Na última semana vivenciamos uma greve dos caminhoneiros de amplo apoio popular que paralisou o país. Apesar de todas as polêmicas que envolvem este fato, uma questão é inegável: a natureza da sua massiva aprovação (estimada pelas pesquisas em 87% da população brasileira) (1) vincula-se ao drástico aumento do custo de vida da classe trabalhadora. Em outras palavras, os trabalhadores não desejam e não conseguem mais pagar a conta da crise. O aumento no preço dos combustíveis se somou a uma política prolongada de arrocho salarial, a elevação da taxa de desemprego, o encarecimento dos bens essenciais de consumo e os cortes drásticos em direitos sociais fundamentais. A exemplo, paralelo ao aumento no preço dos combustíveis, vivenciamos no primeiro trimestre de 2018 dados recordes da “taxa de subutilização da força de trabalho” (trabalhadores desempregados, que desistiram de procurar emprego e que, por conta do trabalho intermitente e vínculos parciais, estão subocupados), alcançando 24,7% da população, num total de 27 milhões de pessoas (2); ou mesmo o aumento acima da inflação de produtos imprescindíveis da cesta básica, como arroz, feijão e leite.
Mas, se a conta pesa e muito aos trabalhadores, o tratamento oferecido ao capital é bem diferente. Falamos assim, da aprovação da PL 4.567/16, que autoriza a exploração do Pré-Sal brasileiro às petrolíferas multinacionais, inviabilizando o uso deste recurso para o financiamento das políticas de educação e saúde; ou a aprovação pela Câmara dos Deputados da “MP do trilhão” (nº 795/2017), que concede isenção fiscal no valor de 1 trilhão de reais à petrolíferas estrangeiras, como a Shell. Para termos uma ideia da transferência dos recursos públicos aos bolsos do capital, apenas no ano de 2017 as renúncias tributárias superaram todas as despesas com saúde, educação e assistência social (3).
E é neste mesmo sentido que seguem as respostas de Temer à greve dos caminhoneiros. Dentre as medidas anunciadas pelo governo federal para solucionar os altos preços dos combustíveis duas nos saltam os olhos: a redução do PIS e do COFINS do valor da gasolina e óleo diesel; e o corte no orçamento das políticas de saúde, educação, juventude e mulheres. Primeiro, falamos aqui de dois tributos previstos na Constituição Federal e essenciais para o financiamento das políticas sociais: o Programa de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP) e a Contribuição para Financiamento da Seguridade Social (COFINS). Os recursos do PIS/PASEP são destinados principalmente a políticas voltadas aos trabalhadores públicos e privados, como o financiamento do seguro-desemprego, abono e participação na receita dos órgãos e entidades de proteção social. Já os recursos da COFINS vinculam-se à Seguridade: Previdência, Assistência Social e, principalmente, ao financiamento da política de Saúde.
Além desta medida, foram noticiados nesta quinta-feira (31/05) novos ataques: o corte de R$ 55,1 milhões do repasse ao “Programa de Estímulo à Reestruturação e ao Fortalecimento das Instituições de Ensino Superior” (PROIES); a retirada de R$ 135 milhões do SUS e o enxugamento no orçamento das políticas voltadas a juventude, repressão e prevenção ao tráfico de drogas e enfrentamento à violência contra a mulher.
Ou seja, com intuito de resolver a curto prazo a reivindicação dos caminhoneiros, Temer aprofunda a sua política de desoneração tributária a grandes empresas e acelera o ajuste fiscal sobre ações fundamentais à sobrevivência dos trabalhadores. No caso específico da saúde, além dos cortes orçamentários o impacto também será ampliado por uma redução na arrecadação, dado que o COFINS é um recurso importante e a diminuição do seu repasse se soma ao já subfinanciamento crônico vivenciado na área (4).
Vale ressaltar que o subfinanciamento da saúde não é uma novidade do governo Temer, ato que se constitui de modo latente a partir da gestão FHC com a Desvinculação das Receitas da União (DRU) e se manteve em mesmo ritmo e intensidade com os governos Lula e Dilma. A exemplo, a aplicação da receita corrente bruta da União de 11,72% em 1995 passou para 6,93% em 2012, e 4,14% em 2017. E, se formos considerar apenas o ano de 2015, os cortes anunciados pelo governo Dilma já se aproximavam dos 12,8 bilhões (10,8% do orçamento previsto para o ano). Tal contingenciamento se reflete em igual maneira na redução do valor per capita com a saúde. Para Cislaghi (2015), “apesar de termos, em tese, um sistema de acesso universal para a população, nosso gasto público per capita por ano é de baixíssimos U$ 335 enquanto nossos vizinhos argentinos gastam U$ 485 e o Reino Unido U$ 3,4 mil”(5). Tomando por referência dados da OMS de 2016 e 2017, a parcela do orçamento federal do Brasil destinada à saúde era menor do que a média dos países africanos (10,6%) e mundial (11,7%) (6).
Neste contexto, a Emenda Constitucional nº55 apenas vem solapar a viabilidade de um sistema de saúde público e universal. O congelamento para os próximos 20 anos do financiamento do SUS a valores fixados em 2016 prevê uma perda acumulada de aproximadamente R$ 1 trilhão, cuja regra é: quanto melhor for o desempenho da economia, maior será a perda para a saúde. Ainda que o governo esteja apontando uma fuga ágil à crise instaurada, o que vislumbramos do outro lado é uma política genocida a curto e médio prazo, em um país onde 70% da sua população depende exclusivamente do acesso público à saúde (7).
Num cenário desastroso como este, não há dúvidas: a saída está nas ruas e na luta de classes! A greve dos caminhoneiros, ainda que com forte disputa dos setores da direita, abriu no cenário a possibilidade da construção de um dia nacional de lutas rumo a uma nova greve geral, desperdiçada covardemente pelas centrais sindicais. No lugar da ofensiva de massas, a CUT e a Força Sindical, acompanhada por centrais menores como a UGT, optaram por declarações conciliatórias e saídas burocráticas. Entretanto, a única lição que esta conjuntura nos apresenta é a da necessidade urgente da defesa do patrimônio nacional e dos direitos sociais, no que se destaca a saúde e educação, como condição de sobrevivência aos trabalhadores.
Foto: Protesto contra o governo Temer no Rio de Janeiro. Fernando Frazão/ Agência Brasil
NOTAS
1 – Cf. GIELOW, Igor. Apoio à paralisação é de 87% dos brasileiros, diz Datafolha. Folha de São Paulo, São Paulo, 29 maio. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/apoio-a-paralisacao-e-de-87-dos-brasileiros-diz-datafolha.shtml>. Acesso em 31 maio. 2018.
2 – Dados da Pnad/IBGE. Cf. PAMPLONA, Nicola. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 maio. 2018. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/05/falta-trabalho-para-277-milhoes-de-pessoas-diz-ibge.shtml>. Acesso em 31 maio. 2018.
3 – MARTELLO, Alexandre. Renúncia fiscal soma R$ 400 bi em 2017 e supera gastos com saúde e educação. G1, Brasília, 03 de Set. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/renuncia-fiscal-soma-r-400-bi-em-2017-e-supera-gastos-com-saude-e-educacao.ghtml>. Acesso em 31 maio. 2018.
4 – Cf. BETIM, Felipe. Cortes em saúde e educação ajudarão a pagar diesel mais barato para caminhoneiros. El País, São Paulo, 31 maio. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/05/31/politica/1527790717_851019.html>. Acesso em 31 maio. 2018.
5 – CISLAGHI, Juliana Fiuza. Agenda Brasil promove o fim do Sistema Único de Saúde [2015]. Disponível em: <http://blogjunho.com.br/agenda-brasil-promove-o-fim-do-sistema-unico-de-saude/>. Acesso em: 31 maio. 2018.
6 – PREITE, W. S. Brasil é o único país em que a União gasta menos com saúde do que convênios. IG, São Paulo, 10 de out. 2014. Disponível em: <http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/2014-10-02/brasil-e-o-unico-pais-em-que-uniao-gasta-menos-em-saude-do-que-convenios.html>. Acesso em 31 maio. 2018.
7 – VIEIRA, F. S; BENEVIDES, R. P. S. Os impactos do novo regime fiscal para o financiamento do Sistema Único de Saúde e para a efetivação do direito à saúde no Brasil. Nota Técnica IPEA nº28. Brasília: IPEA, 2016.
* Morena Marques é professora da Escola de Serviço Social da UniRio
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