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BRASIL

Dia da Luta Antimanicomial: os novos alvos

Por Mariana Pércia, do Rio de Janeiro, RJ

Hoje, dia 18 de maio, em vários serviços de saúde, há uma série de atividades para discutir a importância dessa data enquanto um dia por conquistas em relação à luta antimanicomial. Sempre fui uma defensora dessa luta, e sempre quando estudava sobre as bizarrices que aconteciam no passado, me parecia uma coisa muito distante e muito óbvia que aquelas práticas estavam erradas. Mas acho que essa obviedade exige distância histórica para ser enxergada. Digo isso porque a todo momento podemos ver o manicômio ser reinventado. De várias maneiras. O manicômio-aprisionamento está incrustado no sistema capitalista como “solução” de problemas sociais causados pelo próprio sistema econômico. E está incrustado em nossa formação nos cursos de saúde também.

Por que digo isso? Porque hoje parece óbvio o quanto era absurda a prática manicomial e tudo que estava impregnado nela: encarceramento em massa da população com alguma demanda de saúde mental, lobotomia, choque elétrico para fins de “diminuir agressividade”, choque insulinico, isolamento social dos pacientes e sua estereotipação, entre outras coisas.

Parece óbvio o absurdo, em especial para quem acompanha a vida e luta dos profissionais que batalharam contra essas práticas. Porque fica parecendo que tudo era como um bem x mau, humano x desumano. E mesmo que no fundo as coisas tenham uma verdade, elas não são mostradas assim naquele momento. As práticas manicomiais eram apresentadas como “salvação” àquela população, como medida “protetiva” a quem não tinha transtornos mentais, como forma de “recuperar” aquelas pessoas. Qualquer semelhança com o discurso das prisões em massa não é mera coincidência) Foi sob muita luta de muitos profissionais que se fez enxergar o óbvio.

E hoje? Quem são as novas vítimas dessa lógica manicomial? Na minha opinião, e tem ficado mais óbvio para mim durante a curta experiência no Consultório na Rua, são os usuários de drogas, associados a uma clara política de criminalização da pobreza. Quando a política da “abordagem e assistência” no Rio de Janeiro se depara nas ruas com esses dois elementos de maneira conjunta, começa o “vale-tudo”. E não duvido que seja igual nos outros estados.

Já tinha escutado e me deparado com muitas situações desse tipo, mas hoje no grupo foi onde mais pude ouvir.

Relatos de espancamento aos pacientes, simplesmente por eles estarem sem documentos na rua, ou estarem fazendo uso de alguma substância. Relatos de perseguição, assédio constante, racismo institucional, do mais institucional possível. Relatos de abrigos tão insalubres e de uma política de abrigamento que faz com que muitos usuários realmente prefiram seu cantinho na rua. Relatos de ações de “limpeza” (esse é o nome oficial dado às ações da Prefeitura), onde são jogados fora os poucos pedaços de papelão que são, tristemente, a casa dessas pessoas. Jogam fora medicações, e o que estiver pela frente. Relatos para mim óbvios de criminalização da pobreza. Essas pessoas são levadas às delegacias por nada, a prisões por nada, a abrigos insalubres todos os dias.

A situação tem piorado com a crise econômica. Sem dúvida, os abrigos que são bons estão cada vez mais reduzidos. Os Centro de Atenção PsicoSocial (CAPS) cada vez mais escassos e sem recursos, os demais aparelhos de redução de danos, como consultórios na Rua, sendo reduzidos por corte de verbas ou com profissionais desestimulados pela falta de recursos e muitas vezes de pagamento.

Acrescido a isso as garras do manicômio crescem com as políticas pós-golpe, à medida em que se passa a investir dinheiro público oficialmente em “comunidades terapêuticas” de cunho religioso e privadas e desinvestir em CAPS, à medida que cresce a criminalização da pobreza.

Na atividade de hoje os pacientes sabiam que era sobre a luta antimanicomial e em menos de dez minutos de início da atividade estavam relacionando essa luta à luta contra o racismo, a intervenção, a “abordagem” truculenta. A última coisa que eles falaram foi sobre os manicômios antigos de fato, pois foi na realidade do dia a dia que eles perceberam que todas essas ações atuais também são para isolá-los da sociedade. E sempre, sempre, sob o pretexto da recuperação.

No meio da atividade um de nossos pacientes falou “o manicômio é uma máquina de produzir loucos, que nem a prisão é máquina de produzir bandidos, mas a máquina é só para pobre. Eu estive em Benfica com Sérgio Cabral e via que ele não comia o mesmo que a gente, nem andava no mesmo pátio. Ali é só teatro, é feita mesmo pra gente”.

Dito assim, parece óbvio, mas não é.

Parabéns a todas e todos os profissionais que fazem da luta antimanicomial seu dia a dia.

*Mariana é médica do Consultório na Rua