Por: Diego Braga, de Porto Alegre, RS
Entender as relações entre direito e poder é importante para analisar a situação política atual, em que as instituições do judiciário influenciam mais diretamente que de costume o que se passa nas instituições políticas. A judicialização da vida social é um fenômeno já há muito identificado por juristas e sociólogos. Consiste – salvo visões muito ingênuas ou maldosas politicamente – em um problema desde o ponto de vista da defesa de liberdades democráticas, mesmo nos marcos do regime burguês.
Pelas relações entre direito e poder, ou seja, pelo modo como o direito ajuda a conferir legitimidade ao poder, no Estado moderno, por um lado, e por outro, pelo modo como, de fundo, o poder sustenta o direito em sua vigência e o viola se for necessário, compreende-se um capcioso e potente mecanismo de controle social, que articula formas de violência com ideologias ligadas a noções de justiça, garantias, igualdades e outras associadas ao direito moderno. O uso da violência é a forma mais evidente de manifestação do poder e, dialeticamente, conforme Hannah Arendt, também a evidência da crise do poder que recorre a práticas violentas. Comecemos por esta, então.
Violência legítima é aquela que é aceita pela maioria dos membros de uma sociedade dependendo de qual agente a exerça, do grau ou tipo de violência exercido, do contexto de tal exercício e de quem seja o alvo de tal violência. Violência legal é aquela prevista em lei. Ocorre nos contextos previstos, que autorizam determinada prática violenta, por parte de certas pessoas ou instituições, em certo grau de intensidade e forma de exercício, contra alvos determinados. Ou seja, violência legal ocorre nos casos em que determinado ordenamento jurídico prevê como de direito o uso de determinadas formas de violência. É a violência prevista em lei como não sendo uma infração.
Já o monopólio da violência ocorre quando determinado grupo de pessoas ou instituições, numa dada sociedade, detém o direito de exercer violência. O monopólio da violência pode ser legítimo, quando aceito pela maioria dos membros de uma sociedade, e/ou legal, quando está sancionado em leis, formalmente. O monopólio legal da violência é parte fundamental dos mecanismos sociais de controle. Provavelmente um dos mais importantes e eficazes.
Considerando que a violência é agenciada para várias formas de controle social, o fato de ela (quando é violência legal) ser embasada no direito – que goza de ampla aceitação e institucionalização -, faz com que se torne mais eficiente, porquanto prevista por um sistema social (o direito) que é considerado pelos cidadãos como representante da justiça. Embora nem sempre o que é de direito é o que é justo (´´justiça“ e ´´direito“ nem sempre são correspondentes), a maioria das pessoas não entende isso. Desta feita, o direito, prevendo a violência legal e regulamentando seu monopólio, consiste numa das instituições/práticas sociais que mais corrobora para conferir legitimidade à violência. Sendo o poder exercido, de forma última e ao mesmo tempo eminente, através da violência, o direito, ao legitimar o poder e legalizar a violência, constitui mecanismo central para o controle social, que por sua vez sempre implica a existência de um poder.
Se há controle social, há poder: o poder é o centro articulador mais importante do controle social, embora nem todas as formas de controle social sejam formas de poder diretamente ligadas ao Estado e sancionadas pelo direito, como por exemplo através da cultura, da mídia, das religiões, da moral, das instituições educacionais, etc.
O Direito, estando associado ao justo e sendo, na consciência de grande parte dos membros de uma sociedade, a sua expressão prática, ao legitimar o poder identifica-o, igualmente, à justiça, inclusive quando o poder é exercido por meio da violência legal. O Direito cria, ademais, certa sensação de segurança, de que há garantias fundamentais que não serão violadas, o que inclui proteção dos indivíduos contra a violência legítima exercida pelo poder. Assim, o Direito tende a ser enxergado como um limitador do poder e da violência e, ao mesmo tempo, como fundamento de sua legitimidade e legalidade.
Legitimidade formal é uma espécie de legitimidade característica do Estado moderno enquanto entidade política e do capitalismo enquanto formação socioeconômica. Chama-se “formal” porque é uma legitimidade que emana não de práticas e ações concretas, mas do respeito a certas formalidades, procedimentos, práticas, princípios, critérios e regras preestabelecidos, que devem conduzir, limitar e fundamentar as ações e decisões das instituições ligadas ao exercício do poder. Agir conforme estes elementos de formalidade é condição para que qualquer ação tenha legitimidade perante a sociedade.
Esta espécie de legitimidade (legitimidade formal) prevalece em sociedades capitalistas porque nestas sociedades, economicamente, é necessário haver a livre troca, o livre mercado, a livre concorrência, dentro de limites mais ou menos amplos. Assim, os procedimentos precisam ser regulamentados por normas gerais, formalizados, em vez de arbitrados a partir de decisões contingenciais, específicas e pontuais do poder, ainda que os mecanismos formais não prescindam de tais decisões específicas. Mas dentro da legitimidade formal tais decisões devem estar de acordo com as formalidades das normais gerais. A existência de um Estado de Direito, pela legalidade, é fundamental para o funcionamento das formalidades que conferem, neste tipo de sociedade, a legitimidade ao poder.
A legitimidade material, nas sociedades capitalistas, pressupõe a legitimidade formal, que forma, portanto, a base daquela. A legitimidade material é aquela que não se baseia nos procedimentos formais legalmente instituídos, isto é, na legalidade, e sim no poder. A legitimidade material emana do poder em seus aspectos político, militar, econômico, cultural e moral.
Sobretudo dos dois primeiros em sua forma mais evidente. Fora das sociedades capitalistas, a legitimidade material com frequência contraria e sobrepõe-se à legalidade e à legitimidade formal, mas esta sobreposição pode acontecer mesmo dentro do capitalismo, embora sempre como um evento que rompe a ordem normal de um determinado poder estabelecido (como no golpe de 64, por exemplo, em nosso país, ou no caso das revoluções socialistas do século XX e da revolução francesa).
A legitimidade material se dá quando o poder é exercido em nome da justiça (´´justiça“ do ponto de vista do grupo que o exerce), podendo inclusive contrariar determinado sistema jurídico em nome da justiça. Assim sendo, onde predomina a legitimidade formal, o direito parece se sobrepor ao poder, limitando-o e fundamentando-o, ou seja, servindo como uma das formas de sua legitimação. Onde predomina a legitimidade material, o poder se sobrepõe normalmente ao direito, à legalidade – sem perder necessariamente sua legitimidade – agindo em nome de ideais de justiça ou de bem comum, sempre desde a perspectiva de quem exerce o poder.
Mas um poder em crise não goza de legitimidade, ou seja, não é considerado como adequado em suas ações pela maior parte da sociedade. Desta feita, precisa recorrer à violência, nem sempre a violência legal, prevista em lei. Revela-se, aí, a faceta escondida da relação entre direito e poder. O direito confere legitimidade ao poder e, através da legalidade, permite seu exercício sem necessidade de uso da violência constante, controlando esta última dentro dos limites previstos em lei. Contudo, quando se encontra em crise de legitimidade, o poder, justamente porque é poder, pode sempre sobrepor-se ao direito, inclusive no que diz respeito ao exercício da violência. Revela-se, tendencialmente, na crise do poder, a outra faceta da relação entre direito e poder: o poder impõe o direito e, se o obedece, isto se dá apenas porque não se vê ameaçado ou não depende do direito para se perpetuar.
As crises de legitimidade, portanto, revelam outra ordem de relação entre direito e poder: o direito não fundamenta o poder, apenas confere a este uma forma legal que otimiza seu exercício através da legitimidade formal. É o poder, de fato, que fundamenta o direito, impondo-o, submetendo-se a este quando é de interesse do poder e, quando não, violando-o. Por isto, em crises grandes de legitimidade do poder pode haver, também, processos revolucionários, que consistem na transformação profunda da ordem social sem respeito à legalidade vigente, em geral para instaurar uma outra. Nosso tipo de sociedade, que é baseado na legalidade e na legitimidade formal, foi ele mesmo fruto de processos revolucionários.
O direito em suas diversas manifestações é, assim, uma construção histórica. Produto da ação social das mulheres e homens. Infelizmente, na maior parte do tempo, mais dos homens que das mulheres. Esta última colocação, por exemplo, permite entrever o quão falsa é a pretensão de neutralidade do direito frente aos mecanismos de dominação de uma ordem social injusta.
Há inúmeros direitos possíveis e já existiram diversas formas de direito. Em comum a todas elas está o fato de que, em suas grandes linhas, o direito reflete e reproduz relações de poder que viabilizam e sustentam interesses dos setores sociais que exercem, em cada sociedade, o mesmo poder. Quanto mais complexas as sociedades, menos direta e monoliticamente o direito reflete os interesses de um único grupo social. Por isto, nas sociedades contemporâneas, extremamente complexas, vem à tona o conceito de pluralismo jurídico.
Pluralismo jurídico designa o fenômeno da coexistência de ordenamentos jurídicos diversos – complementares ou contraditórios – dentro de uma mesma sociedade, em oposição ao monismo jurídico, que denomina o fenômeno de que existe apenas um direito na sociedade, produzido pelo Estado. Trata-se de conceitos que implicam concepções teóricas diferentes em relação à sociologia do direito.
Quanto mais ampla é a concepção teórica de direito dentro de uma dada teoria, mais tendencialmente tal teoria trabalhará com o conceito de pluralismo jurídico. Um conceito de direito que não o diferencie categoricamente de outras normas sociais em geral tende a englobar não apenas o sistema jurídico estatal. Já um conceito de direito que tenda a limitar a compreensão do direito ao sistema de normas criado e operacionalizado pelo Estado, o direito positivado em sentido mais kelseniano do termo, aproxima-se da visão do monismo jurídico. Mas antes mesmo da existência do Estado de Direito temos sociedades marcadas pelo monismo jurídico, bem como pelo pluralismo.
Uma definição de direito coerente com o conceito de pluralismo político é aquela que entende o direito como qualquer sistema normativo e sancionador socialmente eficaz, ainda que não expresso em legislação positivada nem operacionalizado por instituições do Estado. As teorias tradicionais acerca do pluralismo jurídico o entendem como a coexistência, nem sempre harmônica, de outras formas de direito em paralelo à do direito estatal. Ou seja, consideram diversos direitos coexistentes, sem mútua relação sistemática, sendo que um deles é o direito estatal mais abrangente e sistematizado.
As teorias modernas acerca do pluralismo jurídico têm quatro variedades. Na variedade que considera o pluralismo jurídico a partir do conceito de “interlegalidade”, os diferentes ordenamentos jurídicos vigentes numa dada sociedade interligam-se, sem que haja uma hierarquia ou sobreposição de um sobre outro quanto ao seu caráter de legitimidade. São ordenamentos diferentes que, dentro de suas esferas, gozam de plena legitimidade.
A segunda variedade enfatiza a complexidade cultural e social das sociedades contemporâneas, de tal forma que o direito estatal, atualmente, não deva buscar assimilar legalmente as diferentes culturas e grupos sociais, mas comportá-las respeitando, dentro de certas medidas, suas normas específicas e atendendo as necessidades peculiares de diferentes grupos sociais, como no caso das ações afirmativas dos grupos oprimidos socialmente.
A terceira variedade desenvolve-se com o crescimento em força e complexidade do direito internacional, como instância que procura respeitar os diferentes ordenamentos jurídicos estatais, mas que, em alguns casos, entra em conflito com estes. A quarta variedade investiga a existência de direitos específicos dentro de grupos sociais particulares. Para esta variedade, o direito como um todo só pode ser entendido enquanto sistema que comporta diferentes direitos, que incluem os sistemas normativos e de sanções, cuja aceitação é restrita a certos grupos sociais.
O que alguns juspluralistas chamam de ´´sistemas de direito diferentes“, coexistentes com o direito estatal, é, muitas vezes, simplesmente parte do direito estatal delegado pelo Estado a setores específicos da sociedade e reconhecidos pelo Estado nos limites da legalidade a este atrelada. É o caso, por exemplo, de normas específicas de entidades técnicas, como a ABNT. Noutras situações, os chamados sistemas paralelos de direito não constituem direito de fato, no sentido moderno, enquanto garantias e obrigações, tendo inclusive os membros da sociedade o direito de recorrer ao Estado contra as sanções e imposições vindas destes sistemas normativos, como é o caso dos sistemas de normas e sanções vigentes nas facções criminosas.
Do ponto de vista mais estritamente sociológico, a existência de sistemas normativos não estatais no seio do Estado moderno indica, em geral, uma crise de legitimidade do direito e, por extensão, do poder do Estado, ainda que tal crise exista em apenas um dado setor da sociedade. Trata-se não da coexistência de sistemas normativos, mas da substituição de um sistema por outro, quando o primeiro falha, por ausência, ineficácia ou qualquer outro motivo. Esta “jurisdição perdida” pelo Estado pode ser retomada, a qualquer momento.
Neste ponto, é importante frisar a diferença entre sistemas normativos e direito. Todo direito é um sistema normativo, mas nem todo sistema normativo corresponde ao direito. Os sistemas normativos de forma ampla, excetuando-se o direito, confundem-se com a moral, as tradições e as regras de convívio. O direito, enquanto sistema normativo do Estado moderno, tecnicamente, caracteriza-se pela segurança jurídica, pela certeza, pela centralização, pela estabilidade e pela execução assegurada, além do limite da violência à sua forma legal. É aplicado por juristas profissionais e mediado eminentemente pela escrita. Estas diferenças, se ignoradas, tornam inútil o próprio conceito de direito.
Contudo, esta crítica técnica ao pluralismo jurídico é, por demais, limitada à dimensão jurídica do problema. A questão, em sua profundidade, é eminentemente sociológica e política. É preciso, nesta compreensão sociológica e política, retomar uma visada história acerca da constituição do Estado de Direito. A constituição dos parâmetros gerais do direito moderno deu-se a partir do que, em dado momento, foi exatamente o que alguns chamam, para diferenciá-los do Direito estatal, de sistemas normativos informais ou infrajurídicos.
Foram aspirações, valores morais, normas de convívio, etc., que eram sustentados como legítimos por um grupo social, a burguesia, contra a legalidade vigente no Estado absolutista. Dito de maneira simples, a diferença entre sistema normativo informal ou infrajurídico, por um lado, e direito estatal, por outro, é, antes de ser baseada nas características formais elencadas acima (segurança jurídica, certeza, etc.), uma diferença política e histórica: direito estatal é, em sua essência e origem, um sistema normativo desenvolvido a partir de outro, originalmente informal ou infrajurídico, representando a visão de mundo e os interesses de um grupo social que ascendeu ao poder e que, então, impôs o seu sistema normativo ao conjunto da sociedade.
Para otimizar tal imposição, necessária à dominação, a classe social que ascende ao poder traveste o seu direito de características que o apresentam como neutro, justo, igualitário, seguro, certo, etc. Assim, diferencia-o formalmente dos outros “sistemas normativos informais”, enquanto, no seu conteúdo social, em seus fundamentos políticos e em sua efetividade prática, este “direito estatal” não se distingue de boa parte dos demais sistemas normativos diversos, que coexistem socialmente, nem sempre em harmonia, representando valores, interesses, práticas e relações de força correspondentes aos diversos outros grupos sociais alijados do poder.
Assim, todo direito é um direito de classe. É, nas suas grandes linhas, o direito da classe que exerce o poder. Parte dos mecanismos necessários à máxima eficiência de tal exercício é a ideologia de neutralidade, justiça, garantias e equidades associada ao direito de classe existente, que mascara não apenas seu caráter de classe. Mascara, também, sua fragilidade enquanto instituição fundada num poder. Poder, por sua vez, desde um ponto de vista marxista, baseado na propriedade privada.
Se a propriedade privada é garantida pelo direito, o direito que a garante é viabilizado pelo poder que nela se fundamenta. Esta dialética, como toda, requer uma síntese. Como toda síntese, esta jamais será o resultado da ação de apenas algum de seus elementos. Não pode o direito desmobilizar o poder do qual emana. Não pode o poder eliminar a propriedade privada em que se baseia. Não pode a propriedade privada fundamentar, enquanto limitada a uma ínfima minoria, uma justiça senão como justiça para uma parte muito pequena da sociedade.
Foto Lula Marques/AGPT
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