O Estado e o povo: Considerações sobre o papel da solidariedade na construção das soluções diante da emergência climática


Publicado em: 22 de maio de 2024

Brasil

Por André Simões, de Porto Alegre (RS)

Esquerda Online

Esse post foi criado pelo Esquerda Online.

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O evento climático extremo que assola o Rio Grande do Sul desde fins de abril tem demostrado a urgência de medidas concretas diante das emergência climática. São milhares de pessoas que perderam tudo, suas moradias, seus bens materiais, afetivos, muitos inclusive seus familiares e amigos. Territórios foram devastados, cidades inteiras quase sumiram do mapa. Esta tragédia é resultado do negacionismo climático dos governos que apesar de todos os avisos de pesquisadores e ativistas tem se recusado em agir, e agora se escondem de suas responsabilidades na flexibilização da legislação ambiental e no desmonte dos serviços públicos.

Neste contexto ações e campanhas de solidariedade tem se alastrado por todo Rio Grande do Sul e pelo Brasil. São voluntários que participam de resgates de pessoas e animais atingidos pelas enchentes; outros que atuam em abrigos e cozinhas solidárias; assim como a difusão de campanhas online para arrecadação de donativos. Todas essas ações de solidariedade são muito importante, pois ao mesmo tempo que contribuem para diminuir os impactos da tragédia, proporcionando o mínimo de dignidade para a população atingida, também reafirmam a força da ação comunitária, da auto-organização da classe trabalhadora e a importância do cuidado e da humanização na construção de saídas coletivas. 

Entretanto a realidade de serviços públicos precarizados sob a administração de governos neoliberais, conjugada com a necessidade da ação voluntária, tem ensejado uma disputa narrativa sobre qual é o papel do Estado em tragédias como a que estamos vivendo. A partir do mote de “povo pelo povo” parte da população legitimamente tem criticado a fragilidade do Estado diante de uma catástrofe desta magnitude e valorizado a força da coletividade. Por sua parte a extrema-direita que sempre se caracterizou por sua postura contrária a organização popular, coletiva e solidária dos movimentos sociais, aproveita o momento de crise para sua agenda política e ideológica de alargamento da corrosão social através da divulgação de fake news. Com este objetivo apropriam-se e instrumentalizam o sentido da ideia de “povo pelo povo” para desmoralizar a ação do Estado.

A partir da combinação da disseminação de notícias falsas com apropriação do enunciado “povo pelo povo” ou “civil salva civil”, a extrema-direita sustenta que o Estado não tem agido diante do atual evento climático extremo e, ainda mais, tem impedido que as pessoas “livres”  possam atuar. Foi assim que se massificou a fake news de que havia retenção de veículos nas estradas com donativos para o Rio  Grande do Sul, o que foi rapidamente desmentido

A narrativa construída pela extrema-direita é a partir do diálogo com o senso comum, se opor ao governo federal, em um primeiro momento, mas seu objetivo ideológico mais estratégico é deslegitimar a ação do Estado, e assim, desmoralizar as instituições, os serviços públicos e as empresas estatais com a ideia de que a força da ação individual e do livre mercado se autorregulam e são suficientes para superação da crise. O seu ideal é a luta pela sobrevivência de empreendedores uns contra outros ou a perspectiva miliciana de armamento individual, como já se constata em algumas localidades de Porto Alegre. Esta formula política tem um sentido ideológico alinhado a uma corrente do pensamento ultraliberal de extrema-direita: o “libertarianismo”. Sua principal representação política na América Latina e que influencia a extrema-direita brasileira é o presidente argentino Javier Milei, entretanto suas bases são mais profundas e são em situações de crise que elas são mais intensamente propagandeadas.

No Brasil estas ideias já se manifestaram durante o governo de Jair Bolsonaro, como foi expresso na defesa do homeschooling, no movimento antivacina na pandemia de Covid-19, na defesa do armamento individual ou de uma pretensa “liberdade de expressão” para difusão de barbaridades mentirosas. O conteúdo deste discurso é que o Estado impede a liberdade individual, seja das próprias famílias educarem seus filhos longe das escolas “esquerdistas”; a que o armamento individual é solução para violência social e necessária para defesa da propriedade; ou a liberdade de propagar mentiras diante da “censura” do Estado.

É inegável que a característica do Estado em que vivemos se orienta pela defesa dos interesses da classe dominante e que em geral o Estado se apresenta de maneira bastante insuficiente nos territórios para garantia dos diretos sociais do povo. Entretanto isso é resultado direto do próprio programa defendido pelos setores liberais e de extrema-direita, com sua insistente política de desvalorização dos serviços públicos, privatização das empresas estratégicas e seu negacionismo climático. A própria solução de contratação de consultoria estadunidense,  apresentada por Sebastião Melo (MDB), prefeito de Porto Alegre e pelo governador Eduardo Leite (PSDB) e passa por aprofundar a lógica de segregação e privatização da cidade.

Valorizar a solidariedade ativa, o trabalho coletivo e voluntário deve estar articulado com defesa que as instituições públicas estejam a serviço da maioria do povo trabalhador. É valorizar as universidade públicas como a UFRGS, UFPEL, UFSM que contribuem com suas pesquisas para que a população se informe dos impactos das chuvas e os riscos de inundações e deslizamentos. É defender as empresas públicas, como os Correios que em todo o Brasil  transportam donativos para o Rio Grande do Sul. É prestigiar os servidores do Departamento Municipal de Água e Esgoto (DMAE), da cidade de Porto Alegre que apesar de toda precarização e sucateamento do órgão tem sido fundamentais para que a crise de desabastecimento de água da cidade não seja ainda mais grave. É reconhecer o papel da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) que tem organizado a entrega de alimentos para as cozinhas solidárias em todo o estado, das Forças Armadas e Defesas Civil que auxiliam no resgate de pessoas e animais e do Sistema Único de Saúde com a Força Nacional do SUS e Hospitais de Campanha.

Para a esquerda e os movimentos sociais enunciados como “povo pelo povo” ou “nós por nós” tem por objetivo a valorização da solidariedade ativa da classe trabalhadora como valor humano e da organização coletiva e popular, como alternativa para emancipação humana. Portanto, não é a crítica do Estado em abstrato, mas sim de sua orientação na defesa dos interesses dos capitalistas. 

Diferente do discurso da extrema-direita necessitamos que os instrumentos do Estado, sejam eles as universidades, empresas públicas e instituições, estejam a serviço das demandas da classe trabalhadora, que haja investimentos maciços em pesquisa cientifica, infraestrutura, e proteção ambiental e social e que estejam orientadas pela construção do bem comum, dignidade do povo e a defesa do meio ambiente. A solidariedade ativa manifestada pelos trabalhadores e trabalhadoras nas últimas semanas e auto-organização comunitária devem ser referenciadas como a base e substância do Estado que buscamos construir. Um Estado em que a inteligência coletiva do povo seja colocada em movimento na construção de soluções e onde o sentido humano seja o centro do que move a todos. 


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