2003, 16). Podemos compreender a partir desta citação (e a partir do que foi exposto anteriormente) que a essência do Estado é ser um instrumento de dominação e sua essência só poderá mudar, portanto, quando este o deixar de sê-lo. O problema da caracterização de Coutinho é que em diversos momentos em sua obra afirma que mesmo a partir da ampliação do Estado e da politica, o Estado não deixou de ser um instrumento da burguesia, mas que agora se converteu em uma “arena privilegiada da luta de classes (que se trava agora também em seu interior), isso impõe a necessidade de um novo conceito de revolução” (COUTINHO, 2008, p. 29), mas nenhuma dessas mudanças apontadas pelo autor pode ser caracterizada como mudanças de essência porque simplesmente não houve mudança em sua atividade fim.

As categorias de essência e aparência nos permitem analisar a realidade, suas mudanças e permanências de uma forma mais científica e completa. Entendo que as mudanças tão reivindicadas por Coutinho com a ampliação da politica e do Estado são mudanças que ocorreram na aparência, na manifestação, na forma como se dá a dominação, não em sua essência, sua finalidade, seu caráter de classe.

Ao mesmo tempo em que é importante fazer esta separação entre os conceitos, devemos entender que estes estão em constante relação. Como afirma Henri Lefebvre

a aparência, faz parte da essência. Em muitos casos, ela pode ser a manifestação superficial da essência, que logo desaparece (como a espuma do rio). Mas quem produz, ao se manifestar, essa aparência? E quem a destrói? A própria essência em seu movimento. (LEFEBVRE, 1979 p. 217)

O tempo na política não deve ser contado a partir de medidas de tempo como horas, dias, meses ou anos, mas sim a partir das experiências de lutas politicas no interior da luta de classes. Ou seja, o “logo” na citação do autor não deve ser entendido como um sinônimo de “pouco tempo”, mas sim de “pouca experiência”. Como afirmou Lenin “Durante a revolução, milhões e dezenas de milhões de homens aprendem em cada semana mais do que num ano de vida habitual e sonolenta” (LENIN, 1988, pág. 139). Isso quer dizer que a partir de poucas experiências de luta dos movimentos sociais, a aparência pluralista e democrática do Estado é destruída por sua essência de ditadura de classe. Em Junho de 2013, por exemplo, os aparelhos repressivos e ideológicos do Estado, enquanto as manifestações eram majoritariamente pacíficas e não colocava em risco nenhum interesse imediato da burguesia, a repressão era mais localizada. Já durante a Copa do Mundo, qualquer manifestação, mesmo que pacífica, sofria intensa repressão.

Um leitor atento neste momento pode se perguntar “Se a aparência é um reflexo da essência, então a ampliação da politica e do Estado também pode ser colocado como uma mudança na essência do Estado?”. Podemos dizer que houve em certa medida uma mudança, mas esta é superestimada por Coutinho.

O autor acerta quando reivindica a ampliação da politica, mas analisa quase como se fosse o único aspecto da realidade, e sem dúvida nenhuma, a coloca como principal, quando, em qualquer análise política no marxismo, o central é sempre o caráter de classe de qualquer movimento, fenômeno, instituição etc. como nos ensina Leon Trotsky que na “sociologia marxista o ponto inicial de análise de um fenômeno dado – por exemplo, Estado, partido, tendência filosófica, escola literária, etc. – é sua definição de classe.” (TROTSKY, 2011 pág. 174). Sobre isto é importante fazer um apontamento metodológico, já que Lefebvre defende que a ciência

supõe que seja possível estabelecer uma hierarquia entre os fenômenos; que seja possível distinguir entre os que não tem fundamento e os que têm fundamento na essência. Supõe, portanto, que haja o mais e o menos essencial, relações mais ou menos profundas da essência. (LEFEBRE, 1979, pág 218)

E também

A aparência, manifestação ou “fenômeno”, portanto, é apenas um aspecto da coisa, não a coisa inteira. Com relação à essência, o fenômeno é em si mesmo apenas uma abstração, um lado menos rico e menos complexo do que a coisa, um momento abstrato negado pela coisa. A coisa difere da aparência; e, com relação à aparência, a coisa é em si mesma diferença, negação, contradição. Ela não é a aparência, mas sua negação. (idem, ibidem, pág. 218 e 219)

Ou seja, o Estado não são as forças armadas e nem o monopólio da violência, mas tem nesta sua principal característica, e naquelas, sua principal instituição. Podemos dizer que o monopólio da violência foi o que garantiu o surgimento do Estado, é sua principal forma de manutenção, e, para que seja destruído o Estado, deve ser abolida (MORENO, 2003, pág. 14).

Não podemos negar que houve mudanças no Estado capitalista contemporâneo nos países onde ocorreu a ampliação da política e do Estado, mas preferimos caracterizar que a mudança foi, principalmente, quantitativa e não qualitativa.

Podemos dizer que existem nestas sociedades mais possibilidades de discussão de projetos políticos que são defendidos pela esquerda, e até em certa medida, aprovação destes (sempre de forma distorcida, nunca como é integralmente defendida pela esquerda revolucionária), assim como aumentaram as possibilidades de eleger parlamentares e presidentes que tiveram ou tem relações com os movimentos sociais e que chegaram a defender um programa classista em algum momento de sua vida politica. Isto acontece por um fenômeno que Moreno caracteriza muito bem, quando afirma:

Em primeiro lugar, devemos dizer que as formas, as superestruturas dos fenômenos sociais, existem com relativa autonomia das relações de classe que lhes deram origem. Aquelas, geralmente, subsistem com conteúdos diversos. (MORENO, 2003, pág. 33)

A relação entre forma ou superestrutura e conteúdo ou relação entre classes apresenta, deste modo, contradições agudas.

Devemos esclarecer que estamos nos referindo às relações a médio ou curto prazo (vinte, dez ou menos anos), não às que se estabelecem ao longo do tempo de uma época histórica. No marco de uma época histórica, o estancamento das forças produtivas, a crise capitalista e a revolução socialista originam a crise de todos os sistemas de dominação burguesa e burocrática, sem exceção, e são as determinantes absolutas. (idem, ibidem, p. 33)

As mudanças quantitativas são mudanças na aparência, por exemplo, uma mudança de um regime ditatorial para uma democracia burguesa é uma mudança quantitativa, pois o caráter de classe do Estado se manterá por mais que tenha mais espaço e possibilidade de intervenção política. Já as mudanças qualitativas são mudanças na essência, ou seja, na estrutura, como por exemplo, a mudança do Estado capitalista para um Estado operário transicional, para isto acontecer é necessário, não só que se alterem, mas que se invertam as relações entre as classes.

Como analisamos com mais atenção anteriormente as relações entre essência e aparência, é necessário que também o façamos com relação à quantidade e qualidade, pois, segundo Lefebvre

a quantidade expressa o lado vulnerável de toda existência e, por conseguinte, “o aspecto através do qual toda existência é exposta a um ataque súbito” (Hegel). Um pequeno acréscimo de quantidade leva a um evento. Uma organização econômica se desenvolve; em dado momento, deve buscar outra constituição, outras leis jurídicas, e até mesmo, em alguns casos deve transformar-se radicalmente. (LEFEBVRE, 1979, pág. 214 e 215)

A quantidade, portanto, tem uma importância prática primordial. Consiste na mediação através do qual se ataca a qualidade a fim de modifica-lo. (idem, ibidem, pág. 215)

As relações entre qualidade e quantidade

revelam-se inseparáveis, como dois aspectos da existência concretamente determinada. Mas esses dois aspectos não se misturam, não se confundem numa unidade abstrata. Processa-se uma espécie de luta surda, de conflito (embora ainda não se possa falar aqui, nessa análise do real, de “forças” propriamente ditas), entre esses dois lados do ser, que se afirmam e se negam, solidariamente, um ao outro. No devir, a qualidade determinada, o “algo”, resiste (por assim dizer) e dura. A quantidade, então, não é mais que uma determinação indiferente da coisa, que não lhe é essencial, pois nesse nível a coisa aumenta ou diminui sem alteração profunda. Depois, surge um momento em que a qualidade é envolvida, arrastada, superada. Um ser novo, uma nova qualidade aparece. E o momento em que a qualidade desaparece, em que é criada outra qualidade, é também o momento no qual a quantidade manifesta que ela não era inessêncial à coisa, mas fazia parte de sua essência. (idem, ibidem, pág. 212 e 213)

Lenin sintetiza esta relação em duas citações que reproduziremos aqui para esclarecer nosso ponto de vista.

O desenvolvimento da democracia até o fim, a procura das formas desse desenvolvimento, a sua comprovação na prática, etc., tudo isso é uma das tarefas integrantes na luta pela revolução social. Tomado em separado, nenhum democratismo dá o socialismo, mas na vida o democratismo “tomado em separado”, antes será “tomado juntamente com”, exercerá sua influência também na economia, impelirá a sua transformação, sofrerá a influência do desenvolvimento económico, etc. Tal é a dialéctica da história viva; (LENIN, 1988, pág. 275)

E conclui ao fazer uma análise sobre a Comuna de Paris e suas alterações na estrutura do Estado

Deste modo, a comuna substitui aparentemente a máquina de Estado quebrada “ apenas” por uma democracia mais completa: supressão do exército permanente, plena elegibilidade e amovibilidade de todos os funcionários públicos. Mas a realidade este “apenas” significa a substituição gigantesca de umas instituições de tipo fundamentalmente diferente. Aqui observa-se exatamente um dos casos de “transformação da quantidade em qualidade”: a democracia, realizada de modo tão completo e consequente quanto é concebível, converte-se de democracia burguesa em proletária, de Estado (= força especial para a repressão de uma classe determinada) em qualquer coisa que já não é, para falar propriamente, Estado. (idem, ibidem, pág. 250)

Em vista disso concluímos que em Carlos Nelson Coutinho o Estado sofreu uma em sua natureza, sua essência. Em sua opinião, isto coloca para os revolucionários a necessidade de mudança de sua estratégia posto que esta instituição deixou de ser, em sua essência, o “Comitê executivo da burguesia” para se tornar a “arena privilegiada da luta de classes”. No nosso entendimento, com base no estudo dos clássicos do marxismo, a mudança que aconteceu no Estado foi meramente de aparência, ou, para ser mais exato, de pouca profundidade na essência. Defendemos isso porque a essência do Estado é a garantia da dominação de uma classe parasitária sobre uma produtora, a única mudança profunda na essência do Estado é justamente o operário transicional onde as relações se invertem, a instituição passa a ser dominada pela e para a maioria dos trabalhadores com o objetivo de acabar com a burguesia enquanto classe.

Este debate é importante por uma passagem que pode ter passado despercebido pelos leitores. Coutinho conclui que, com a mudança na natureza do Estado, devemos mudar também nossa estratégia e nosso “conceito de revolução”. Levando isto em consideração Carlos Nelson elabora a teoria do “reformismo-revolucionário” que é o centro de seu revisionismo. Este assunto desenvolveremos no próximo artigo.

Referências Bibliográficas:

            COUTINHO, Carlos Nelson. Gramsci: um estudo sobre seu pensamento politico. Rio de Janeiro. Editora Campus, 1989.

            ____________. Marxismo e Política: A dualidade de poderes e outros ensaios. 3ª edição. São Paulo. Editora Cortez, 2008.

            ____________. Contra  a Corrente: Ensaios sobre a democracia e  socialismo. 2ª edição revisada e atualizada. São Paulo. Editora Cortez, 2008.

            ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. 2. edição. São Paulo. Expressão Popular, 2010.

            LENIN, V. I. O Estado e a Revolução. In: obras escolhidas em 3 tomos, tomo 2. 2ª Edição. São Paulo. Editora Alfa-Omega, 1988.

            __________. As Lições da Revolução. In: obras escolhidas em 3 tomos, tomo 2. 2ª Edição. São Paulo. Editora Alfa-Omega, 1988.

            __________. A revolução proletária e o renegado Kautsky. In: Obras escolhidas em 3 tomos, tomo 3. 2ª Edição. São Paulo. Editora Alfa-Omega, 2004.

            MORENO, Nahuel. As Revoluções do Século XX. São Paulo. Editora Sundermann, 2003.

            ______________. Os Governos de Frente Popular na História. São Paulo. Editora Sundermann, 2003.

            LEFEBVRE, Henri. Lógica formal/lógica dialética. 2ª Edição. Rio de Janeiro. Civilização Brasileira, 1979.

            TROTSKY, Leon. Em defesa do marxismo. São Paulo. Editora Sundermann, 2011.


[1] Este trabalho é o primeiro capítulo do meu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de História na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). O trabalho ainda está em seu inicio e, portanto, ainda não apresenta muitas conclusões. Este esboço que vos apresento pretende ser apenas o primeiro capítulo.

[2] A definição de sociedade Oriental aparece nas obras de Gramsci e Coutinho como definições sócio-políticas, não geográficas. Para os autores esta definição se refere à sociedades que não tenham uma sociedade civil com muita força políticas, que não tenham partidos de massas, sindicatos com amplo trabalho na base e liberdades políticas, chegam até a falar que a sociedade civil nesses países é pouco desenvolvida e “gelatinosa”. Usam como exemplo a Rússia Czarista.

[3] É o conjunto de organizações (mídias, sindicato, partido) que tem por objetivo elaborar e difundir ideologias de uma determinada classe ou de um determinado setor de classe.

[4] A diferença das sociedades Ocidentais para as orientais é que aquelas desenvolveram uma sociedade civil com um certo grau de independência do Estado. Nestas sociedades passa a haver um certo equilíbrio entre sociedade civil e a sociedade política. O Estado deixa de ser centralmente um aparelho de repressão e passa a exercer sua dominação através, principalmente, dos aparelhos privados de hegemonia.