Por: Henrique Canary, colunista do Esquerda Online
Na semana passada, nesta mesma coluna, afirmei que o golpe parlamentar em curso poderia dar à esquerda socialista uma segunda chance de superar o projeto petista. Para quem viveu 2013 desde uma localização de oposição de esquerda ao governo, a questão tem certa importância. Agora, depois do ato de 100 mil pelo Fora Temer em São Paulo, é preciso dizer concretamente quais os possíveis caminhos dessa superação.
Embora exista uma discussão legítima sobre os números do ato do último domingo, e inegável que ele moveu um setor de massas, muito mais amplo do que o ativismo das organizações de esquerda. A manifestação teve um enorme impacto sobre a conjuntura. O governo mudou o tom arrogante de seu discurso; a grande imprensa recuou da exigência de repressão, e passou a cobrar do governo apenas coerência no encaminhamento do ajuste; uma parte da superestrutura do Estado também se relocalizou e declarou sua fidelidade ao direto democrático de manifestação; a palavra de ordem “Fora Temer!” soou no horário eleitoral gratuito e nas campanhas da esquerda; a legitimidade do governo Temer foi colocada em questão por uma parte importante da imprensa internacional; a ideia de que o Brasil tem um governo ilegítimo parece ter penetrado, pelo menos parcialmente, no imaginário popular, a ponto de que qualquer manifestação pública de repúdio a Temer quase sempre encontra ampla simpatia.
Diante da massificação da luta contra Temer, parece inevitável que o PT entre nas manifestações. Em verdade, já entrou, ainda que timidamente. Não porque queira a volta de Dilma (esta parece ser questão descartada), mas porque deseja capitalizar agora e nas eleições de 2018 o desgaste de um governo que já nasce questionado.
A esquerda socialista não deve temer a entrada do PT nas manifestações. Ao contrário, o PT permanece uma importante força política no país. Se coloca seus meios e sua influência a serviço de uma luta justa, seremos os primeiros a reconhecer-lhe o mérito. Mas não devemos também nos enebriar. Nosso acordo com o PT termina aí: sair às ruas contra Temer. Nada mais. Não desejamos ser os profetas do “neolulismo”. Temos memória, e ela não se apaga porque o PT resolveu aderir a uma causa digna. Ainda que saia às ruas, o PT continuará não sendo uma alternativa. Ao lutar contra Temer, o PT lutará por reeditar seu projeto de colaboração de classes. Lutará para implementar no país um outro ajuste. Mais ameno, mas ainda assim, ajuste. A esquerda socialista, ao contrário, lutará por superar esse projeto, por apresentar à nação um programa de ruptura da ordem, de superação do capitalismo. O único ajuste que a esquerda socialista admite é o ajuste de contas com os exploradores e a direita.
A tarefa da esquerda socialista, em nossa humilde opinião, consiste portanto, e se constituir como um bloco coerente, coeso e determinado dentro deste amplo movimento de luta contra Temer. E isso não apenas durante os protestos. É preciso atuar todos os dias: nos locais de trabalho, estudo e moradia, ligando cada questão concreta à necessidade de derrubar o governo e seu ajuste. O PT tem suas grandes figuras, seus grandes aparatos sindicais e parlamentares. Nós temos um enraizamento social que não deve ser desprezado.
Mas para disputar com o PT, é necessário se organizar já. A esquerda socialista precisa se reunir, debater, organizar sua intervenção nos atos, dividir tarefas e responsabilidades. E o mais importante: precisa começar a produzir um programa para o Brasil. Este programa não pode ser um amontoado de frases palatáveis e lugares-comuns eleitorais. Precisa ser um programa de verdade, um novo projeto de país. Precisa dialogar, mas dizendo a verdade. “Promover o crescimento econômico”? “Fazer o bolo crescer para depois dividir”? “Aliança com os setores progressivos, produtivos e nacionalistas do empresariado”? Discurso fácil. Mas mentiroso. Esta é, exatamente, a receita do fracasso do PT.
Temos todos os motivos do mundo para sermos otimistas. O que vemos no país hoje é alentador. A burguesia ainda detém a iniciativa. Mas a esquerda radical voltou à cena, os viadutos de São Paulo voltaram a tremer. Caminhemos todos juntos. Mas não nos encantemos com a flauta mágica do lulismo. Mais adiante, há uma encruzilhada e seremos forçados a decidir. Como no conto dos irmãos Grimm, ele quer nos afogar no rio. Nós queremos seguir adiante.
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