Jornal O Estado de São Paulo*
Aldo Cordeiro Sauda, Marcia Camargos
Nem a roupa encharcada, nem a viagem de cinco horas na escuridão do mar Egeu em um precário bote inflável, foram capazes de roubar a alegria de Adel Ali. Sentado no gramado, expunha seus parcos pertences secando ao sol: uma foto em preto e branco, partituras para alaúde e um livro de filosofia clássica. Após desatar, com cuidado, o nó de uma luva cirúrgica que trouxera consigo, o curdo começou a rir sozinho. Retirando um pequeno HD externo que por sorte escapara ileso, disse, exultante: “Consegui salvar a memória da minha vida”.
Assim como os outros quarenta e poucos sírios que o acompanharam na viagem de Bodrum, na Turquia, até a ilha grega de Kos, Adel Ali fugia da guerra. Professor de inglês em Kobane, que se tornou um dos símbolos da resistência curda aos ataques militares do Estado Islâmico, ele afirmava preferir o teatro à luta armada como instrumento de combate aos fundamentalistas religiosos. Disposto a caminhar por semanas em terras desconhecidas, cruzar fronteiras despistando a polícia e o exército, e por fim, enfrentar as águas do oceano em embarcações superlotadas sem sequer saber nadar, aquele jovem, bem como seus colegas, expressam o que há de mais corajoso em suas sociedades.
Dos refugiados que, desde o início do ano, têm entrado em quantidades atípicas nas praias de Kos, metade vem da Síria. O segundo maior conjunto, que deve representar algo em torno de um quarto do total, saiu do Afeganistão. Depois deles, uma miscelânea de nacionalidades africanas e asiáticas compõem o mosaico internacional dos recém-chegados. De janeiro a junho deste ano, mais de 60 mil ilegais ali atracaram, o dobro dos que aportaram ao longo de todo 2014.
Menos distante, e portanto mais segura do que a travessia que separa a Líbia da Itália, a Grécia vai se tornando o principal portão de entrada a alimentar a atual crise de refugiados no continente europeu. Sem dúvida contribui para essa equação a recente política de imigração adotada pelo governo Syriza, que busca se livrar dos métodos intimidantes do regime anterior. Além do fim das batidas policiais vexatórias na capital, os novos dirigentes suspenderam a prática do “pushback” no mar Egeu – quando os navios da guarda costeira grega bloqueavam os barcos de imigrantes, empurrando-os para longe das suas águas territoriais. Ilegal segundo o direito internacional, a postura já resultara na morte de algumas dezenas de pessoas em acidentes marítimos. Sintomaticamente, era ignorada pela União Europeia, que fechava os olhos em agradecimento ao favor prestado pelas forças armadas gregas.
Porém, é preciso ressaltar, a política do Syriza define-se mais pela ausência de métodos cruéis do que por uma agenda positiva de acolhida. Sem assistência, a maioria acaba acampando nas praças e parques da cidade. Alguns são encaminhados ao Capitan Elias, um prédio abandonado de três andares nas redondezas de Kos, sem os mínimos recursos de um centro para refugiados. No antigo hotel falta luz elétrica, saneamento básico e qualquer iniciativa social. Uma torneira do lado de fora, na qual os estrangeiros tentam se lavar, era o único sinal de água encanada existente no local.
Lá dentro, a sujeira acumulada, o cheiro de urina e suor infestam o ambiente abafado. Na parede descascada, um cartaz do grupo Médicos Sem Fronteiras, com endereços e números de telefone. No único quarto não tomado pelos que lotam os corredores e jardins do edifício, um suposto escritório da entidade fica fechado e vazio boa parte do tempo. Não fosse a solidariedade de um ou outro turista, e dos moradores que levam alimentos e brinquedos, os refugiados decerto morreriam de fome.
Em tal contexto de tragédia humanitária sem precedentes, a Grécia tem, ironicamente, um ponto a seu favor. Com a economia e sistema financeiro devastados, não desponta como um destino atraente para quem busca melhores condições de vida. O objetivo predominante é fazer de Atenas um trampolim em direção aos países do Norte da Europa. Não por acaso, imagens dramáticas do porto francês de Calais repercutem na mídia, mostrando milhares de famílias diante do túnel que liga Paris a Londres, em uma tentativa desesperada de alcançar o Reino Unido.
Nada contentes com a situação nesta importante via de acesso ao seu território, os ingleses estão reclamando também de Kos. Em artigo do conservador The Daily Mail, com mais de 60 mil compartilhamentos no Facebook, os britânicos queixavam-se da estética desagradável que vai tomando conta das suas praias de veraneio.
Para eles, diz o jornal, causa enorme constrangimento comer nos restaurantes à beira-mar, com os refugiados assistindo de perto. Estraga o apetite, atrapalha a vista e prejudica as férias no paraíso.
Por sua vez, Abdel Ali confirma que as ilhas estão, sim, tomadas por bárbaros. “Os turistas daqui não têm a menor noção”, alertou, abrindo seu livro de filosofia. “Estamos no lugar onde Hipócrates inventou a medicina, e eles só querem saber de tomar banho de sol.”
* Texto originalmente publicado no Caderno Aliás, do Jornal O Estado de São Paulo, 9 de Agosto de 2015. As fotos expostas que não pertencem ao arquivo pessoal do autor Aldo Cordeiro Sauda foram originalmente publicadas dia 27 de Maio de 2015, no Jornal londrino Daily Mail, sob o título “Quantos mais Kos conseguirá aguentar? Milhares de pessoas de barco vindas da Síria e Afeganistão erguem campos de imigrantes em uma popular ilha grega – com os veranistas descrevendo a situação como ‘nojenta’” [How many more can Kos take? Thousands of boat people from Syria and Afghanistan set up migrant camp in popular Greek island – with holidaymakers branding the situation ‘disgusting’].
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