Ou o «espectro da autodeterminação» no marxismo-mundo de Perry Anderson* (2 de 3)
“A história não faz nada, ‘não possui uma riqueza imensa’, ‘não dá combates’, é o homem, o homem real e vivo, quem faz tudo isso e realiza os combates, estejamos seguros de que não é a história que se serve do homem como de um meio para atingir – como se ela fosse um personagem em particular – a seus próprios fins; ela não é mais que a atividade do homem que persegue seus objetivos.” (Friedrich Engels)
Uma revolução para além do capital e sua ordem é historicamente possível? A rigor, “toda revolução é impossível até que se torne inexorável”, como já disse um bom e velho revolucionário ucraniano do Séc.20. Mas a possibilidade efetiva do projeto revolucionário vir-a-ser tem como substrato granítico a concepção mesma de que a história dos homens é o resultado único e exclusivo da ação dos próprios homens, a bem dizer, em interação dinâmica consigo próprios e o ambiente vivo, transformando a natureza e, sobretudo, a natureza humana. Um tirocínio como esse pode parecer óbvio e ululante (sobretudo entre marxistas e revolucionários) mas, em verdade, trata-se de uma conquista intelectual recente na história da humanidade. É tão-só a partir dos anos 1840 que a tese fulcral de que a história é “feita”, resultante exclusiva das ações humanamente objetivas, irá se impor, também, como um “fazimento”. (Não à-tôa, já vimos, parte do verbo se conjuga em inglês.)
Algumas antecipações importantes foram realizadas por Hegel (história como processualidade, p.ex.), não obstante, o homem tal qual demiurgo de seu destino advém na história das ideias teóricas e políticas só e somente nos escritos da juventude de Marx. As ideias, como sabemos, não tem pernas. E as cabeças pensam a partir do terreno que pisam os pés. “Quão ingênua é a crença em um nascimento arbitrário das ideias” – disse, doutra feita, o revolucionário já citado –, é “necessária toda uma série de circunstâncias objetivas materiais, e uma certa ordem de sucessão, em uma combinação determinada”. Foi a partir do desenvolvimento histórico das forças sociais de produção humana que foi potenciado alargar às barreiras do possível – na luta dos homens pelo domínio da natureza e direção da humanidade –, e, conseqüentemente, do imaginável. A tradição marxista avançou, e muito, com tal questão. No interior da vigorosa constelação historiográfica de fala inglesa um dos momentos mais altos de tal debate foi a polêmica Thompson-Anderson, no contexto total da New Left inglesa. Seguimos aqui à série, após um não tão curto intervalo, com os nós górdios mais fundamentais da discussão pública sobre o assim-chamado espectro da autodeterminação na história humana, sobretudo, em seu século mais revolucionário.
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O debate Thompson-Anderson não é algo desconhecido no país. Porém a assimetria na recepção nacional da obra do primeiro em relação ao segundo impõe alguns limites para sua fortuna crítica. Até o presente momento o seu capítulo final, o livro Arguments within English Marxism, não tem uma tradução brasileira. Como sói ocorrer para bibliófilos mais resolutos das áreas lusófonas, uma atenuação relativa do fato editorial foi a tradução ao idioma castelhano de Arguments within English Marxism (NLB/Verso, London, 1980) – de agora em diante, AWEM – sob o título já algo adaptado de Teoría, Política e Historia: un debate con E.P.Thompson (Siglo XXI, Madrid, 1985), de agora em diante, TPEH. Ainda assim poder-se-ia dizer que quiçá seja a lacuna de difusão mais importante que perdura no mundo das letras brasileiras a respeito deste tipo de marxismo inglês, da historiografia britânica e da New Left. É no mínimo intrigante observar que se trata justamente da zona de engajamento da polêmica Anderson-Thompson a respeito dos centros nevrálgicos para a historiografia radical de fala inglesa, uma área reputada do pensamento social (e político) e muito respeitada no ambiente político-intelectual do marxismo acadêmico e da esquerda socialista do país. O bem-vindo anúncio publicístico de lançamento editorial da obra ora em tela ― por Armando Boito Jr. ― é o que nos motiva a adentrar tais “questões inglesas”.
O texto andersoniano, de algo entorno a duzentas páginas, arranca atestando a condição de Edward Palmer Thompson como nada mais e nada menos do que o melhor escritor socialista da Inglaterra —e, possivelmente, da Europa. Os créditos são caracteristicamente remetidos à letra do texto do autor de obras como The Making of the English Working Class e Whigs and Hunters; grandes obras de literatura. Uma estupenda variedade de timbre e ritmo, segundo Anderson, é que predomina em seu melhor ―apaixonada e alegre, cáustica e delicada, conscienciosa e coloquial – e, para todos efeitos, não teria paralelo no seio da esquerda. O juízo literário é, enfim, o mais alto. Mas não se para por aí. Não obstante, diz, as conquistas estrictamente historiográficas de uma série de estudos sobre os Sécs. XVIII e XIX – que abarca desde William Morris até o brilhante conjunto de ensaios de Costumes in Commom – constituiria algo como o produto mais original da mais avançada historiografia marxista mundial, à qual contribuíram tantos eruditos de talento. Para qualquer leitor familiarizado com as acerbas polêmicas de Thompson com Anderson desde meados dos 60 este livro, do início dos anos 80, nesta introdução, se constitui como um registro no mínimo diferenciado. O tom de querela, réplicas e tréplicas, dá lugar à revalorização efetiva, longe de piedoso ideal.
A polêmica de Thompson e Anderson é conhecida no Brasil, assim como em muitos outros lugares, desde o ponto de vista do primeiro em detrimento do segundo. Não é aqui o espaço para esclarecermos o porquê da obviação dos argumentos de Anderson a respeito. São muitos e muito variados. Um forte sintoma da prevalecência de uma historiografia social popular (“peoples’ histories“, “histories from below” ou, mais recentemente, “commons’ history“) à la Thompson são os seus vários discípulos no campo da história e, por exemplo, a não-publicação desse livro fundamental em língua portuguesa até hoje. Mais do que assumir a perspectiva de um contra o outro, o que nos propusemos fazer em nosso trabalho é esclarecer seu caráter mutuamente complementar. As zonas de penumbra de um constituem o foco luminoso de outro, e viceversa. Mas como já nos adiantamos, não é nosso objetivo reconstruir a história político-editorial desse quiprocó público. Nos interessa chegar já diretamente ao ponto em que a controvérsia finalmente assume um tom mais fraternal e conseqüente e, coetaneamente, deixa de lado a imponente crítica thompsoniana a Louis Althusser para colocar no centro do fogo às concepções totais de mundo que ali se debatem. Sem qualquer embaraço e pelas razões já expostas vamos passar ao que diz Anderson nessa obra.
De 1964-1978 o debate Thompson-Anderson galvanizou uma série de questões em teoria, política e história. O lançamento d’A Miséria da Teoria (1978) forneceu o que seria uma chance para enfrentar os problemas nodais para a historiografia marxista mais importante produzida durante a segunda metade do século vinte. Teórica e filosoficamente, um Argumento é uma tentativa de persuadir alguém (de alguma coisa), dando razões para aceitar uma conclusão particular tal qual demonstrável autoevidente. A forma geral de um Argumento em linguagem clássica é a de premissas (mais normalmente na forma de proposições) como suporte de uma vindicação. Ademais, em língua inglesa, to argue with; arguir com alguém (a respeito de algo), tem uma conotação polêmica bastante aguda; de natureza e limites bastante claros a respeito do teor de contraponto crítico. Within = dentro de. O enunciado formal, de difícil tradução seria, por aproximação, algo de árida adaptação para um ambiente literário onde socialistas e comunistas, bem como a esquerda e o marxismo brasileiros, tem grandes dificuldades em estabelecer uma cultura política e teórica comum baseada na argumentação racional de critério polêmico, já seja via a oferta de premissa destinada a uma garantia de verdade para uma conclusão, argumento dedutivo, ou o fornecimento de razão que fundamente sua provável verdade, argumento indutivo.
O trânsito da racionalidade crítica para a polêmica política passando da teoria à história e da história à teoria, para todos os efeitos, são aqui um tema peculiarmente inglês. Os Argumentos no interior do Marxismo Inglês para a polêmica que se estabeleceu no seio da New Left mais antiga do mundo, é o tópico que nos ocupa aqui e agora. Uma das predições concretadas da pena andersoniana é então inaugurada. O jovem editor fizera prognóstico do encontro da historiografia insular com a filosofia continental. O Canal da Mancha, contudo, fez com que se estrelassem um contra o Outro o histórico Thompson e um teórico Althusser. A primeira grande confrontação em grande escala de um historiador inglês com um grande sistema filosófico continental no terreno do marxismo; este seria o significado a ser celebrado da empreitada deste ensaio histórico-político-teórico. O desenvolvimento do «Marxismo-Mundial» muito se beneficiaria do direto embate de tão distintas tradições, representadas por Thompson e Althusser e, desse modo, dar-se-ia então uma largada ao processo de tornar a história conscientemente teórica e a teoria historicamente informada. O singelo recado – de Anderson – era nada mais e nada menos uma emulação da laboração historiográfica de Thompson aliada ao “trabalho teórico” de Althusser, atentando para a crítica do empirismo e do ultrateoricismo, se é que é possível equiparar ainda que alusivamente corporas de pensamentos tão antípodas quanto podem ser o de um e o de outro.
Algo contraintuitivamente – para se dizer o mais mínimo –, Anderson arbitra a polêmica de Thompson contra Althusser afirmando que, ainda e quando seja Thompson o mais brilhante de todos os historiadores da mais talentosa e erudita cepa de mestres do ofício e Althusser o menos historicista dos filósofos do marxismo ocidental foi o último a formular a natureza da história em termos mais claros. Se Thompson equalizou história a passado per se Althusser mais nitidamente argumentou que fatos históricos seriam aqueles a causar mudança em relações sociais estruturais. Debater-se-ão, daí, os tópicos: i) Historiografia, ii) Agência, iii) Marxismo, iv) Stalinismo, v) Internacionalismo, vi) Utopia e vii) Estratégia. Anderson considera que o conjunto do ensaio é dominando por quatro aspectos centrais, a saber, o caráter da Historiografia, o papel da Agência humana na História, a natureza – e o destino – do Marxismo e, enfim, o fenômeno do Stalinismo. Não vamos nos deter na crítica a respeito do conceito de codeterminação e consciência de classe ou formação histórica da classe trabalhadora e contradição entre forças / relações de produção. O que retemos aqui de relevante (e produtivo) é a centralidade teórico-metodológica atribuída a uma revalorização do famoso Prefácio – 1857 – à Contribuição da Crítica da Economia Política.
O contexto efetivo da controvérsia seria o limiar não-cicatrizado entre efervescência dos anos das barricadas e prenúncio de uma década perdida para a reação política histórico-mundial. A justeza da crítica thompsoniana ao antiempirismo althusseriano não deixaria de sublinhar a necessidade da teoria na história, isto é, a construção e sistematização do conceito que permita ao historiador ascender – do abstrato ao concreto –, através do quê Karl Marx e Friedrich Engels chamam síntese de múltiplas determinações. Controvérsia clássica das ciências sociais é então enfrentada; a dicotomia entre o determinismo estrutural e a agência subjetiva. Considerando-se a ambiguidade dos termos e conceitos de Agência e Sujeito (uma distinção importante em idioma inglês) rechaça-se o que se considera os unilateralismos de Thompson, criatividade humana, e Althusser, implacabilidade estrutural. Em seu lugar se propõe, então, algo de uma nova posição compatibilista, tratando de reconciliar o irreconciliável nos termos em que se dão: a ação volitiva, trazida por Thompson, e a causalidade universal de Althusser. A noção de Agency entra, então, em cena.
Apesar d’Agência (aqui mal-traduzida, literalmente, para fins expositivos) ser a chave-organizadora do conjunto da obra de Thompson restaria em seu núcleo nevrálgico algo de uma indistinção entre três diferentes tipos. Esses três tipos incluiriam agentes atuando sob meios para realizar fins privados, individuais – como, por exemplo, o casamento –, ou mesmo finalidades públicas, interpessoais, não-voltadas ao remodelamento de relações sociais estruturais pré-existentes, tal como conflitos armados e/ou diplomacia de Estado. Para além dessas esferas da vida – e também para além de todo tipo de fazimento da história já conhecido – Anderson mais se preocupava com aquilo que chamou projetos coletivos de auto-determinação popular [e/ou de massas]. Em um contraste agudo com a elisão promovida pelo pensamento de E.P.Thompson – para sermos justos, elisão essa mais patente nos escritos “mais teóricos” –, Anderson argumentara que a concepção de uma agência humana de transformação global poderia ser retida em premissas as mais historiograficamente rigorosas como atividade consciente guiada por fins. Para o autor, tais projetos coletivos – que intentaram fazer de seus pioneiros os autores de seu próprio modo de produção da existência social, com um programa autoconsciente e de forma auto-organizada, encaminhando-se para criar ou remodelar estrutura e agência a um só tempo e em seu contexto total – formam um tipo de agência humano-social historicamente novidadeira.
Tratar-se-ia de obra coletiva do moderno movimento social operário nascente, como que a criar realmente essa nova concepção e prática de transformação histórica global. Com o advento do socialismo científico, os projetos coletivos de mudança social e política se irmanaram, pela primeira vez na história da humanidade, com esforços sistemáticos e ordenados por interpretar os processos de passado e presente e, assim sendo, produzir demiurgicamente um futuro pré-ideado. A Revolução dos Soviets – dirigida por bolcheviques-leninistas – teria sido o ensaio geral dessa nova forma histórica de pensar e agir sobre a interpertação e transformação do mundo, isto é, uma encarnação real e inaugural de um novo tipo de fazimento da história, baseado em um modo de agir sem precedentes conhecidos. Como bem se sabe, os resultados “realmente existentes” deste grande ciclo de revoltas histórico-sociais estiveram bem longe do que se sonhou. ‘Mas, em qualquer caso’ – disse P.R.Anderson – ‘a alteração do potencial da agência humana operada no curso do Séc. XX é irreversível.’ (p.20-21) O que nominou como o “espectro da autodeterminação.”
Esse novo tipo de agência humana, inaugurada pelas três revoluções russas do século vinte, teve «premonições antecipatórias» nas formas históricas de i) colonização política, ii) heterodoxia religiosa e iii) utopia literária dos séculos passados. Mais especificamente as revoluções francesa (1789) e americana (1791) foram as pré-figurações históricas da agência humana, neste sentido mais decisivo. A especificidade histórica do processo revolucionário russo repousa na direção coletiva imbuída de um conhecimento científico do mundo social e político que permitiu a predição do processo de modo a alterar relações de forças (e à própria agência) no decurso do movimento mesmo do real, enquanto as revoluções francesa e americana detonaram-se amplamente como explosões, o mais espontaneamente. (Trotsky e Lenin, à diferença de Robespierre e Washington, colocaram-se os fins de mudança político-social de modo autoconsciente e auto-organizado). Uma nova forma de agência humana – como afirmava Marx – se faz necessária para a revolução proletária socialista. A autoemancipação dos trabalhadores voltada não para a substituição política de formas sociais de dominação mas – justamente – para a abolição das relações de poder é a nova forma histórica.
Se Althusser foi autor da odiosa noção de “processo sem sujeito” Thompson insistiu na ideia, igualmente apodictica e algo especulativa, de “sempre ressurgentes agentes”. Uma aproximação histórica (mais do que axiomática) buscaria traçar a curva de empreendimentos de novo tipo, que se mostra agudamente ascendente – em termos de largura de escopo e participação de massas –, nos últimos dois séculos, em franco transcrescimento dos níveis de primeiridade e secundidade. (A demografia e a linguagem seguem áreas da existência inexploradas por esse tipo de agência.) O lugar da autodeterminação – para usar um termo mais preciso do que ‘agência’ – expandiu-se notoriamente nos últimos duzentos anos. O inteiro propósito do materialismo histórico tem sido precisamente o de fornecer a mulheres e homens os meios efetivos através dos quais possam eles exercer uma autêntica autodeterminação popular por primeira vez na história e decidir o destino de suas vidas. Não é outro o objetivo autodeclarado da revolução socialista mundial – isto é, na linguagem clássica da clareza e da urgência da prosa de Karl Heinrich Marx –, a transição do reino da necessidade para o reino da liberdade. Se isso não é de fato importante para um debate público na contemporaneidade, dentro e principalmente fora da universidade – no Brasil e mundo-afora –, não sei exatamente o que deveria mais importar. É tempo de destrambelhar.
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Nesse pequeno ensaio buscamos a síntese de uma polêmica teórico-política-historiográfica de modo mais aprofundado, em um cotejo mais sistemático, aproveitando o anúncio de lançamento próximo, no prelo, pela editora Edunicamp. Trata-se de uma importante lacuna (um não-dito bastante eloqüente para uma leitura mais “sintomal” do mundo da política e das letras brasileiras de hoje em dia) que só vem a ser sanada 35 anos depois. Um fato editorial, por assim dizer, consoante aos eventos políticos da história do tempo presente. A escrita rigorosa de Anderson no trato de seu interlocutor mais controversial, de matiz bastante sofisticado e desabridamente político, não se presta à obscuridade dos argumentos levantados, tentando sempre a clarificação metodológica e a transparência teórica. Acreditamos piamente que se trata de uma importante chave para compreender de onde vem e para onde vai a esquerda mundial, suas aventuras e descaminhos, riquezas e misérias. À continuação da série segue, finalmente, o relato oral autobiográfico do próprio Anderson sobre como e porquê se deu seu processo mesmo de radicalização nos anos 50 e 60. À diferença da simplicidade do primeiro texto e da dificuldade do segundo queremos crer que o historiador marxista vis-à-vis ao espelho revela/oculta temas e problemas os mais candentes no vocabulário dialético daqueles que conquistaram àquilo que Brecht chamaria o sexto sentido humano-social, qual seja, o próprio “senso de história”.
Referências
ANDERSON, Perry. Arguments within English Marxism. Verso: London, 1980.
DELLA SANTA, Betto. Otimismo da Vontade, Pessimismo da Razão. Unesp: São Paulo, 2014.
THOMPSON, Edward. The Poverty of Theory or an Orrery of Errors. Merlin: London, 1978.
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