Euclides de Agrela [i]
Começamos este terceiro e último artigo fazendo duas advertências. Em primeiro lugar, no que diz respeito ao tema dos agrupamentos e frações no partido bolchevique à época de O Novo Curso (1923), é preciso contextualizar. Como o próprio Trotsky fala no início do texto, o partido bolchevique não só era o único partido no país, mas os próprios agrupamentos e frações no partido haviam sido proibidos.
Feita esta advertência, acreditamos que, apesar do contexto específico do debate pautado por Trotsky, podemos também tirar lições gerais que marcam a atualidade de O Novo Curso no que diz respeito à questão da formação de agrupamentos e frações em partidos revolucionários no século XXI.
Em segundo lugar, ao final do presente artigo, buscaremos construir um diálogo entre O Novo Curso e Em Defesa do Marxismo, que reúne uma coletânea de artigos e cartas escritos por Trotsky, quando da luta fracional da maioria proletária do Comitê Nacional do Socialist Workers Party (SWP) dos Estados Unidos e uma minoria pequeno-burguesa. Este diálogo será constituído basicamente em torno do método e das medidas propostas por Trotsky para enfrentar a dita fração pequeno-burguesa no SWP, que foram diametralmente opostos a qualquer burocratismo, apesar de se tratar de uma corrente revisionista e liquidacionista. Feitas estas advertências, vamos ao fechamento desta série de artigos.
Agrupamentos e formações fracionais
Ensina-nos Trotsky em O Novo Curso:
É nas contradições e diferenças de opinião que ocorre inevitavelmente a elaboração da opinião pública do partido. (…) Ter o partido como um todo participando na elaboração e adoção das resoluções é promover os agrupamentos ideológicos temporários, que arriscam se transformar em agrupamentos duráveis e mesmo em frações. (TROTSKY, 1923)
Podemos verificar que, para Trotsky, é no choque de opiniões, nas contradições e diferenças típicas de um processo democrático de elaboração coletiva que deve ocorrer a definição da linha política de um partido de tipo bolchevique. O anterior, inclusive, não impede o surgimento de agrupamentos ideológicos temporários, em torno de pontos específicos. O problema é: como impedir que tais agrupamentos temporários, que são impossíveis de não surgir numa situação normal do debate interno no partido, se transformem em agrupamentos duráveis e mesmo em frações? Trotsky busca responder a esta questão apelando a uma resolução do Comitê Central aprovada antes de O Novo Curso:
A resolução do Comitê Central diz claramente que o regime burocrático é uma das fontes das frações. Esta é uma verdade que hoje dificilmente precisa ser demonstrada. O velho curso de fato estava longe da ‘plena’ democracia, e não preservou mais o partido das frações ilegais do que a atual discussão tempestuosa que – seria ridículo fechar os olhos a isto! – pode levar à formação de agrupamentos temporários ou duráveis. Para evitar isto, os órgãos dirigentes do partido devem dar ouvidos à voz da ampla massa do partido, não considerar toda crítica como uma manifestação de espírito fracional, levando assim comunistas conscientes e disciplinados a manter um silêncio sistemático, ou a se constituírem como frações. (TROTSKY, 1923)
Aqui Trotsky afirma sem titubear que o próprio regime burocrático é uma das fontes de formação das frações. Na medida em que a democracia partidária está completamente reprimida e a elaboração coletiva é tolhida, obviamente que muitos quadros e militantes acabam por reunir-se e buscar soluções por fora dos organismos regulares, constituindo, para tanto, agrupamentos fracionais, explícitos ou secretos.
Como evitar que o anterior se transforme numa catástrofe que leve à liquidação do partido? Ouvindo a base do partido e não considerar toda a crítica como uma manifestação de fracionalismo. No entanto, a nascente burocracia insiste em fazer exatamente o contrário, apesar de concordar formalmente com a resolução do Comitê Central que trata dos desvios e deformações burocráticas do partido e do Estado:
(…) o problema é que a ala mais militante do ‘velho curso’ está convencida que a resolução do Comitê Central é errônea, especialmente em sua passagem sobre o burocratismo como uma fonte de fracionalismo. E se não diz isso abertamente, é apenas por considerações formais, muito de acordo com sua mentalidade, ensopada com aquele formalismo que é o atributo essencial do burocratismo. (TROTSKY, 1923)
Eis um excelente resumo do espírito burocrático: diz estar a favor de tal ou qual resolução, chega a votar e a aprovar formalmente para não se indispor com os quadros e os militantes, mas faz tudo ao contrário da resolução votada e aprovada. Dito isto, como Trotsky encara o problema das frações no partido? Em O Novo Curso cometeria ele um desvio de tipo democratista? Vejamos se é assim:
É incontestável que frações são um flagelo na situação atual, e que os agrupamentos, mesmo se temporários, podem se transformar em frações. Mas como a experiência mostra, não basta declarar que os agrupamentos e frações são um mal para se impedir seu aparecimento. O que é necessário é uma política, um curso correto adaptado à situação real. (TROTSKY, 1923)
Nada mais distante do democratismo, como estas palavras. Trotsky jamais defenderia a formação de tendências e frações permanentes, como o acusava caluniosamente a nascente burocracia. Para demonstrar a correção do seu ponto de vista, ele cita vários exemplos da história recente do próprio partido bolchevique. Destacamos particularmente a formação da fração dos partidários da “guerra revolucionária”, surgida por ocasião da paz de Brest Litovsk:
Todavia, a existência de uma fração comunista de esquerda representou um extremo perigo à unidade do partido. Provocar uma divisão na época não teria sido difícil e não teria exigido da direção um esforço intelectual muito grande: teria sido suficiente lançar um interdito contra a fração comunista de esquerda. Não obstante, o partido adotou métodos mais complexos: ele preferiu discutir, explicar, provar pela experiência e se resignar temporariamente ao fenômeno anormal e anômalo representado pela existência de uma fração organizada em seu meio. (TROTSKY, 1923)
Mais nítido impossível. A direção do partido bolchevique, ao invés de lançar mão de medidas administrativas contra esta fração, optou por discutir, explicar e provar pela experiência, resignando-se temporariamente e assim ganhado tempo para derrotar politica e ideologicamente os partidários da guerra revolucionária. Mas, qual foi a política, para o agrupamento mais duradouro e perigoso, nas palavras do próprio Trotsky, surgido no interior do partido bolchevique após a tomada do poder, qual seja, a Oposição Operária:
Mas, também desta vez, não nos limitamos apenas à proibição formal. (…) E o principal é que, devido às decisões e medidas econômicas adotadas pelo partido, cujo resultado motivou o desaparecimento das diferenças de opiniões e dos agrupamentos, o 10º Congresso foi capaz de proibir formalmente a constituição de frações, e acreditar com razão que estas decisões não permaneceriam letra morta. Mas, como a experiência e o bom senso político mostram, isto não quer dizer que por si mesma esta proibição continha nenhuma garantia absoluta ou mesmo séria contra a aparição de novos agrupamentos ideológicos e orgânicos. A garantia essencial, neste caso, é uma liderança correta, prestando atenção oportuna às necessidades do momento refletidas no partido, flexibilidade do aparato que não deve paralisar, mas organizar a iniciativa do partido, que não deve temer críticas, nem intimidar o partido com o espantalho das frações: a intimidação frequentemente é um produto do medo. (TROTSKY, 1923)
Mesmo a proibição das frações, em particular da Oposição Operária no 10º Congresso do partido bolchevique, não significou nenhuma garantia absoluta ou mesmo séria contra a aparição de novos agrupamentos ideológicos e orgânicos. E em nenhum momento representou a castração da iniciativa do partido ou resultou na intimidação dos quadros e militantes que ousavam criticar a direção. Isso é tanto assim que Trotsky, marca em seguida o caráter episódico de tal medida:
A decisão do 10º Congresso proibindo frações pode apenas ter um caráter auxiliar; não oferece por si a chave para a solução de qualquer uma das dificuldades internas. Seria um ‘fetichismo organizativo’ grosseiro acreditar que, quaisquer que sejam o desenvolvimento do partido, os erros da direção, o conservadorismo do aparato, as influências externas, etc., basta uma decisão para nos preservar dos agrupamentos e convulsões inerentes à formação de frações. Tal abordagem é por si só profundamente burocrática. (TROTSKY, 1923)
Ato seguido, Trotsky relaciona o burocratismo à questão de classe, quer dizer, à pressão social da burguesia e da pequena-burguesia sobre o partido, seus quadros e, sobretudo, sua direção:
Mas eis um fato que é instrutivo no mais alto grau, e ao mesmo tempo mais alarmante: os camaradas que afirmam mais prontamente, com mais insistência e algumas vezes com mais brutalidade, que toda diferença de opinião, todo agrupamento de opinião, por mais temporário, é uma expressão do interesse de classes opostas ao proletariado, não querem aplicar este critério ao burocratismo. (TROTSKY, 1923)
O que é mais perigoso, entendido como expressão de interesses de classes opostos ao proletariado: 1. A diferença de opinião, todo agrupamento de opinião, por mais temporário que seja? Ou 2. O burocratismo dos órgãos dirigentes do partido? Não temos nenhuma dúvida: o segundo é mais perigoso. Tanto que mantém uma relação dialética com o primeiro, sendo o segundo o leitmotiv que conduz, muitas vezes, aos agrupamentos temporários transformarem-se em permanentes. Tanto é assim que Trotsky relaciona diretamente a luta para preservar o caráter de classe do partido com a luta contra o burocratismo. Outro tema crucial tocado por Trotsky é, evidentemente, a unidade do partido e o temor de uma possível divisão ou divisões:
A manutenção da unidade do partido é a mais grave preocupação da grande maioria de comunistas. Mas deve ser dito abertamente: se há hoje um sério perigo à unidade, ou pelo menos à unanimidade do partido, é o burocratismo desenfreado. Este é o campo no qual foram levantadas vozes provocadoras. É onde elas se atrevem a dizer: Não temos medo de uma divisão! (TROTSKY, 1923)
Mais uma vez, Trotsky não mede palavras para alertar que o maior perigo à unidade do partido é o burocratismo desenfreado e as vozes provocadoras que dizem nos corredores da organização que não têm medo da divisão ou que, inclusive, afirmam abertamente que há que prepará-la para salvar o partido da ruína. Neste momento, Trotsky toca no problema dos laços de confiança, demonstrando o quanto a burocratização do partido mina os laços de confiança da base na direção e gera uma profunda desconfiança da direção burocrática na consciência e no espírito de disciplina do partido:
Não se pode exigir do partido confiança no aparato quando você mesmo não tem confiança no partido. Esta é toda a questão. A desconfiança burocrática pré-concebida do partido, de sua consciência e de seu espírito de disciplina, é a principal causa de todos os males gerados pela dominação do aparato. O partido não quer frações, e não irá tolerá-las. É monstruoso acreditar que ele irá despedaçar, ou permitir a alguém despedaçar seu aparato. Ele sabe que este aparato é composto dos elementos mais valiosos, que encarnam a maior parte da experiência do passado. Mas ele quer renová-lo e lembrá-lo que é seu aparato, que é eleito por ele e que não deve se separar do partido. (TROTSKY, 1923)
Querer renovar o aparato não significa querer despedaçá-lo, mas impedir sua renovação, isto sim pode despedaçar o partido. E Trotsky conclui este capítulo afirmando que é o próprio burocratismo responsável não somente pelo fracionamento em geral, mas, particularmente, pelo surgimento das tendencias mais nocivas, desagregadoras e hostis ao partido[ii].
Tradição e política revolucionária
Trotsky começa este capítulo questionando o que se entende por tradição do partido. Para explicar sua posição vai utilizar-se de uma série de exemplos históricos:
Tomemos o partido ‘clássico’ da II Internacional, a socialdemocracia alemã. Seu meio século de política ‘tradicional’ se baseava em uma adaptação ao parlamentarismo e ao crescimento ininterrupto da organização, da imprensa e do tesouro (…).
É neste automatismo que toda a geração após Bebel tomou forma: uma geração de burocratas, filisteus e oportunistas cujo caráter político foi completamente revelado nas primeiras horas da guerra imperialista. Todo congresso da socialdemocracia falava invariavelmente das velhas táticas do partido, consagradas pela tradição. E a tradição era de fato poderosa. Era uma tradição automática, acrítica, conservadora, e terminou por sufocar a vontade revolucionária do partido. (TROTSKY, 1923)
Não é menos importante notar que Trotsky começa falando das tradições da socialdemocracia alemã. Por que damos importância a isso? Exatamente porque a socialdemocracia alemã burocratizou-se não no marco de um Estado operário, mas do Estado capitalista, da democracia burguesa, dos aparatos dos sindicatos reformistas e do próprio partido. Por outro lado, é obvio que não podemos prescindir de uma tradição revolucionária que nos sirva de exemplo. Mas qual seria a natureza da tradição de um partido revolucionário? Vejamos:
Se tomarmos agora o Partido Bolchevique em seu passado revolucionário e no período após Outubro, reconheceremos que sua qualidade tática fundamental mais preciosa é sua capacidade única de se orientar rapidamente, mudar de táticas rapidamente, renovar seu armamento e aplicar novos métodos, em uma palavra, realizar giros abruptos. Condições históricas tempestuosas tornaram esta tática necessária. O gênio de Lênin lhe deu uma forma superior. Não significa, naturalmente, que nosso partido é completamente livre de certo tradicionalismo conservador: um partido de massas não pode ser idealmente livre. Mas sua força e potência se manifestam no fato de que a inércia, o tradicionalismo, a rotina, se reduziriam a um mínimo por uma iniciativa tática perspicaz, profundamente revolucionária, ao mesmo tempo audaciosa e realista. (TROTSKY, 1923)
A tradição do bolchevismo estaria assim num signo oposto ao conservadorismo: capacidade de mudar de tática rapidamente, aplicar novos métodos, realizar giros abruptos. Por outro lado, esta mesma tradição combate à morte a inércia, o tradicionalismo e a rotina. O problema é que a velha guarda passou a identificar a crítica ao burocratismo com a destruição da tradição:
O fato inegável de que os elementos mais conservadores do aparato estão inclinados a identificar suas opiniões, seus métodos e seus erros com o ‘velho bolchevismo’ e procuram identificar a crítica ao burocratismo com a destruição da tradição, este fato, eu digo, já é por si mesmo uma incontestável expressão de certa petrificação ideológica. (TROTSKY, 1923)
Todos os grandes problemas políticos, programáticos e organizativos do partido foram enfrentados sem fórmulas pré-concebidas da tradição do passado, na medida em que tratavam-se de problemas novos:
Nem Outubro, nem Brest-Litovsk, nem a criação de um exército camponês regular, nem o sistema de requisição de alimentos, nem a NEP, nem a Comissão de Planejamento Estatal, foram ou poderiam ter sido previstos ou predeterminados pelo marxismo pré-Outubro, ou bolchevismo. Todos estes fatos e giros foram resultado da aplicação crítica, independente, dos métodos do bolchevismo, marcado pelo espírito de iniciativa, em situações que diferiam em cada caso”. (TROTSKY, 1923)
E era óbvio que decisões tão difíceis e complexas levassem à formação de agrupamentos temporários e até mesmo frações, causando lutas intestinas:
Cada uma destas decisões, antes de ser adotada, causou lutas. O simples apelo à tradição nunca decidia algo. A questão não é de, em cada nova tarefa e em cada novo giro, buscar na tradição e descobrir lá uma resposta inexistente, mas de aproveitar toda a experiência do partido e descobrir por si uma nova solução adequada à situação e, fazendo isso, enriquecer a tradição. (TROTSKY, 1923)
Outro aspecto da tradição bolchevique que Trotsky não nos deixa esquecer é formação ideológica e teórica, sobretudo dos jovens, marcando a necessidade de uma luta à morte contra a superficialidade ideológica e o desleixo teórico.[iii]
Como parte do combate à nascente burocracia, Trotsky não poderia deixar de tocar no problema da moral, manifestando-se contra a arrogância, o cinismo e a demagogia, contrapondo a estes a honestidade revolucionária para com o partido e a classe operária.[iv]
Para terminar, Trotsky aborda o problema da disciplina e contrapõe uma disciplina passiva à disciplina na ação vinculada à iniciativa revolucionária, a uma elaboração crítica e audaciosa que envolva o conjunto do partido.[v]
Um diálogo entre O Novo Curso e Em Defesa do Marxismo[vi]
No livro Em Defesa do Marxismo se dá muita atenção ao combate ao revisionismo liquidacionista da minoria do SWP no que diz respeito à teoria e ao programa. Mas, em geral, seus leitores dão pouca importância ao questionamento feito por esta mesma minoria ao regime centralista-democrático e ao suposto burocratismo de Cannon[vii]. Como Trotsky e o próprio Cannon combateram estes questionamentos ao regime do partido? Responder a esta pergunta é o nosso objetivo com o presente diálogo entre O Novo Curso e Em defesa do Marxismo.
Em uma carta a Cannon, com data de 28 de outubro de 1939, escreve Trotsky:
Em sua carta de 24 de outubro, duas coisas ficaram claras para mim: 1. Que é inevitável e politicamente necessária uma luta ideológica muito séria; 2. Que seria extremamente prejudicial, senão fatal, ligar esta luta ideológica com a perspectiva de uma ruptura, de uma purga, ou de expulsões e tudo o mais. (TROTSKY, 1940, P. 54).
Para evitar qualquer ruptura precipitada antes do esgotamento da discussão e da realização do congresso do partido, Trotsky propõe as seguintes medidas:
a) Ambas as partes eliminam da discussão qualquer ameaça, insulto pessoal, e tudo mais;
b) ambas as partes se obrigam a colaborar lealmente durante a discussão; e
c) qualquer falso movimento (ameaças, rumores de ameaças ou rumores de pretendidas ameaças, demissões e tudo o mais) deve ser investigado pelo Comitê Nacional ou por uma comissão especial, como fato particular, e não introduzido na discussão. (TROTSKY, 1940, P. 54)
Mas Trotsky vai muito mais longe do que estas propostas iniciais. Numa carta a Farrell Dobbs[viii], datada de 10 de janeiro de 1940, ele chega a falar de certo envenenamento das próprias seções da IV Internacional pela atmosfera da Internacional Comunista, o Comitern:
(…) nossas próprias seções herdaram algum veneno do Comitern, no sentido de que muitos camaradas se inclinaram a abusar de medidas como expulsões, cisões ou ameaças de expulsões e cisões. (TROTSKY, 1940, P. 120)
Numa outra carta a Joseph Hansen[ix], datada de 18 de janeiro de 1940, Trotsky chega inclusive a propor a legalização das frações depois do congresso, como última tentativa de evitar a ruptura:
Vocês estão preocupados com nossas futuras repressões? Prometemos garantias mútuas para a futura minoria, independentemente de quem possa ser essa minoria, vocês ou nós. Essas garantias podem ser formuladas em quatro pontos:
1. Não proibição de frações;
2. Nenhuma restrição à atividade fracional, além das ditadas pela necessidade da ação comum;
3. As publicações oficiais devem, evidentemente, representar a linha estabelecida pelo novo Congresso;
4. A futura minoria pode ter, se assim desejar, um boletim interno destinado aos membros do partido, ou um boletim comum de discussão com a maioria. (TROTSKY, 1940, P. 124)
Reparem que Trotsky propõe tais medidas não a um partido com influência de massas, mas a um partido minoritário e de vanguarda. As medidas acima tampouco têm a ver com democratismo. Tratam-se de medidas excepcionais, cujo objetivo fundamental de sua proposição era educar o partido, fazendo com que a experiência dos quadros e militantes de base se esgotasse sem a precipitação de medidas organizativas que levassem a expulsão da minoria, mas forçassem esta mesma minoria a dizer se estava dentro ou fora do partido, com o partido ou contra ele. Continua Trotsky na mesma carta:
A continuação dos boletins de discussão depois de uma larga discussão e um Congresso não é, evidentemente, uma regra, mais sim uma exceção, aliás, deplorável. Mas não somos, de modo algum, burocratas. Não temos regras imutáveis. Também no terreno da organização somos dialéticos. Se temos no partido uma minoria importante que não está satisfeita com as decisões do Congresso, é incomparavelmente preferível legalizar a discussão depois do Congresso, do que ter uma cisão. (TROTSKY, 1940, P. 124)
O final da história dessa luta fracional no SWP estadunidense é bem conhecida: apesar de todas as garantias democraticas propostas por Trotsky e Cannon, a fração pequeno-burguesa dirigida por Abern[x], Burnham[xi] e Shachtman[xii] rompeu com o partido. Perguntamos: a ruptura da minoria do SWP comprovaria um suposto erro de Trotsky em dar plenas garantias democráticas a esta mesma minoria para impedir a ruptura, mesmo depois do Congresso do partido? Em hipótese alguma! Apesar da ruptura, Trotsky e o SWP preservaram a teoria, o programa, a metodologia e o regime do partido estadunidense e da recém-nascida IV Internacional tanto contra o revisionismo pequeno-burguês quanto contra o burocratismo do Comitern e, particularmente, do Partido Comunista da antiga União Soviética.
Referências:
TROTSKY, Leon. El Nuevo Curso y Problemas de la vida Cotidiana. Edicions Internacionals Sedov. Fonte: https://www.marxists.org/espanol/trotsky/eis/1923-nuevocurso-y-probsvidacotidiana.pdf. Acessado em 09/10/2015. Tradução livre das citações e das notas de rodapé deste artigo.
____________. The New Course. Ann Arbor: University of Michigan Press, 1965.
____________. Carta a James P. Cannon, 28 de outubro de 1939. Em Defesa do Marxismo, Proposta Editorial, São Paulo, p. 54.
____________. Carta a Farrell Dobbs, 10 de janeiro de 1940, Em Defesa do Marxismo, Proposta Editorial, São Paulo, p. 120.
____________. Carta a Joseph Hansen, 18 de janeiro de 1940, Em Defesa do Marxismo, Proposta Editorial, São Paulo, p. 124.
____________. Carta a Farrell Dobbs, 04 de abril de 1940, Em Defesa do Marxismo, Proposta Editorial, São Paulo, p. 189.
[i] A brochura publicada em castelhano, aquela à qual nos apoiamos fundamentalmente para escrever a presente série de artigos conta ainda com o Capítulo 04, “Burocratismo e revolução”; Capítulo 06, que trata de “A ‘subestimação’ do campesinato”; o Capítulo 07, que trata de “A Planificação da economia”; e os seguintes anexos: “Carta a uma plenária do partido”; “O funcionário no exército e em outras partes”; “A ligação entre a cidade e o campo”; “Duas gerações”; “A Plataforma dos 46”. Resolvemos não analisar o capítulo 04, na medida em que, nele, Trotsky vai tocar mais uma vez na composição social do partido. Também não tocaremos nos Capítulos 06 e 07, pois, ainda que se relacionem com a questão da concepção e do regime de partido, são periféricos a ele. Por outro lado, os anexos, voltam a tocar em várias questões levantadas nos capítulos 01, 02, 03 e 05 exploradas na série que encerramos com o presente artigo. Talvez fosse interessante, no futuro próximo, escrever uma nova série de artigos sobre os anexos citados. Mas isto se trata, apenas, de uma hipótese de trabalho.
[ii] “(…) o aparato, passando para a ofensiva, ficará cada vez mais sob o poder dos elementos mais conservadores e, sob o pretexto de combater as frações, irá jogar o partido para o escanteio e restaurar a ‘calma’. Esta segunda eventualidade seria de longe a mais nociva; não impediria o desenvolvimento do partido, é desnecessário dizer, mas este desenvolvimento ocorreria apenas ao custo de esforços e convulsões consideráveis. Pois este método apenas favoreceria ainda mais as tendências que são nocivas, desintegradoras e hostis ao partido. Estas são as duas eventualidades a considerar”. – TROTSKY, Leon. El Nuevo Curso y Problemas de la vida Cotidiana. Edicions Internacionals Sedov.
[iii] “E se há algo que pode dar um golpe mortal na vida espiritual do partido e ao treinamento ideológico dos jovens, é certamente a transformação do leninismo de um método que exige iniciativa de aplicação, pensamento crítico e coragem ideológica, em um cânone que exige apenas intérpretes nomeados para o bem de todos. O leninismo não pode ser concebido sem largura teórica, sem uma análise crítica das bases materiais do processo político”. – TROTSKY, Leon. El Nuevo Curso y Problemas de la vida Cotidiana. Edicions Internacionals Sedov.
[iv] “O leninismo inclui a moralidade, não formal, mas genuinamente revolucionária, de ação de massas e do partido de massas. Nada é mais estranho a ele do que a arrogância de funcionário e o cinismo burocrático. Um partido de massas tem sua própria moral, que é a ligação dos lutadores na e pela ação (…). O leninismo é bélico dos pés à cabeça. A guerra é impossível sem astúcias, subterfúgios, sem enganar o inimigo. Uma astúcia de guerra vitoriosa é um elemento constituinte da política leninista. Mas ao mesmo tempo, o leninismo é a suprema honestidade revolucionária para com o partido e a classe operária. Ele não admite nenhuma ficção, nenhuma ostentação, nenhuma pseudograndeza!”. – TROTSKY, Leon. El Nuevo Curso y Problemas de la vida Cotidiana. Edicions Internacionals Sedov.
[v] “Onde a tradição é conservadora, a disciplina é passiva e é violada no primeiro momento de crise. Onde, como em nosso partido, a tradição consiste da mais elevada atividade revolucionária, a disciplina obtém seu ponto máximo, por sua decisiva importância é constantemente checada na ação. Esta é a fonte da indestrutível aliança da iniciativa revolucionária, de elaboração crítica e audaciosa das questões, com uma disciplina de ferro na ação, e isto apenas por sua atividade superior, que a juventude pode receber da velha tradição de disciplina e continuá-la”. – El Nuevo Curso. TROTSKY, Leon. El Nuevo Curso y Problemas de la vida Cotidiana. Edicions Internacionals Sedov.
[vi] Quase duas décadas separam O Novo Curso de Em Defesa do Marxismo. Em O Novo Curso, Trotsky representava uma fração minoritária do partido bolchevique contra a nascente burocracia soviética. Já no Em Defesa do Marxismo, Trotsky toma partido da fração majoritária do SWP dos Estados Unidos contra a minoria. No entanto, as duas obras possuem uma unidade metodológica impressionante. Ao compará-las é possível verificar facilmente que Trotsky não possui dois pesos e duas medidas para quando se é maioria ou minoria numa luta fracional no interior de um partido marxista revolucionário.
[vii] James P. Cannon (11 de fevereiro de 1890 – 21 de agosto de 1974) dirigente do IWW entre 1912 e 1914, Cannon foi expulso do Partido Comunista Norte Americano em 1928, sendo um dos fundadores do trotskismo estadunidense e principal dirigente do SWP-USA.
[viii] Farrell Dobbs (25 de julho de 1907 – 31 de outubro de 1983) foi um historiador, político e sindicalista trotskista norte americano. Dobbs teve um importante papel como dirigente sindical trotskista entre os caminhoneiros (principal trabalho sindical do SWP-USA) e foi um dos instigadores da greve geral de Minneapolis de 1934.
[ix] Joseph Hansen (16 de junho de 1910 – 18 de janeiro de 1979) um dos quadros jovens mais talentosos do SWP norte americano, foi secretário e guarda costas de Leon Trotsky entre 1937 e 1940. Tambem foi editor do jornal The Militant durante muitos anos.
[x] Martin Abern (2 de dezembro de 1898 – abril de 1949) Organizou, junto com Shachtman, o Partido dos Trabalhadores dos Estados Unidos, ruptura de 1940 do SWP-USA. Morreu poucos anos depois, se reivindicando ainda enquanto membro do movimento socialista.
[xi] James Burnham (22 de novembro de 1905 – 29 de julho de 1987) Dirigente trotskista, ao romper com a 4a Internacional em 1940, deu um giro brusco à direita, tornando-se um dos principais intelectuais que dariam origem ao movimento neo-conservador norte-americano. Dentro deste projeto, foi editor do National Review, uma das principais revistas da intelectualidade conservadora estadunidense.
[xii] Max Shachtman (10 de setembro de 1904 – 4 de novembro de 1972) ex-seguidor de Trotsky, rompeu com a 4a Internacional em abril de 1940. Diferente de Burnham, tornou-se dirigente social-democrata norte-americano, e um dos principais assessores sindicais do ex-presidente da ADL-CIO, George Meany, principal organizador da burocracia sindical norte-americana.
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