A estudante de Artes Visuais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Matheusa Passareli, foi desaparecida na madrugada do dia 29 de abril, no bairro do Encantado, na Zona Norte do Rio de Janeiro, após uma festa de aniversário da qual participava.
Theusinha, como também era chamada pelas mais íntimas, era filha de um despachante de ônibus e de uma frentista. Semanas antes do desaparecimento, Matheusa havia sido selecionada para um curso de artes visuais no Parque Lage. Seu portfólio foi escolhido entre outros 150.
Matheusa foi interrompida. Seu corpo provavelmente foi incinerado. Seus familiares e amigos nunca poderão velar seu corpo. As notícias, de acordo com informações coletadas pela investigação inicial da polícia, afirmam que Matheusa, antes de ser executada, foi julgada pelos traficantes do morro do Dezoito.
Matheusa era não-binária, ou seja, não se enquadrava na construção social imposta às mulheres e aos homens, nessa dualidade binária que é uma das bases para cultura da nossa sociedade. Matheusa se recusava em ser padronizada pelas imposições virulentas da sociedade.
As notícias dizem que, por estar “transtornada”, não pôde se defender. Não conseguiu explicar o motivo de estar nua na rua, andando pelo morro.
Mesmo agora, depois de morta e sem poder se defender, tem a sua identidade de gênero não binária não respeitada, o nome de MATHEUSA é tratado como um apelido, é tratado como algo estranho, anormal. Matheusa continua no banco dos réus da sociedade conservadora.
Ao ouvir as matérias, a primeira coisa que veio à minha mente é que esse julgamento não acabou e não foram os traficantes que o iniciaram.
Estava em surto? Estava drogada? Por que estava nua? Não conseguiu se defender, por isso foi morta? O julgamento dos corpos que não se enquadram na lógica opressora dos papéis de gênero são cotidianamente julgados e condenados.
O julgamento é eterno. Isso trancafia em armários milhões de pessoas e tantas outras são consideradas anormais, não naturais, excrescências da sociedade. O dia a dia das ações mais banais, como ir a um banheiro ou andar por uma calçada, são convertidos em momentos de estresse intenso.
Estamos morrendo, seja assassinadas, seja acometidas por profundos problemas de saúde mental.
Vivemos momentos de profunda contradição. Estamos nas propagandas de TV, nas novelas, nos filmes. Somos visíveis.
Contudo, a visibilidade não é e nem nunca foi garantia de direitos. Ao mesmo tempo em que nos vêem, nos rejeitam. O corpo LGBT que é aceito na sociedade é o branco, do Sudeste, com renda alta e binário. Quem nunca leu um “não curto afeminados”?
Os corpos em trânsito, livres dos limites rígidos da imposição binária dos gêneros; os corpos LGBTs negros, favelados, empobrecidos são sempre negados. O ato de ser exatamente aquilo que somos é, por si só, um ato político. Mas esse ato por si só não nos garante a vida. Somente seremos livres quando libertarmos a humanidade desse sistema de exploração e opressões.
Matheusa estava nua e, pelas regras da sociedade, fora posta vulnerável. Quantas de nós somos impossibilitadas de nos defender em nossos julgamentos diários? “Seja homem”, “puta”, “fala grosso”, “vadia”, “anda direito”, “fala baixo”, “escuta”, “você não está entendendo”, “olha a postura”, “vira homem, porra”…
O julgamento de Matheusa não foi iniciado no morro do Dezoito e ainda não acabou.
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