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TEORIA

Traduzindo a «Easter Rising» 1: cem anos da insurreição irlandesa (1916)

Lucas Martins |

Lembrar é resistir.

Este artigo é o primeiro de uma série que tem como objetivo homenagear os 100 anos da «Easter Rising» («Levante da Páscoa») e suas classes oprimidas e combatentes, reconstruindo questões importantes para o marxismo revolucionário daqui e de todas os países. Além de cumprir o papel de divulgar um evento desconhecido da esquerda brasileira, espera-se também lançar debates sobre este conflito, pautando temas como autodeterminação social e nacional, nacionalismo e internacionalismo – além de reforma social e revolução –, de há um ano antes do estalido de trovão da Revolução de Outubro. Como vocês logo vão perceber, a questão irlandesa não se trata de um mero «objeto de estudo» a frio para mim, ou mesmo uma curiosidade diletante. Pretendo convencê-los, no decorrer dessas linhas e desses textos, que a revolução irlandesa é uma das difíceis causas de nosso tempo que valem a pena defender. Oxalá a empreitada anime diversas iniciativas, já que estamos longe de pretender esgotar a questão.

O que vocês vão acompanhar nas próximas semanas não é nem a reportagem desapaixonada do jornalista político blasé nem a neutralidade axiológica do glutão da ciência social. Meu nome é Lucas de Toledo Martins e desde a mais tenra idade sou um internacionalista convicto, o que explica, em parte, a minha aproximação a quente com o engajamento trotskista. Como assessor de comunicação social do Sindicato dos Metalúrgicos de São José dos Campos, e jornalista profissional formado pela Universidade Estadual de Londrina, tomo partido de um modo de produção editorial que não confunde a indispensável busca da objetividade jornalística – com as exigências éticas e compromissos valorativos decorrentes – e qualquer veleidade liberal a respeito de isenção e/ou imparcialidade. A contrapêlo do cânone jornalístico, esta comunicação militante põe a centralidade axiológica no conhecimento do subalterno. É o «jornalismo integral.» Mas, para persuadi-los da relevância do tema, preciso, antes, narrar como este chegou até mim.

O assunto aqui tratado surgiu, de modo mais consistente e duradouro no horizonte intelectual e moral do interlocutor que vos fala, muito recentemente, após uma viagem político-social realizada à Irlanda no ano passado, em 2015. Sem dúvida, o pouco tempo em dispêndio, percorrendo os espaços – e os tempos – que ainda carregam as marcas do Levante da Páscoa, são suficientes para instigar, desafiar e até encantar qualquer um que, como se diz, tenha o coração “do lado esquerdo do peito.” A forma e o sentido deste acercamento são daí dois dedos de prosa, que pretendo contar, ao longo destes artigos. Não é assim, de chofre, que posso lhes explicar como vim a ser convidado para conhecer um estádio de futebol diferente dos tradicionais, beber num pub com trabalhadores locais, conhecer militantes de diferentes tendências e até apadrinhar o batismo de um lindo bebê irlandês cujo pai, meu querido amigo, aprendeu a balbuciar às suas primeiras palavras em português do Brasil a dizer: Vai, Palmeiras! (Risos!) É toda uma história para lhes contar. Mas vamos iniciar como se deve: do princípio.

Antes, uma rápida advertência. A série de artigos que vamos expor neste espaço vai se valer de duas noções importantes do marxismo-mundo. A “tradução”, compreendida como a atividade vital de fazer com que duas culturas diferentes possam compreender uma à outra, e a “narração”, entendida enquanto a possibilidade efetiva de comunicar uma visão de mundo a partir de uma experiência compartilhada. As inspirações evidentes para essas ideias programa são Antonio Gramsci e Walter Benjamin, respectivamente. Com essas duas categorias em mente vamos tentar colocar em estado prático uma concepção de internacionalismo que vá para além do piedoso ideal e se converta em verdadeira força produtiva. Sem maiores delongas, por quê, afinal, vale a pena conhecer o Levante da Páscoa?

Começo de conversa

Em 2016 uma das principais revoltas de caráter operário e popular, anteriores à Revolução Russa, aniversaria seu centenário. O conflito que ficou conhecido como o Levante da Páscoa causou um tremendo impacto na esquerda socialista européia e britânica, quando pouco mais de mil trabalhadores irlandeses se rebelaram contra o Domínio da Coroa. Embora tenha durado apenas uma semana – a Semana Santa –, os efeitos deste acontecimento dramático repercutiram, à sua época, em profundidade e extensão. Além de dar o pontapé inicial no processo que libertaria a Irlanda do maior Império já visto na Terra, a participação de um líder marxista, o militante escocês James Connolly, chamou a atenção daqueles que construiriam, um ano mais tarde, a maior revolução social do Séc.XX. O bolchevique russo, Vladimir Lenin, em especial, irá se utilizar da experiência do fato político irlandês como pedra de toque em seus escritos sobre o direito à autodeterminação dos povos. O marxista alemão Bertolt Brecht irá problematizar a utilização do novo fato técnico, o rádio como aparato de comunicação, em sua teoria sobre uma outra – e radical – concepção de cultura.

Pode-se imaginar o espanto dos dublinenses naquela segunda-feira da Semana de Páscoa, há quase 100 anos? Ao cruzarem uma das principais vias do centro da capital irlandesa, depararam-se com um homem, bem-vestido e de meia-idade, discursando dramaticamente na janela do grande prédio pertencente aos Correios. Patrick Pearse (Pádraig Piarais, em idioma irlandês), professor, poeta e estudioso da cultura e língua gaélicas, lia um documento em que se afirmava que a partir daquele momento a Irlanda se tornava uma República, livre do jugo do então maior Império construído sobre o Planeta. Neste primeiro momento, a pena desempenhava um papel mais importante do que a arma no processo de emancipação irlandesa. No documento, que ainda garantia o direito universal ao voto, a igualdade de gênero e de oportunidades para todos concidadãos, subscreviam mais seis pessoas. Entre eles, Thomas Clarke (Tomás Cléirigh), velho republicano irlandês com mais 15 anos em prisões na Inglaterra. Como já se disse antes: “the pen is a mighty sword” (a caneta é uma portentosa espada). E é mesmo.

O jornalista, Joseph Plunkett (Seosamh Pluincéid), que havia viajado até a Alemanha, em plena Guerra Mundial, para negociar o envio das armas ao grupo armado nacionalista Voluntários Irlandeses. E James Connolly (Séamas Ó Conghaile), operário nascido na Escócia, filho de imigrantes irlandeses, que após desertar do exército britânico alia-se à causa republicana da Irlanda. Fortemente influenciado pelo pensamento marxista, Connolly era o líder do “Exército dos Concidadãos”, um grupo social de trabalhadores criado a partir da necessidade política de autodefesa nas greves organizadas pelo Sindicato Irlandês do Transporte e Trabalhadores em Geral. Após a proclamação da República, realizada por Pearse, o levante perdurou por seis dias, encerrando-se no Sábado, um dia antes do Domingo de Páscoa. Durante a semana, menos de 2 mil rebeldes, com poucas armas e treinamento, chegaram a enfrentar 16 mil soldados ingleses equipados com artilharia pesada. É realmente espantoso que não saibamos quase nada sobre isso. A formação de mentes e corações socialistas capenga à retaguarda.

Do levante

Muitos afirmam que, para aqueles aquartelados no posto central dos Correios, era praticamente certo que o conflito duraria apenas um dia, no entanto, também era real o desejo de trazer de volta à tona o sentimento independentista. O último conflito em nome da autodeterminação havia ocorrido em um longínquo 1798, ainda influenciado pelas chamas da Revolução Americana (1791) e Francesa (1789). O ano era 1916, e a Inglaterra tinha toda sua atenção voltada para os eventos da Guerra Mundial. Em uma semana de feriado, em que poucos soldados ingleses patrulhavam as ruas da Colônia, as forças do “Exército de Concidadãos”, e dos “Voluntários Irlandeses” tomaram, certa facilidade, alguns pontos importantes para o êxito da rebelião em Dublin. A ideia era estender o conflito o máximo possível, na esperança de que o restante do país se levantasse pela República. De fato, inúmeras mobilizações ocorreram em Cork, Ashbourne, Enniscorthy e Galway. No entanto, com a Inglaterra interceptando as armas que viriam da Alemanha, os rebeldes não seriam capazes de realizar mais do que pequenos ataques. O levante político seria, mutatis mutandis, uma derrota militar?

Em Dublin, além do posto geral dos Correios, que havia se tornado o Quartel General dos rebeldes, foram tomados outros prédios administrativos importantes como o Liberty Hall, onde foi impressa a proclamação, e o Four Courts, ambos centros do establishment irlandês. O Parque St. Stephen’s, sob o comando de Constance Markievicz – do Cumann’na’mBan –, única mulher líder entre os rebeldes, a panificadora Boland, a escola de cirurgiões, a ponte da Rua Mount e as casas da Rua Moore, foram outras localizações que serviram de forte aos insurrectos, em sua maioria localizada na região central de Dublin. Em uma breve digressão, podemos afirmar que a atualidade do “Levante da Páscoa”, como ficou conhecido o conflito nos livros de história, salta aos olhos de qualquer turista ou curioso que percorra hoje as ruas de Dublin. Muitos dos lugares aqui citados são partes da paisagem urbana local e ainda ostentam inúmeras marcas do conflito, como paredes e colunas cravejadas de balas. Há ali um certo orgulho nacional pairando no ar. Qual será o seu significado histórico político mais profundo?

Estas marcas são provas do que esperavam os rebeldes ao longo da semana. Embora tenham pegado os ingleses de surpresa, algumas falhas militares comprometeram o sucesso da empreitada desde o início. A incapacidade em tomar o Castelo de Dublin, principal fortificação do exército inglês, e inviabilizar as linhas férreas, permitiu aos ingleses a oportunidade de se organizarem e, após algumas baixas no primeiro dia, contra-atacarem os rebeldes fazendo-os recuar dia após dia. Com a chegada das armas de artilharia pesada e do General Sir John Grenfell Maxwell, veterano de outras guerras coloniais contra os árabes sudaneses e sul africanos, especialmente enviado de Londres para lidar com o conflito, os ingleses bombardearam o posto geral dos Correios sem cessar, o que causou um grande incêndio. Por se tratar de uma cidade populosa e com muitas pessoas miseráveis, a tática adotada foi responsável pela maioria das mortes civis. Ao todo: 260 civis, 66 rebeldes e 146 inimigos britânicos. Números, aqui, falam mesmo pouco deste grandioso fato.


Da queda

Com alguns dos líderes já caídos, James Connoly ferido no tornozelo, na troca de tiros nas redondezas dos Correios, e sem condições de levar o conflito adiante, o que causaria mais centenas de mortes de civis, Pearse declara a rendição no Sábado, 29 de abril de 1916. Na tradição católica, o Sábado que precede o Domingo de Páscoa é conhecido pelo sentimento de mundo que exala vigor e luto. Teria sido neste dia, a ocasião em que o corpo de Jesus Cristo permaneceu sepultado, a face humana de Cristo conhece a finitude da experiência com sua morte. A mística ética da tradição republicana, uma certa moral dos vencidos, realimenta-se desta experiência vivida através da linguagem dos símbolos e alegorias. A importância de rituais, um certo elã, pode ser percebida em vívida manifestação nas ruas de Dublin a partir da contextualização efetiva do que o vocabulário político atribui ao céu e à terra. Nunca antes na história do marxismo foi mais verdadeiro dizer que o verdadeiro segredo da sagrada família se encontra no chão histórico de sua terrena profanidade.

Com a rendição dos rebeldes, todos os líderes, os sete nomes que assinavam a Proclamação da República, foram presos e posteriormente executados, algumas semanas depois, no início de Maio. Também teve início um forte período de perseguição à população, com as autoridades britânicas prendendo mais de 3,5 mil pessoas suspeitas de envolvimento no Levante da Páscoa. No entanto, a atitude tomada pela Coroa surtiu efeito contrário ao previsto. Os líderes se tornaram mártires de uma revolução que pregava a liberdade do povo irlandês e a perseguição a que foram submetidos os concidadãos só ajudaram a sedimentar uma ideia: a de que somente através da independência eles poderiam realmente controlar seu próprio destino. Embora um grande fracasso militar, o legado do Levante da Páscoa se tornou a revivificação da luta pela autodeterminação do povo irlandês. O conflito praticamente sepultou 40 anos de “Home Rule”, em que a peleja por conquistas na Irlanda era travada apenas dentro do Parlamento londrino. Nem Lordes nem Comuns poderiam arbitrar à luta.

A partir de 1916, o evento e o processo independentista tomou conta da vidas das pessoas que haviam visto os esforços revolucionários de Conolly, Clarke, Pearse e tantos outros. Não mais se aceitaria que as decisões sobre a Irlanda fossem tomadas em outro país. Da mesma forma, acentuaram-se as divisões entre aqueles que desejavam continuar a fazer parte do Império Britânico e os separatistas, o que fomentou o processo de guerra civil posterior. Por isso, o Levante da Páscoa pode ser considerado o primeiro estágio da guerra de independência que em 1922 criou o Estado Livre – principal líder da guerra contra a coroa britânica em 1922, Michael Collins, havia sido voluntário durante o levante de 1916, lutando na guarnição liderada por James Connolly – e, em 1949, garantiu a criação da República da Irlanda, como a conhecemos hoje. O gesto exasperado, protagonizado pelos rebeldes que sustentaram o Levante da Páscoa, poderia expressar algum nexo com o sentido assumido pela Páscoa na tradição cristã? Cremos que a resposta está no catolicismo popular irlandês.


Da memória

Se não há vitória material ou objetiva, para Cristo ou os irlandeses que se levantaram contra a opressão, são os efeitos posteriores à morte que realmente marcaram época. Como as ideias são infinitamente mais difíceis de se vencer do que as pessoas, o momento de redenção política dos envolvidos no Levante da Páscoa se deu posteriormente, com seu exemplo sendo aprofundado pelas gerações posteriores. Fato foi que o conflito não somente marcou os rumos da luta pela independência na Irlanda, mas também os principais nomes que arquitetariam a Revolução Russa, apenas um ano depois, em 1917. Em carta enviada a Nora Connolly, filha de James Connolly, vinte anos após o conflito em Dublin, ninguém menos do que Leon Trotsky admite que os eventos de 1916 e a atuação do revolucionário marxista escocês na Irlanda o impactaram: “O destino trágico de seu corajoso pai chegou até mim, em Paris, durante a guerra. Eu o carrego fielmente em minha lembrança [à grande rebelião irlandesa]”,(1) escrevera Trostky em 1936. Um depoimento poderoso. E de um dirigente fulcral.

No entanto, foi Lenin o revolucionário mais afetado pelo Levante da Páscoa. Enquanto Conolly e o “Exército de Concidadãos” tomava de assalto às ruas de Dublin Lenin estava a escrever sua teoria sobre a autodeterminação e o imperialismo moderno. Quando em julho de 1920, Roddy Connolly, filho de James, encontrou Lenin durante o Congresso da Segunda Internacional Socialista, o dirigente russo não só afirmou que havia lido o livro de seu pai, “O Mundo do Trabalho na História da Irlanda”(2), quanto estimava ao camarada James Connoly, como que pareando ombro a ombro com os grandes europeus à época. Os desdobramentos do Levante da Páscoa ainda são memória viva na esquerda revolucionária da Irlanda, principalmente após o movimento que se adotou, pelos historiadores, o “revisionismo”, apagando a profundidade do envolvimento de James Connolly com esta esquerda mundial e a perspectiva própria da revolução. Também a história é todo um campo de batalhas.

O mesmo ocorreu com os rumos da luta pela independência na Irlanda que, após Connolly, foi tratada muito amplamente em um âmbito nacionalista, deixando para trás a ideia contida em um de suas célebres pensamentos: “Os irlandeses só serão livres quando possuírem tudo: do arado às estrelas”. É clara a determinação de Connolly em construir uma revolução pela independência, mas realizada pelas mãos dos trabalhadores, para alcançar a emancipação nacional sem sacrificar a emancipação proletária. Muitos dos inimigos de Connolly se situavam exatamente do lado de sua fronteira, na Irlanda, mas em lado oposto, quando se tratava da luta de classes. Para discutir essa e outas questões, durante este mês de Abril, mas não só, este pequeno espaço – a série, aqui, proposta – irá trazer novos textos para assim abordar os desdobramentos do Levante da Páscoa na história da esquerda mundial. Talvez a maior homenagem que possamos prestar àqueles que caíram em 1916 seja apresentar esta história para que os brasileiros possam aprender desta luta. Luta sem fim.

Nós não esqueceremos.


Algumas referências literárias | 
(1) Trotsky, Leon apud McGeever, Brendan. The Easter Rising and the Soviet Union: an untold chapter in Ireland’s great rebellion. 25 March 2016. Open Democracy. Disponível em: <https://www.opendemocracy.net/uk/brendan-mcgeever/easter-rising-and-soviet-union-untold-chapter-in-ireland-s-great-rebellion>. Acessado em 3 de Abril de 2016.
(2) Connoly, James. Labour in Irish History. Bokmarks, London, 1910/1987. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/connolly/1910/lih/>. Acessado em 3 de Abril de 2016.

Uma brevíssima bibliografia | Lenin, Vladimir. The Discussion On Self-Determination Summed Up. Moscou, julho de 1916. Disponível em: <https://www.marxists.org/archive/lenin/works/1916/jul/x01.htm>. Acessado em 29 de Março de 2016.

Rebelion, Portal. Dirección: Aku Louhimies. Irlanda. RTÉOne, 2016. 5 Capitulos (53min.).

McAdam, Margaret e Martin, Ralph. Ventos de Liberdade, por Ken Loach (mimeo.). ISL, Liverpool, 2007.

McCarthy, Cal. Cumann’na’mBan & the Irish Revolution. Dublin, 2013.

Coogan Pat, Tim. 1916: The Easter Rising. Dublin, 2015.

Ferriter, Diarmaid. Diarmaid Ferriter: why the Rising matters. Irish Times.  23 de setembro. 2015. <http://www.irishtimes.com/1916/diarmaid-ferriter-why-the-rising-matters-1.2353812>. Acessado em 3 de Abril de 2016.

Ferriter, Diarmaid. Remembering the 1916 Rising. Irish Times. 2015. <http://www.irishtimes.com>. Acessado em 3 de Abril de 2016.