Betto della Santa
À memória de Raymond Henry Williams. Dedicado à Iná Camargo Costa. Texto construído com o recurso à paráfrase de Terence Francis Eagleton e seu A Ideia de Cultura (Unesp, SP, 2005). Para um bom começo de conversa, entre camaradas, sobre uma outra concepção de cultura.
B. F. Brecht dizia que: “De nada serve partir das boas coisas de sempre, mas sim das novas coisas ruins”. Por motivos vários, o ponto de partida remete-nos a esse “pensamento rude”. Que os hábitos no campo do acesso à cultura apontem menor freqüência da população de sua Europa natal às fruições musical, cênica, operística e literária não é, realmente, nada bom. O ‘Informe de Acesso e Participação Cultural’ (In: Eurobarómetro Especial N.º 399) é um documento o qual, para além dos acessos e/ou participações em “atividades culturais”, designa a níveis de “envolvimento” e “obstáculos” ao acesso, detalhando dados de navegação na Internet, com “propósito cultural”, e anexos, com “especificações técnicas”, questionários e tabelas. Um estudo mais apurado deste documento é algo sobre o que não vamos nos deter agora – ainda e quando valha muito a pena esmiuçar essa dimensão das condições de vida, este relatório tem aproximadamente cem páginas –, por razões de tempo e espaço, e tampouco somos especialistas no assunto. A proposta geral é que possamos questionar os pressupostos mais elementares da concepção de cultura aí subjacente. Antes e mais do que debater o que a Comissão Europeia afere tal estado da arte; o que é cultura?
Poderá parecer algo banal interrogar desse modo mas, na verdade, não é. Senão, vejamos. Existe uma concepção predominante do que a cultura é que se nota com frequência em seu limiar de zona de penumbra. O que a cultura não é? A quem dizemos que é culto e quem é inculto? Quê se oculta – por detrás dos conceitos de cultura e incultura implícitos – no dia-a-dia? Se formos parar a pensar vamos nos deparar aí com o conceito de cultura tal beletrismo e erudição, o campo do que é experimentado autoevidentemente como diáfano e altaneiro, a doçura e a luz, a mente e o coração. A ‘cultura’ seria algo como a ‘superestrutura’, na metáfora do edifício, onde a ‘base’ é a ‘economia’. Espiritual versus material. A cabeça mais que os pés. A estética contra o cotidiano. Nesse sentido não poderia haver expressão mais antitética que “indústria cultural”. Ora vejam só! Se indústria tem a ver com produção material da existência em sociedade e lembra graxa e fumo a cultura remete a violinos ou artes plásticas e reporta à reprodução espiritual de cada indivíduo. Quando os filósofos alemães Theodor Adorno e Max Horkheimer cunharam esse termo a ferro e a fogo queriam mesmo era promover uma reviravolta na boca do estômago do bom gosto burguês. Mas sabiam eles que sua dialética negativa, a crítica mais crítica, seria aí positivada pelo sistema?
Cultura é considerado um dos dois ou três conceitos mais complexos das humanidades ao termo que o que por vezes é considerado seu oposto – Natureza – é comumente conferida a honraria de ser-lhe mais sofisticado. No entanto, embora seja moda considerar a natureza como um derivado da cultura, o conceito de cultura, etimologicamente falando, é um conceito derivado da natureza. Um de seus significados originais é a cultura como lavoura ou cultivo agrícola, o crescimento natural. A palavra latina couter – cognata de cultura – significa “relha de aragem”. A mais nobre designação hominídea tem a ver, paradoxalmente, com seu aspecto mais basilar, a relação mais primária de práxis humana enquanto transformação da natureza através do trabalho. Cultura denota de início processo completamente material, depois metaforicamente transferido para questões do espírito. A palavra, assim, mapeia em seu desdobramento semântico a mudança histórica da própria humanidade da existência rural para a urbana, da criação de porcos a Picasso, do lavrar o solo à divisão do átomo. No linguajar dialético, ela reúne em uma única noção tanto a ‘base’ como a ‘superestrutura’. Quiçás por detrás do prazer que se espera que tenhamos diante de pessoas cultivadas se esconda uma dura memória coletiva de seca e de fome? Mas essa mudança semântica é também paradoxal. São os habitantes urbanos que são cultos, e aqueles que realmente vivem de lavrar o solo – e, por extensão hoje, de trabalhar com as próprias mãos – não o são. Aqueles que cultivam o mundo natural e social são menos capazes de cultivar a si mesmos? A agricultura não deixa tempo livre/ócio para cultura tal qual viemos a chamá-la?
Cultura é uma dessas raras ideias que têm sido tão essenciais para a esquerda política quanto são vitais para a direita conservadora, o que torna sua historia social excepcionalmente confusa e ambivalente. A palavra guarda em si resquícios de uma longa transição histórica de grande importância. Também codifica várias questões fundamentais. Neste único termo entram indistintamente em cena questões de liberdade e determinismo, o fazer e o saber, mudança e identidade, o dado e o criado. Se cultura significa cultivo, um cuidar, que é ativo, daquilo que cresce naturalmente, o termo sugere uma dialética entre o artificial e o natural, entre o que fazemos ao mundo e o que o mundo nos faz. É uma noção ‘realista’, filosoficamente, já que implica a existência de uma natureza ou matéria-prima além de nós, mas tem também uma dimensão construtivista, já que essa matéria precisa ser elaborada numa forma humanamente significativa. Assim, trata-se menos de uma questão de desconstruir a oposição entre cultura e natureza do que de reconhecer que o termo cultura já é em si tal desconstrução (ou reconstrução). Não à-tôa Marx falava de uma natureza humana e de uma humanidade natural para começar a tratar do momento em que separamos as barreiras naturais e fundamos nosso modo de ser e estar.
O mesmíssimo processo histórico que alçou a burguesia primícia, setor médio, a classe dominante, em uma larga duração, e autonomizou diferentes esferas da vida uma da outra, levou com que hoje houvesse uma concepção restrita, especializada e, em verdade, dualista de cultura. A contradição fundamental entre homme e citoyen, com a atomização de economia e política, se revela na divisão entre aquilo que chamamos de Kultur e Civilization. O campo da estética é então facilmente reconhecível em órgãos da Unesco e da EU – por isso ópera e literatura – mas a culinária e o modo de vida, adscritos ao campo da antropologia, dificilmente seria considerados já intercambiáveis pelas mesmas fontes oficiais. Qual é o resultado geral a que chegamos então? A cultura é daí vista como algo secundário ou ornamental, um enfeite ou adorno. O “programa máximo” – de instituições como essas – é a democratização do acesso ao “consumo” de Cultura. E se vê sempre como algo pronto e acabado (para isso os alemães inventaram o termo “cultura culinária”), que não envolve a participação ativa nos meios fundamentais de “produção” cultural. Mesmo a esquerda radical se dedica tão-somente a pedir mais fundos de cultura ou subsídios que não fogem às políticas orientadas para o mercado ou quando muito às formas de proteção estatal. Uma esquerda digna desse nome deve reconhecer a luta cultural como parte de uma luta política.
A formação da classe trabalhadora enquanto classe social hoje – autoconsciente e auto-organizada – pressupõe a criação de um espaço público autônomo do ser que trabalha. O estímulo à auto-organização, o incentivo para que o mundo do trabalho tome à palavra, é uma preocupação preponderante. A refuncionalização dos meios fundamentais de Comunicação e Cultura, sob todas as suas formas, retroalimenta uma realização do imperativo de interatividade, deixando para trás o antigo conceito que via à Cultura como uma forma já constituída. Um esforço criativo e renovador – sistemático e continuado – não deve se contentar com o aprimoramento das instituições, nem com o abastecimento do respectivo aparelho produtivo. O militantismo cultural deve voltar-se à formação dum novo tipo de público, produtor e consumidor – além de autor e crítico –, a um só mesmo tempo, que exige à renovação do saber-fazer instituído. À exigência de interpretar e transformar o mundo se aloca uma necessidade por mudar as formas e relações no interior do modo de produção também cultural.
Os exemplos históricos são ilustrativos. Na Alemanha irá surgir o Freie Bünhe (“Cena” ou “Teatro Livre”) e, um ano mais tarde, o Freie Volksbühne (“Cena” ou “Teatro Popular Livre”). Ambos com a forma de associação livre de trabalhadores, baseada, esta, num sistema de quotas, autofinanciamento e núcleo autodiretivo, que foi multiplicada por todo o país, conquistando a organização de mais de 140 mil sócios no seio do movimento social operário. Tal iniciativa de multiplicação, com foco central na politização dos processos artísticos, pôs o teatro a serviço dos interesses e aspirações dos trabalhadores – tarefa esta que só foi possível de se concretizar por permitir ao teatro que se fazia uma independência econômico-cultural, o que se traduzia também por certa autonomia político-moral, já seja em relação ao Estado ou o próprio Mercado. Em sua origem, o rádio surgiu como um substituto do telégrafo sendo, por isso, conhecido inicialmente tal «Sem-Fio». Tal aparelho rudimentar foi usado em navios para transmissão telegráfica, em código. Em 1916, houve a revolta política pela independência irlandesa e os insurgentes, duma forma pioneira, usam o sem-fio para transmitir mensagens.
Essa foi a primeira utilização que se conheceu do rádio moderno. Marshall McLuhan, comentando tal episódio, observou: “Os rebeldes irlandeses usaram o sem-fio dum barco, não para a mensagem em código – mas para a emissão radiofônica – na esperança de que algum barco captasse, e retransmitisse, sua estória à imprensa americana. E assim se deu.” A radiofonia já existia há vários anos, sem que despertasse qualquer interesse mercantil. O rádio nasceu, assim, para permitir a interação entre os homens e não para ser o que depois veio a se tornar: aparelho emissor cooptado por monopólios a serviço da lógica mercantil. A história do rádio na Alemanha mostra, a propósito, que esse meio teve uma sua origem também ligada a um ato de autodeterminação coletiva; a revolução social de 1918-1923. Tal qual na Revolução Russa, o movimento alemão organizou-se em Soviets. Durante essa breve experiência, o rádio fez à sua estréia, servindo como meio para coordenar às várias regiões do país e manter o contacto com o processo revolucionário russo. De mobilizador político o rádio passa a «comércio acústico». Ao lado das emissoras comerciais, contudo, proliferam as radioclubes e comunidades de ouvintes, ligados ao movimento. A Arbeiter RadioKlub (“Radioclube do Trabalhador”), segundo informe da polícia à época, albergará, em 1924 quatro mil sócios e em 1926, de oitocentos a mil e quinhentos associados plenos.
Vale lembrar a presença da imprensa proletária, a qual serviu de referência para as novas práticas artísticas. Alguns dados são em-si instrutivos. Uma das suas publicações, o Arbeiter llustrierte Zeitung (“Jornal Ilustrado do Trabalhador”), logrou 350 mil exemplares. Jornais operários alemães e russos, franceses ou ingleses, espanhóis e italianos podem ser citados a esse respeito. V. Ilitch e L. Trotsky tematizaram a questão, bem como Zenoviev. Mas foi A. Gramsci quem lhe deu sua expressão mais coerente e unitária, desde sua teoria. Para Gramsci o jornalismo a que chamou integral «não só intende satisfazer necessidades (de certa categoria) de seu público mas intende criar e desenvolver a estas necessidades e até suscitar – em certo sentido – o seu público, e estender-lhe progressivamente sua área.» Aquilo que chama de revistas-tipo / típicas deveria constituir instrumental para reforçar os aparelhos culturais. Por si mesmas, as revistas seriam estéreis se não se tornassem a força motriz e formadora destes aparelhos culturais, de tipo associativo e de massa, isto é, cujos quadros não estejam fechados. Isso também se aplicaria às «revistas de partido»; não é aí necessário crer que o partido constitua, de per se, mesmo, o aparelho cultural de massa da revista. O partido é, essencialmente, político e também a sua atividade, política, é cultural. Os aparelhos culturais, devem ser não apenas de uma “política cultural”, mas de “técnica cultural”.
Se a cultura é aquilo que nos define enquanto gênero humano – o projeto em devir de transformar o mundo e, no processo, transformarmos a nós mesmos – construindo novas relações de produção da existência social, do cultivo da terra à conquista do espaço, cognição e afetos, a possibilidade efetiva de criar novos valores, novas crenças, concepções totais de mundo e orientações para a ação passa também pelo progressivo desfazimento da distinção entre quem sabe e quem faz, quem age e quem pensa, quem escreve e quem lê, quem produz e quem consome, quem governa e quem é governado, quem concebe e quem executa. O teatro de grupo é um dos lugares em que uma memória ancestral dos coros antigos, sem distinção do espaço estético do tablado clássico, se dava no centro da cidade. Mais do que a divisão entre atores e expectantes havia uma comunidade real. E não se distingue muito bem o que é emissão e fruição de cultura, menos ainda produção e consumo da mesma. A isso damos o nome que, muito antes e muito depois de K. H. Marx, cabe dar. Nem um piedoso ideial nem uma razão de Estado mas, antes de mais nada, um movimento do real: o comunismo. E antes de que os assim-chamados “ortodoxos” venham perguntar pelo conceito de arte como “espelhamento” ou os mal-ditos “dialéticos” iniciem a praguejar contra a própria noção de “cultura” – com a licença poética daquilo que Iná Camargo chamou “espírito de porco” – finalizo essa intervenção com a deliciosa question-tag com que Raymond Williams, à sua época, enfrentou a cripto-stalinistas ou idealistas metafísicos de-há alguns bons alqueires de distância territorial de sua origem proletária: «You Are A Marxist, Aren’t You?» («Você É Um Marxista, Não é?»).
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