Joallan Rocha
Los actuales dirigentes estamos convencidos que no aceptaremos cualquier reduccionismo clasista convirtiéndonos sólo en “campesinos”. Tampoco aceptamos ni aceptaremos cualquier reduccionismo etnicista que convierta nuestra lucha a un confrontamiento de “indios” contra “blancos”. Somos herederos de grandes civilizaciones. También somos herederos de una permanente lucha contra cualquier forma de explotación y opresión. Queremos ser libres en una sociedad sin explotación ni opresión organizada en un Estado plurinacional que desarrolla nuestras culturas y auténticas formas de gobierno próprio (EL COMITÉ EJECUTIVO DE LA CSUTCB Ch´upiyap marka (La Paz), octubre de 1983).
No final de 2015 completam-se 10 anos da eleição de Evo Morales, o primeiro presidente de origem indígena na história da Bolívia, eleito com 52% dos votos em dezembro de 2005. A eleição de Evo Morales ocorreu após um ciclo de rebeliões populares entre os anos 2000 e 2005 que marcaram profundamente a história recente do país. A primeira, foi a “Guerra da Água”, como ficou conhecida a revolta popular na cidade de Cochabamba no ano 2000 que derrotou o processo de privatização da agua e expulsou uma empresa transnacional francesa.
Em outubro de 2003, os bolivianos protagonizaram uma revolta popular em defesa dos recursos naturais brutalmente reprimida pelo exército, causando a morte de aproximadamente 65 pessoas. As Jornadas de Outubro de 2003 ou a “Guerra do Gás” provocou a derrubada do presidente Gonzalo Sanches de Lozada, “Goni”. Em maio e junho de 2005 os bolivianos voltaram às ruas, agora, contra o presidente Carlos Mesa, vice-presidente de Goni. Entre as reivindicações que unificaram indígenas, camponeses, operários e setores da classe média urbana estavam a luta contra a privatização da agua, a nacionalização e industrialização dos recursos naturais (gás, petróleo e minas) e a convocação de uma Assembleia Constituinte.
Em dezembro de 2005, Evo Morales, do Movimento Ao Socialismo (MAS), é eleito com 53,74%. A vitória eleitoral de Morales significou uma dura derrota dos partidos tradicionais, que governaram a Bolívia desde o fim da ditadura em 1982. Após a vitória de Evo Morales a direita boliviana se reorganizou no Oriente do país, em particular nos estados mais ricos como Santa Cruz e Tarija onde se concentram as maiores reservas de gás e petróleo, e os grandes agroindustriais da soja. Entre 2006 e 2008 o país presenciou uma profunda polarização social e instabilidade política. As medidas do governo não foram suficientes para resolver a crise política.
A crise política foi resolvida depois de um pacto politico entre o governo e setores da direita em torno à nova Constituição em outubro de 2008. O pacto significou a manutenção dos privilégios (o controle sobre a terra) dos grandes latifundiários do Oriente. Este acordo contrariou alguns setores indígenas e camponeses do Oriente que reivindicavam a reforma agraria e a expropriação dos latifúndios.
A nova constituição pactuada foi aprovada em plebiscito nacional com 61,43% de apoio e gerou enormes expectativas na maioria da população, em particular entre os indígenas e camponeses. Segundo o texto constitucional se fundava o novo “Estado Plurinacional da Bolívia”. Em dezembro de 2009 se realizaram novas eleições presidenciais e Evo Morales foi reeleito com 64,2%. Em outubro de 2014, Morales é eleito pela terceira vez com 61,36% e governará o país até 2020.
Esta breve síntese histórica coloca a necessidade de uma discussão mais profunda sobre o caráter e a natureza de classe do governo Evo Morales, um tema bastante polêmico no interior da esquerda e da intelectualidade boliviana. Este artigo retoma parte do debate realizado por alguns dos intelectuais mais importantes da Bolívia na atualidade, entre eles, destaco o atual vice-presidente Álvaro Garcia Linera[1] e o filósofo e cientista político Luiz Tapia[2] (ambos pertenciam à um grupo de intelectuais conhecido como COMUNA).
A experiência boliviana nos últimos dez anos coloca para a esquerda e os marxistas, o desafio de entender a complexa sociedade boliviana e a natureza de classe do governo Evo Morales. Este artigo é uma pequena contribuição a esse debate. Para isso focaremos a análise na discussão sobre a origem, ideologia, composição, programa e políticas implementas pelo governo ao longo dos 10 anos.
Movimento ao Socialismo (MAS): Da luta camponesa à eleição de Evo Morales.
O MAS-IPSP (Movimento ao Socialismo-Instrumento Político pela Soberania dos Povos) foi fundado em 27 de março de 1995 na cidade de Santa Cruz. Nesse encontro participaram centenas de indígenas, camponeses e intelectuais de esquerda. Esses setores buscavam construir uma alternativa política contra a ofensiva do neoliberalismo.
O MAS se construiu em uma conjuntura de profundo retrocesso do movimento sindical A COB se encontrava extremadamente debilitada nos anos 90. Frente à crise do movimento operário, o MAS cumpriu um papel progressivo na resistência ao neoliberalismo ao organizar as lutas contra a criminalização do cultivo da folha de coca, em defesa dos povos indígenas e o direito à Terra e Território, além das mobilizações contra o racismo e a discriminação étnica. Segundo Lorgio Orellana, o MAS,
[…] surgiu como um órgão político de um movimento camponês de classe no Trópico de Cochabamba, com uma visão, uma ideologia e uma simbologia anti-imperialista e indigenista, de oposição às políticas de erradicação e criminalização dos cultivos de coca, promovidas pelo governo norte americano, mas também com uma visão de oposição às políticas neoliberais implementadas na Bolívia desde 1985 (ORELLANA AILLÓN, 2006, p.30-31)
O MAS foi a expressão política da emergência dos movimentos sociais indígenas-camponeses nos anos 90, em particular dos camponeses que cultivavam a folha de Coca, cuja maior liderança é o atual presidente Evo Morales. Nos anos 90 os movimentos sociais vinculados ao MAS, como a CSUTCB[3], CIDOB[4] e o CONAMAQ[5] estiveram na linha de frente da luta contra o neoliberalismo.
[…] A partir de um núcleo do sindicalismo camponês que, ao final, se organiza a Assembleia pela Soberania dos Povos (ASP), que logo, por questões de reconhecimento eleitoral, adotou o nome de Movimento ao Socialismo (MAS). Este partido, basicamente, é composto por representantes cocaleiros e está presente no sistema de partidos através da Esquerda Unida, a frente de esquerda política que articulava o que restava da esquerda durante os anos 80 e 90 (TAPIA, 2010, p.142-143).
A partir de 2002, o partido ampliou sua base social em direção aos setores populares e à classe média urbana. A partir desse momento o partido foi mudando paulatinamente sua composição social. Os dirigentes das organizações indígenas e camponeses foram pouco a pouco substituídos por intelectuais de esquerda oriundos das classes médias urbanas, que passaram a ter maior preponderância. O principal intelectual que adere ao MAS é o sociólogo e ex-militante do grupo guerrilheiro, EGTK (Exército Guerrilheiro Tupak katari), Álvaro Garcia Linera, que esteve preso durante 5 anos (entre 1992 e 1997) sob a acusação de promover o “terrorismo e a insurreição”
A direção do partido passou a adotar um discurso mais moderado e conciliador, adaptado às “instituições democráticas” e à estratégia eleitoral. As eleições presidenciais de 2002, marcaram uma mudança significativa no perfil político e ideológico do MAS em relação aos anos 90. Nestas eleições Evo Morales obtém o segundo lugar com 20,9%, enquanto o presidente eleito, Gonzalo Sanches de Lozada obteve 22,5%.
Nas eleições presidenciais de dezembro de 2005, a maioria da população encontrou no MAS e na chapa Evo Morales-Álvaro Garcia Linera uma alternativa real para derrotar os partidos da direita tradicional que governaram a Bolívia desde o fim da ditadura, em 1982. Para a maioria da população, a eleição de Evo Morales significava o fim do saque dos recursos naturais por um lado, e o fim da secular opressão étnico-cultural a que foram submetidos os povos e nacionalidades indígenas.
Nesse sentido a eleição de Evo Morales, em dezembro de 2005, foi a expressão de um processo crescente de polarização social e acumulação de forças dos setores populares, indígenas, camponeses, operários desde o ano 2000. O Movimento Ao Socialismo foi identificado por amplos setores da sociedade boliviana como uma alternativa para resolver a crise política, social e econômica que atravessava o país.
O presidente Evo Morales chegou ao poder com um grande apoio popular e uma expressiva votação. No entanto a crise política e a polarização social provocada pelas rebeliões de 2003 e 2005 se manteve. Além da pressão popular pelo cumprimento das reivindicações dos diferentes grupos sociais, o governo sofreu a oposição das elites econômicas e políticas regionais que governavam as principais províncias do Oriente boliviano, em especial o departamento de Santa Cruz, onde se encontram as principais reservas de Gás e Petróleo, e uma forte presença do agronegócio.
O “Nacionalismo Indígena no Poder”?
Quando Evo Morales foi eleito presidente, o país se encontrava geográfica e politicamente dividido. De um lado, estavam os setores conservadores e as classes dominantes do Oriente do país, preocupados e temerosos com as mudanças e medidas que pudessem afetar o seu poder econômico e político, sobretudo o controle exercido sobre a propriedade da terra; por outro, as distintas organizações sociais e sindicais do campo e da cidade depositavam grandes expectativas no governo, mas não estavam dispostas a esperar pacientemente o cumprimento de suas principais reivindicações.
Frente a este cenário, o governo buscou sempre uma saída pactuada e acordada para resolver a crise política e conter a pressão dos movimentos sociais. Para isso, utilizou-se do respaldo e apoio que tinha entre os movimentos sociais e setores da classe média e, em menor medida, do apoio entre os trabalhadores assalariados. As principais organizações e movimentos sociais se integraram ao aparato estatal e reconheciam Evo Morales como “seu governo”.
O discurso político do governo Evo Morales combina e articula duas matrizes ideológicas: o “nacionalismo” e o “indigenismo”. Mas, até que ponto estas representações correspondem à realidade? O Governo Evo Morales e o MAS têm implementado um projeto nacionalista e anti-imperialista? O Estado Plurinacional e o processo de descolonização mudaram realmente as estruturas de dominação? A Bolívia está avançando rumo ao socialismo comunitário? O indigenismo do governo tem preservado e respeitado as formas de formas de autogoverno das comunidades indígenas-camponesas (Ayllus)?
A resposta à algumas dessas questões tem gerado um profundo debate na Bolívia. Para o cientista político Pablo Stefanoni (2006), a eleição de Evo Morales significou a abertura de um novo ciclo nacionalista e indigenista na Bolívia:
[…] Diferentemente das experiências anteriores, este novo nacionalismo plebeu não é articulado pelas Forças Armadas nem pelas classes médias urbanas, mas pelas massas indígenas-mestiças que recuperaram parcialmente as clivagens próprias do velho nacionalismo boliviano (luta entre a nação e a anti-nação, anti-imperialismo e demanda de nacionalização da economia e do Estado), mas incorporando um novo componente étnico-cultural e de auto representação social na construção de uma identidade coletiva popular atravessada por múltiplas identificações sindical-corporativas (STEFANONI, 2006, p.38).
O atual vice-presidente e mentor intelectual do governo Morales, Álvaro García Linera (2006), também corrobora a tese de que o MAS representa um projeto “nacionalista”, ainda que busque diferenciá-lo dos projetos nacionalistas anteriores. Na sua opinião “ […] o, MAS representa o despertar dos sujeitos subalternos para um novo nacionalismo revolucionário, mas isso não quer dizer que o movimento de Evo Morales pretenda ressuscitar a velha ideologia do nacionalismo revolucionário” (LINERA, 2006).
O triunfo do MAS abre a possibilidade de transformação radical da sociedade e do estado, mas não em uma perspectiva socialista (ao menos a corto prazo) como defende uma parte da esquerda […] O capitalismo andino-amazônico é a maneira que, acredito, se adapta mais a nossa realidade para melhorar as possibilidades das forças de emancipação operária e comunitária a médio prazo. Por isso o concebemos como um mecanismo temporário e transitório (LINERA, 2006).
Diferente da análise de Stefanoni e Garcia Linera, consideramos que o MAS e o governo Evo Morales não representam um projeto Nacionalista e Indigenista. O máximo que se poderia dizer é que nos primeiros três anos de governo, o MAS representou um “nacionalismo moderado e pragmático” como resposta à pressão popular. Em certa medida o discurso “nacionalista” do MAS, compartilha alguns elementos do nacionalismo revolucionário do MNR[6] (Movimento Nacionalista Revolucionário) dos anos 40 e 50, em particular a tese de que é necessário “desenvolver o capitalismo”, criar uma “burguesia nacional” e “industrializar o país”.
Nesse sentido, o “Processo de transformações”, a “revolução democrático-cultural” ou o “socialismo comunitário” que impulsiona o governo Evo Morales são tentativas de reformar o estado boliviano e construir uma sociedade capitalista “moderna”, sem romper com as relações de dependência e subordinação ao imperialismo, como está expresso na teoria do “capitalismo andino-amazônico” do intelectual e vice-presidente Álvaro García Linera. No que concerne a relação com o grande capital nacional e internacional, o nacionalismo indígena apresenta grande limitações. Do ponto de vista da relação com os recursos naturais, o MAS propõe conviver como sócios das empresas transnacionais. Concordamos com a perspectiva do intelectual boliviano apontada pelo Luís Tapia,
[…] o MAS de maneira nenhuma representa, encarna, defende ou desenvolve propostas de um modo comunitário de relação com a natureza e de transformação da estrutura econômica boliviana em que cada vez tenham mais importância ou relevância formas não capitalistas de direção, propriedade e gestão mais coletiva. O MAS encarna a continuidade e exacerbação do modelo de exploração extrativista capitalista, que se volta mais agressivo, já que, com se concebem como representantes e controladores do “popular”, querem impor um novo ciclo ou onda de expansão e depredação capitalista em territórios indígenas (TAPIA, p. 128, 2011).
A retórica “anti-imperialista e anticapitalista” do MAS e de Evo Morales, diferente do Nacionalismo Revolucionário do início do início dos anos 50, parece representar, mais do um projeto, um discurso “nacionalista moderado e pragmático”. Para Tapia,
A nacionalização atual, que implica retomar parte da experiência histórica do passado, basicamente significa estatização e uma reorganização sob o padrão de capitalismo de estado, que compartilha com o capital transnacional a exploração dos recursos naturais hidrocarbonetos. Os processos de produção seguem basicamente a cargo de empresas transnacionais. Nesse sentido, a principal reforma tem a ver com a margem de controle fiscal e a retenção do excedente por parte do Estado […]. Não há nenhum signo de que isto levaria a autogestão, cogestão ou outras formas de socialização na organização do regime de propriedade e na direção dos processos de produção. Nesse sentido, não há nenhum componente de socialismo nessa perspectiva. (TAPIA, p.97, 2011).
Um novo Estado Plurinacional?
A grande novidade no processo político boliviano é a emergência do elemento étnico, ou seja, a incorporação no discurso político da “luta indígena pela inclusão e reconhecimento” das nações e povos indígenas historicamente excluídos e marginalizados pelo Estado boliviano.
A ideia do Estado Plurinacional é um dos momentos mais fortes da catarse política, já que implica defender o horizonte no qual há que pensar e organizar as formas políticas que contenham a todos os povos e culturas, não só como cidadão reconhecidos e governados por um mesmo conjunto de leis e instituições, mas que também os inclua nos processos de tomada de decisões e de governo a traves de suas próprias formas de vida política e autogoverno. A ideia do Plurinacional é um dos componentes mais importantes da reforma moral e intelectual que se operou na vida política boliviana nos últimos anos, já que implica um desvio do anglo e eurocentrismo liberal modernos, ainda que estes não são processos completados ou realizados, são uma tendência. (TAPIA, p.94, 2011).
O discurso indigenista do governo se articula com a “defesa da pátria” sobre os interesses “setoriais”, “corporativistas” e de “classe”; O “nacionalismo indígena”, representado pelo MAS e por Evo Morales, busca uma reforma do Estado e do regime político boliviano através da fundação do Novo Estado Plurinacional fundado a partir da aprovação da Nova Constituição Política do Estado em janeiro de 2009. A Nova Constituição estabelece que,
Artigo 1. A Bolívia se constitui em um Estado Unitário Social de Direito, Plurinacional, comunitário, livre, independente, soberano, democrático, intercultural, descentralizado e com autonomias. Bolívia se funda na pluralidade e o pluralismo político, econômico, jurídico, cultural e linguístico, dentro do processo integrador do país. Artigo 2. Dada a existência pré-colonial das nações e povos indígenas originários camponeses e seu predomínio ancestral sobre seus territórios, se garante sua livre determinação no marco da unidade do Estado, que consiste no seu direito à autonomia, ao autogoverno, a sua cultura, ao reconhecimento de suas instituições e à consolidação de suas entidades territoriais, como a esta Constituição e a lei. Artigo 3. A nação boliviana está conformada pela totalidade das bolivianas e dos bolivianos, as nações e povos indígenas originário-camponeses, e as comunidades interculturais e afro bolivianas que em seu conjunto constituem o povo boliviano. (Nova Constituição Política do Estado, aprovada em janeiro de 2009).
O projeto do MAS e de Evo Morales, expresso na nova CPE, visa a incorporação, discursiva e mística, de certas reivindicações étnicas e culturais dos povos indígenas, através da “Refundação do Estado”, incorporando a Plurinacionalidade como princípio fundante da sociedade boliviana. Para o vice-presidente, Álvaro García Linera, esta definição estabelece, “o reconhecimento de que a Bolívia é uma nação de nações, onde estamos Aymaras, Quéchuas, Guaranis, mestiços, afros bolivianos etc., a nova constituição reconhece que somos um estado plurinacional (…) O Estado, o poder político, as instituições são agora plurinacionais” (LINERA, p.13, 2008)
Nessa perspectiva, o “nacionalismo indígena” ou “indigenismo” é uma construção discursiva e ideológica e, ainda que nos ajude na caracterização do governo Evo Morales, apresenta grandes limitações, na medida em que as políticas implementadas pelo governo foram na contramão do discurso da Plurinacionalidade. Para Tapia (2011) “só de maneira complementaria e como discurso de legitimação e conexão com parte de suas bases sociais aparece o componente do Plurinacional” (TAPIA, p.99, 2011).
As propostas do governo têm explicitado que o núcleo do seu programa implica uma ampliação do mesmo núcleo extrativista predominante previamente, quer dizer, represas na Amazônia que vão inundar territórios de povos e culturas que a nova constituição reconhece, mas a política do governo apaga; por outro lado a construção de uma estrada que vai dividir ao meio uma das principais áreas protegidas do país afetando negativamente territórios comunitários. Novamente a ideia de desenvolvimento do governo nega o reconhecimento plurinacional. Tem forçado a aprovação para estender as áreas de prospecção e exploração em territórios de comunidades indígenas. Os núcleos centrais do programa econômico do governo implicam a destruição da diversidade cultural e negação do reconhecimento da territorialidade indígena; já que sobrepõe as decisões do poder executivo sobre as decisões políticas e a deliberação dos povos que vão ser afetados […]. Durante o ano 2010 o MAS já explicitou, inclusive de maneira cínica, a linha anti-indigena que o caracteriza. Está disposto a impor seus planos de exploração dos recursos naturais, de exploração das pessoas e de destruição de suas formas culturais sem nenhum respeito pela opinião e a soberania dos povos indígenas. De fato, cabe ver aí um dos componentes centrais da linha política estratégica que se está apontando. As obras que o governo pretende realizar são parte do plano IRSA, quer dizer, da geopolítica imperialista no continente que têm desenhado a infraestrutura que necessitam os circuitos de acumulação transnacional para explorar de maneira mais intensiva os recursos naturais e a população de nossos países. As obras são parte do núcleo central do programa de governo do MAS, e são aquelas que respondem sobretudo aos interesses geopolíticos do estado brasileiro. (TAPIA, p.97-98, 2011).
A partir destes elementos é preciso avançar em uma caracterização da natureza de classe do governo Evo Morales, tomando como referência a perspectiva teórica e critica apontada pelo intelectual boliviano Luís Tapia. Nesse sentido não podemos considerar apenas os discursos, a origem social do MAS e do atual presidente para caracterizar o governo e o caráter do “novo” Estado boliviano. É necessário um critério mais objetivo, de classe, que leve em consideração “a relação do governo com as instituições do Estado e as relações econômicas, sociais e políticas que o governo protege, defende e impulsiona”. No caso boliviano, o governo Evo Morales, têm impulsionado o capitalismo dependente e pró-imperialista com uma roupagem indigenista. A partir desse critério consideramos a análise realizada por Lorgio Orellana Aillón, a que melhor se aproxima de uma perspectiva crítica e marxista (2006):
Os novos governantes do MAS compartilham com seus oponentes neoliberais o mesmo respeito pela propriedade privada e pelas instituições do Estado capitalista; como os governos anteriores, pretendem incentivar a inversão estrangeira, promover a seguridade jurídica e trabalhar em sociedade com as empresas transnacionais […]. O MAS compartilha com os anteriores funcionários do estado o mesmo respeito pelas estruturas fundamentais do capitalismo […]. O ascenso do novo governo, então, não indica uma mudança de regime de acumulação, senão a renovação de gerentes estatais que agora procuram revisar as funções regulatórias e redistributivas do Estado no processo de reprodução do capital monopolista, sitiado no setor primário exportador; sem transformar estas funções nem as bases econômico-sociais em que se fundamentam: o controle privado e transnacional sobre as principais condições objetivas da produção (ORELLANA AILLÓN, 2006, p.33)
Entre a cooptação e o transformismo
Para cumprir o papel de “árbitro” entre as classes, o governo do MAS necessitou cooptar e integrar as organizações camponesas, operárias e populares ao aparato estatal. Esse foi o destino da grande maioria das organizações indígenas e camponesas no início do governo, que passaram a ocupar ministérios e vice ministérios. O mesmo destino teve as organizações sindicais urbanas, como a COB e a FSTMB[7], ambas organizações realizaram um pacto político com o MAS nas eleições de 2014 e abortaram a construção de um partido dos trabalhadores com o objetivo de se elegeram como deputados e senadores (o ex-secretário executivo da COB foi eleito senador e mineiros de Huanuni foram eleitos deputados pelo MAS).
No entanto a partir de 2010 o governo passou a utilizar de maneira deliberada a repressão e criminalização dos movimentos sociais, foi assim no conflito do “gasolinazo”, na luta em defesa do parque nacional indígena TIPNIS e na luta dos trabalhadores pela redução da idade de aposentadoria. Os setores sociais e dirigentes sindicais que passaram a questionar o governo foram perseguidos, processados e acusados de fazer o jogo da direita e do imperialismo, como ocorreu com os trabalhadores mineiros que impulsionaram a construção do Partido dos Trabalhadores.
O governo Evo Morales estabeleceu um novo pacto entre o Estado e as organizações sindicais indígenas, camponesas, operárias e populares. Este processo marcou a cooptação e integração de dirigentes sindicais em postos chaves do governo.
A cooptação de dirigentes populares em cargos ministeriais, como é o caso dos dirigentes das associações de bairro de El Alto, da Federação de Cooperativas Mineiras, do sindicato industrial além do decisivo controle do MAS sobre as organizações camponesas e indígenas do país, indicam a probabilidade da formação de organizações populares e sindicatos paraestatais, que se constituiriam na base fundamental do novo governo e a base de sua legitimidade (ORELLANA AILLÓN, 2006, p.51-52, tradução do autor).
Este processo se assemelha ao que ocorreu durante os governos do MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário) na década de 50 e 60, que buscou integrar ao governo e ao Estado, as organizações sindicais em especial a COB e a FSTMB. Em uma nova chave explicativa, de matriz gramsciana, Luís Tapia analisa as transformações e mudanças no partido de Governo, através da “noção de catarse e transformismo para fazer uma caracterização de uma das tendências dominantes na ação política do MAS e seus líderes” (TAPIA, p.118, 2011).
[…] minha hipótese é que o núcleo dirigente do MAS e do atual governo têm entrado em uma fase de transformismo cada vez mais acentuada. De ser intelectuais orgânicos de setores camponeses, indígenas e populares têm se convertido em intelectuais orgânicos de um projeto de reconstituição do estado-nação na Bolívia em torno à um núcleo capitalista, que está reacoplando as estruturas de poder e dominação patrimonialistas com uma nova dirigência de origem popular […]. Há algo peculiar nesse processo de transformismo. Hoje não se trata de que os principais dirigentes do MAS estão sendo cooptados pelo velho bloco dominante patrimonialista e burguês na Bolívia, senão que eles mesmos estão se transformando no núcleo dirigente de um novo projeto capitalista no país, que articula de maneira complementar e em certo sentido subordinada ao velho bloco dominante. Nesse sentido houve um recâmbio na direção política e na modalidade do projeto político. Não se trata de uma incorporação totalmente transnacionalizada ao sistema mundial, mas através da reconstituição de um estado-nação. As políticas econômicas e os planos de desenvolvimento do governo têm como eixo central o desenvolvimento do capitalismo: capitalismo de estado que alimenta e apoia o capitalismo privado transnacional, submetido à uma margem de contribuição fiscal muito mais alto, capitalismo monopólico nacional, capitalismo mediado e pequeno, mas capitalismo ao fim (TAPIA, p.125-126, 2011).
A luta por um “Estado Plurinacional” é fruto de uma reivindicação histórica dos movimentos indígenas, em um país multinacional e multiétnico, onde existem aproximadamente 36 nações e povos indígenas. Segundo dados do Instituto Nacional de Estatísticas aproximadamente 70% da população pertence a algum povo indígena (aymara, quéchua, guarani etc). Esses setores, majoritários na sociedade boliviana, foram ao longo da história do país, marginalizados, oprimidos e discriminados pela elite local, nacional e internacional. A opressão e o racismo sempre foram uma política de Estado na Bolívia.
No entanto as políticas do estado burguês/colonial de homogeneização da sociedade boliviana fracassaram rotundamente, em grande medida pela resistência dos povos indígenas em preservar sua cultura, seus costumes, seu território e suas práticas de autogoverno. A emergência das lutas indígenas nos anos 90 colocou no centro do debate político boliviano a luta por um Estado plurinacional.
Esta reivindicação foi formalmente incorporada pelo governo Evo Morales na Nova constituição política, aprovada em janeiro de 2009. Apesar da quantidade de vezes em que fala de “estado plurinacional” ou de “economia comunitária”, a nova constituição legitima e mantêm intactos os grandes latifúndios e o sistema político dominante, base material da opressão e exploração dos povos indígenas. As instituições da democracia liberal burguesa, como o parlamento (agora Assembleia Plurinacional), a justiça e as forças armadas bolivianas, apesar das mudanças formais, foram mantidas intactas, e hierarquicamente dominantes em relação as formas de autonomia e autogoverno indígena que seguem limitadas e subordinadas.
[…] o projeto político e histórico do MAS vai em um sentido contrário à construção de um governo Plurinacional no país. O núcleo do projeto político é capitalismo e o do estado plurinacional opera como um discurso de legitimação em relação aos setores populares com os quais estão reorganizando as relações de subordinação e dominação. Nesse sentido, considero que os liberais lutam contra fantasmas quando acreditam que o central do novo estado é o plurinacional e que esse é o grande perigo que levaria à dissolução do pais. (TAPIA, p. 126, 2011)
Os setores mais importantes da economia boliviana, como os hidrocarbonetos (petróleo e gás) e a mineração continuam controlados por empresas multinacionais. O caso da mineração é emblemático e a melhor expressão do controle que as multinacionais seguem exercendo sobre a economia Boliviana. Segundo dados do próprio Ministério de Mineração da Bolívia, a atividade mineira representou em 2010 6,7% do PIB da Bolívia e contribui com aproximadamente 30% das exportações bolivianas. Em 2011, apenas 4 empresas estrangeiras controlavam 56% da mineração boliviana. Em 2012 as empresas privadas nacionais e estrangeiras controlavam 75% da produção mineira, enquanto as cooperativas controlavam 22% e a empresa estatal COMIBOL, 3%. O que vemos é a reprodução das formas mais perversas do capitalismo dependente e semicolonial.
Referências
LINERA, A.G. El evismo: lo nacional-popular en acción. Revista OSAL Online, Observatório Social de América Latina, Buenos Aires, v. 7, n. 19, 2006. Disponível em: <http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/osal/osal19/linera.pdf>. Acesso em: 22 de setembro de 2014.
______. La potencia plebeya: acción colectiva e identidades indígenas, obreras y populares en Bolivia. Buenos Aires: Prometeo Libros, 2008.
_______. Los tres pilares de la nueva Constitución Política del Estado Plurinacional, Economía Estatal y Estado Autonómico. Discursos y ponencias del ciudadano vicepresidente Álvaro García Linera. Vice Presidencia de la Republica, 04 de noviembre de 2008.
ORELLANA Aillón, Lorgio. Nacionalismo, populismo y régimen de acumulación en Bolivia. Hacia una caracterización del gobierno de Evo Morales. CEDLA, Centro de Estudios para el Desarrollo Laboral y Agrario, La Paz, Bolivia. Marzo de 2006. Disponible en la web: http://bibliotecavirtual.clacso.org.ar/ar/libros/bolivia/coyun11.pdf
STEFANONI, Pablo. El nacionalismo indígena en el poder. Revista OSAL, Observatório Social de América Latina, Buenos Aires, v. 7, n. 19, 2006. Disponível em: <http://biblioteca.clacso.edu.ar/ar/libros/osal/osal19/stefanoni.pdf>. Acesso em: 11 jun. 2015.
______. Consideraciones sobre el Estado Plurinacional. In: BOLIVIA. Descolonización en Bolivia: cuatro ejes para comprender el cambio. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, FBDM, 2010. Disponível em: <http://www.iiicab.org.bo/Docs/MAESTRIA1/M1/unidad-1/4ejesparaelcambio.pdf>. Acesso em: 12 de agosto de 2015.
TAPIA, Luis. El estado de derecho como tiranía. La Paz-Bolivia: CIDES-UMSA, 2011.
[1] Álvaro Garcia Linera é o atual vice-presidente do estado Plurinacional da Bolívia. É matemático e sociólogo. Autor de importantes obras como: A potência Plebeia, Forma valor y forma Comunidad, La condición obrera en el siglo XX etc.
[2] Luis Tapia Mealla é filosofo e cientista político. Docente e pesquisador do programa de Pós-Graduação CIDES- UMSA. Autor de diversas obras sobre a sociedade boliviana como: La velocidad del Pluralismo, la Condición Multisocietal, Política Salvaje, El Estado de Derecho como Tiranía, La Invención del Núcleo Común, La coyuntura de la autonomía relativa del estado, La Dialéctica del Colonialismo Interno, Pluralismo Epistemológico, Império, Multitud y Sociedad abigarrada, Pensando la Democracia Geopolíticamente.
[3] A Confederação Única dos Trabalhadores Camponeses da Bolívia foi fundada em 1979 e está filiada à COB. A CSUTCB reúne as principais organizações e sindicatos camponeses do pais. Esta entidade nacional é a principal base de apoio e sustentação do governo nos movimentos sociais.
[4] A Confederação de Povos Indígenas da Bolívia foi fundada em 1982. A sua principal base social se encontra entre os povos indígenas do oriente boliviano. A CIDOB representa os setores indígenas mais críticos ao governo e esteve a frente das manifestações em 2011 contra a construção de uma estrada que dividia ao meio o maior parque nacional indígena do pais, o TIPNIS.
[5] O Conselho Nacional de Ayllus e Markas do Quillasuyo representa as nacionalidades e povos indígenas das terras altas da Bolívia ( ocidente) onde se concentram as comunidades indígenas de Aymaras, Quéchuas e Urus conhecidas como Ayllus.
[6] O MNR (Movimento Nacionalista Revolucionário), foi fundado em 1941, se concentrava, sobretudo, entre os setores urbanos pertencentes à pequena burguesia, pequenos comerciantes e profissionais liberais. Era um partido formado basicamente em torno à crítica à oligarquia mineira e aos proprietários de terras. Após a Revolução Nacional de 1952 o MNR assumiu a presidência com Vitor Paz Estensoro.
[7] A Federação Sindical dos Trabalhadores Mineiros da Bolívia foi fundada em 11 de junho de 1944 e durante 40 anos foi a organização sindical mais importante da Bolívia, reunindo aproximadamente 50 mil trabalhadores mineiros em suas fileiras.
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