Por: Michelangelo Torres, professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.
Por que fazemos análise de conjuntura?
É fundamental se refletir sobre a realidade que nos cerca. Mas como percebeu Marx1 em meados do século XIX, a realidade não é passível de ser apreendida mecanicamente ou a partir da primeira percepção espontânea que temos ao tomar contato com algo dado. O que equivale a dizer que ciência (que mobiliza determinados instrumentais científicos de análise) e aparência (expressão fenomênica) não se confundem, indicando que algo diferente acontece por trás da aparência superficial do modo como a política se apresenta nas relações imediatas.
Em política, é imperioso distinguir o que é historicamente progressivo do que é regressivo. Mas o critério para uma análise de conjuntura não é a subjetividade do investigador, seus desejos e vontades políticas; antes disso, o melhor critério é a objetividade, a análise concreta da realidade e da correlação de forças entre os setores em disputa. Diferentemente, na luta cotidiana, no plano política e da ação, mobilizamos a vontade, o desejo, a força e a subjetividade.
Mas antecedendo a ação consciente, é necessário a análise concreta da realidade. Não podemos confundir essas duas dimensões. O rigor científico da análise deve estar acima das preferências políticas do pesquisador/analista. O compromisso com a transformação da ordem societal não requer o uso de leituras “facilistas” da história ou mecanicistas da realidade. O exercício de análise de conjuntura remete, portanto, ao plano da honestidade intelectual, e não ao malabarismo teórico-analítico para se justificar uma visão de mundo prévia – por mais justa que possa ser. Dito de outro modo, a análise de conjuntura não pode estar a serviço de nossas preferências políticas ou de nossas organizações.
Devemos caracterizar os principais elementos da realidade e analisar o quadro e correlação de forças conflitivas. Assim, a análise pode orientar a ação e qualificar nossa intervenção na realidade. É para isso que o movimento sindical e as organizações políticas fazem análise de conjuntura: para intervir conscientemente na realidade social, com clareza estratégica, elaboração de política, formas de mobilização e definição de táticas de atuação. Afinal a história é dinâmica e constitui um campo aberto de possibilidades.
Caracterizar atores e projetos ideopolíticos não é secundário. Analisar acontecimentos, cenários, atores, relações de forças, articulação entre elementos estruturais e conjuntura são elementos centrais. Projetar cenários é importante. Por isso o movimento sindical deve realizar periodicamente este exercício crítico. Conhecer a si mesmo, o cenário em que se luta; saber contra quem se luta, e com quem se pode lutar. Este é um importante aprendizado da sabedoria popular japonesa. Não temos espaço, neste artigo, de explicar a metodologia mobilizada por Lenin, na esteira de Marx, acerca das caracterizações finas sobre época, etapa, situação e conjuntura da luta de classes, sempre em articulação entre realidade local-nacional-mundial. A seguir, indicaremos tão somente alguns elementos da situação e da conjuntura nacional neste início de 2018.
O caráter regressivo do (des)governo Temer
Se mirarmos o sistema mundial de Estados, a ofensiva do sistema do capital em todas as partes do mundo reforça a hipótese de um período de contrarrevolução burguesa de amplitude global, com processo de expansão das direitas (governos e ideologias como força social, de clivagem liberal ao gradiente de extrema-direita e, em alguns casos, protofascista), seja nos planos de austeridade e ajuste fiscal, quanto no projeto do imperialismo de recolonização de países semiperiféricos, como é o caso regional da América Latina. No Brasil, o ano de 2018 se inicia com sensação de turbulência nas alturas. Não era para pouco. O ano de 2017 representou um pesadelo para a democracia, os direitos sociais e os trabalhadores no Brasil. A situação desfavorável para os trabalhadores remete a situação político-social regressiva que adentramos nos últimos dois anos.
Nos últimos anos, a realidade brasileira presenciou transformações significativas. Em 2018, estamos diante de uma nova fase do golpe parlamentar, iniciado com o impeachment de Dilma. Desde então, vivenciamos uma ofensiva reacionária de setores orgânicos da classe dominante que usurparam o poder do Estado a fim de oferecer uma saída reacionária para a crise: recuperar a taxa de lucro dos capitais via o aniquilamento da legislação protetora do trabalho e o desmonte das conquistas democráticas.
O projeto em curso, de caráter golpista, materializado na PEC dos gastos (PEC 55), na proposta em tramitação da Reforma da Previdência, na Reforma Trabalhista (e medidas correlatas como a regulamentação do trabalho intermitente) e na Lei da Terceirização Irrestrita (PL 4302), dentre tantas outras medidas, constituem mudanças qualitativas e sem precedentes. Temer – com a contribuição dos pantanosos Congresso Nacional e o Senado – vilipendiou e destroçou a CLT. O PLS 116/2017 que ameaça a estabilidade no serviço público, a Emenda Constitucional 95/2016 e seus impactos, as distintas formas de tramitação do Programa Escola sem Partido, a imposição da Reforma do Ensino Médio, os cortes orçamentários em Pesquisa e Educação e nos Institutos Federais, as incursões da Justiça e da PF contra universidades e Institutos Federais, o anúncio de Plano de Demissão Voluntária (PDV) e incentivo ao afastamento não-remunerado, dentre tantas medidas de desmonte da educação, do funcionalismo e do serviço público.
O ataque agora é destinado a aposentadoria dos trabalhadores via Reforma da Previdência. Tenhamos claro em qualquer análise: o (des)governo Temer é um governo terceirizado, ilegítimo, sem nenhum apoio popular. Apenas tem compromisso em aprovar a agenda neoliberal e reacionária do mercado sinalizando para o ajuste fiscal (contrarreformas) e acirrar o entreguismo das riquezas nacionais para o capital privado em escala acelerada. Independente da crise política e das inúmeras denúncias contra o atual presidente, enquanto prosseguir com este projeto encontrará apoio de base parlamentar, empresarial e, em grande medida, midiática.
A manipulação comercial da mídia reforça cotidianamente uma imagem negativa de Lula/PT ou qualquer ideário identificado pelas massas como de “esquerda”, blindando as nefastas ações regressivas de Temer, e também dos governos tucanos, no tocante às reformas e ao enxugamento do Estado2. O projeto do governo Temer é, portanto, devastar os direitos sociais (inclusive o regime de Previdência atual) e a legislação social protetora do trabalho. Mas tenhamos claro que seu alvo fundamental é o funcionalismo público, apresentado pela mídia golpista como um setor detentor de “privilégios” e corroído pela “ociosidade”.
O cenário é devastador. Vejamos apenas alguns indicadores. Os índices de formalização do mercado de trabalho despencaram nos últimos dois anos e assumem “queda livre” com a reforma trabalhista em vigor. O trabalho intermitente e as formas flexíveis de contratação estão deixando de ser “atípicas” para se tornarem padrão. Segundo a ONU, 2016-1017 representou o aumento de brasileiros abaixo da linha da pobreza, expulsos do mercado formal pelo desemprego.
No ano passado, Temer cortou o maior número de acesso de famílias ao programa Bolsa Família desde a sua criação. O reajuste do salário mínimo de 2018 foi o mais vergonhoso dos últimos anos. Recentemente, na esfera da Educação, o MEC reduziu pela metade a verba destinada para execução de investimento das 63 universidades federais do Brasil, deixando um futuro incerto para estas instituições de ensino e seus servidores. No início deste mês, Temer impôs o Decreto n.9.262/2018, pretendendo extinguir mais de 60 mil cargos do serviço público federal (destes, mais de dois mil são do PCCTAE3), ao mesmo tempo que proíbe a abertura de concurso público e o provimento de vagas adicionais a diversos cargos (58 deles são do PCCTAE)4. A acirrada pelo desmonte do serviço público não cessa.
O julgamento de Lula e a Operação Lava-Jato
O judiciário, no Brasil, tem operado uma escalada reacionária e desdobrado ações politicamente preventivas (muitas delas arbitrárias). Seu protagonismo político vem ganhando destaque e pretende reforçar a ideia comum de que, diante de crise do parlamento e do executivo (e seus escândalos de desvios e corrupção), a saída para combater a corrupção é a “judicialização da competência técnica” de juízes “apolíticos”, apresentados midiaticamente como heróis nacionais. Contudo, é preciso se enfatizar que, no Brasil, o judiciário é o mais antidemocrático dos três poderes.
Setores do poder judiciário (dialética ente politização do judiciário e judicialização da política) encampam uma ofensiva reacionária contra as liberdades democráticas e tudo o que possa simbolizar a “esquerda” no país. Por isso a operação Lava-Jato tem um profundo caráter político, tendo desde sua origem um signo reacionário e alinhado aos interesses estratégicos do capital financeiro internacional. Ataque às liberdades democráticas, retirada de direitos, condenação sem provas, anulação da presunção da inocência, conduções coercitivas de caráter seletivo e arbitrário; enfim, uma escalada reacionária de ataques à democracia que abarca medidas nada progressistas.
A inconsistência de fundamentos jurídicos e de materialidade de provas condenatórias do ex-presidente petista Lula da Silva, particularmente no caso do Triplex, gerou escândalo internacional. Contudo, já era esperado que o TRF-4, assim como sua condenação, em 2017, em primeira instância pelo juiz Sergio Moro, seguissem um script: barrar Lula da disputa eleitoral nas próximas eleições presidenciais. Trata-se de uma nova fase, um desdobramento jurídico (manobra política) do golpe parlamentar.
A novidade do julgamento de segunda instância esteve em elevar a pena de Lula. Poucos dias depois o ex-presidente teve seu passaporte apreendido por outra determinação judicial. É bom lembrar que estão sob controle de Moro, “o xerife de Curitiba”, outras ações contra o dirigente petista em tramitação. O intuito tem sido barrar qualquer possibilidade de ganho eleitoral que não seja a candidatura que o núcleo duro do marcado financeiro e do grande capital projetar para 2018 (e é preciso lembrar aos impressionistas mais apressados que este projeto não passa por apoio a Bolsonaro5).
De tal modo, a condenação de Lula coloca a conjuntura política em novo patamar. Os setores dominantes que usurparam o comando do Estado mediante o golpe parlamentar de 2015 deverão impor formas autoritárias de endurecimento do regime com discurso de manutenção da institucionalidade e do “combate a corrupção” e aos “desvios da ordem”, investindo em favor da criminalização dos movimentos sociais e populares6.
Antes do último dia 24 (julgamento em segunda instância de Lula) a direção do PT poderia ter deslocado o foco exclusivo das eleições presidenciais e batalhado para uma greve geral no país contra o golpe e as reformas do governo Temer, em defesa da democracia. Mas, a meu ver, nada disso está no horizonte da direção lulo-petista. O foco é eleitoral, estritamente.
Acertou a parcela da esquerda que se posicionou em favor do direito democrático de Lula a concorrer ao pleito eleitoral. Uma coisa é defender o direito democrático de Lula/PT se candidatar às eleições sem intervenção arbitrária do judiciário, outra coisa muito distinta é apoia-lo politicamente e a seu projeto político de conciliação de classes. Insisto, são duas coisas distintas. Explico-me. Eu posso estar a favor do direito democrático do PT lançar Lula como candidato, mas não pretendo votar no PT e nem compactuar com seu programa de conciliação de classes e de alianças orgânicas com a direita (incluindo uma parcela golpista). A direita não pode determinar quem serão os candidatos presidenciáveis com base em seus próprios interesses.
A pergunta que cabe é: a direção do PT irá questionar a legalidade institucional por meio da desobediência civil, mantendo Lula como candidato? Convocará unidade dos trabalhadores pela greve geral para barrar a Reforma da Previdência e revogar as demais medidas do governo ilegítimo? Neste ponto, não bastam discursos vagos e abstratos, mas peso político efetivo a ser levado a cabo pelo PT, pela CUT e seus aliados, em unidade com o conjunto do movimento sindical (heterogêneo).
Apesar de tais exigências, alerto para que não caiamos no canto da sereia da direção do PT7, que quer transformar a tímida campanha de unidade de ação em defesa da democracia em apoio político a plataforma de eleger Lula (ou seu substituto) em 2018.
Ao mesmo tempo, o PT não é sequer capaz de fazer sua autocrítica. Esteve a frente de um governo de coalisão (que pode ser identificado por um Governo de Frente Popular em associação-dependência do grande capital) por 13 anos e ainda tenta conciliar o inconciliável. A direção petista (e seu projeto de poder) insiste com a mesma política, o mesmo programa e as mesmas alianças/composição para 2018. Em nossa opinião, não é possível “empurrar sua direção à esquerda”, como pretende a narrativa de algumas de suas correntes internas. Apesar das evidentes e monumentais diferenças entre governo Temer e governos do PT, seu projeto não é barrar a agenda das reformas de Temer, pelo contrário. Não esqueçamos que a ilusão é a rainha das decepções, já dizia um ditado popular antigo.
As tarefas concretas dos trabalhadores organizados
Há uma correlação social de forças desfavorável à classe trabalhadora. A situação é dificílima. O movimento sindical encontra-se na luta contra a retirada de direitos, e não pela ampliação de direitos. As recentes greves sinalizam nesse sentido. Mesmo as classes dominantes estão diante de um desafio. Dar continuidade ao pleito eleitoral sem Lula (que estará nos bastidores da campanha do PT ou, em um cenário mais difícil, em regime prisional) e apresentar eleitoralmente uma alternativa à extrema-direita, cujo apoio popular tem se expandido, que sinalize estabilidade para o mercado ou, em um cenário ainda mais preocupante, pressionar pela interrupção das eleições (hipótese menos provável, embora não descartável). O que resta aos trabalhadores?
No plano das tarefas concretas, é preciso barrar a proposta de Reforma da Previdência. Para tanto, temos insistido ao longo de todo ano de 2017 que é necessário construir a mais ampla unidade de ação contra as reformas e os ataques deste governo terceirizado e ilegítimo. Neste campo, são bem-vindas quaisquer diferenças político-ideológicas. Os trabalhadores e as organizações devem marchar juntos nessa seara. Por isso as lutas sindicais e dos movimentos populares assumem importância estratégica. A aposta na construção de uma forte greve geral é a saída imperiosa para o protagonismo da classe trabalhadora, independente das direções majoritárias (e seu enorme peso decisivo) serem favoráveis ou não.
Mas aqui, abro uma polêmica fraterna com muita gente amiga. Ao mesmo tempo que devemos fortalecer a unidade de ação contra as reformas (e barrar a Reforma da Previdência é urgente), é preciso que a esquerda construa urgentemente uma alternativa à direita e ao petismo (sem o sectarismo do discurso antipetista que flerta com a direita). É preciso disputar política e ideologicamente todos os espaços. Das ruas às urnas. Insisto, façamos o esforço de toda unidade de ação contra a reforma da previdência.
É preciso toda unidade nas ruas contra as reformas e os ataques reacionários de Temer e dos governos contra as liberdades democráticas, ao mesmo tempo que fazer a crítica madura necessária aos 13 anos de governo de colaboração de classes do PT. Sem sectarismo e sem oportunismo. Combinemos firmeza estratégica e flexibilidade tática. Talvez a Frente de Esquerda Socialista possa ser um caminho, um polo de aglutinação da construção de um programa mínimo para os trabalhadores saírem da crise. Sem alianças espúrias com partidos de direita, nem com o grande empresariado. Extrair as lições do presente e preparar o caminho para o futuro que nos espera. Há esperança!
1 “Toda ciência seria supérflua se a aparência e a essência das coisas se confundissem.” MARX, K; ENGELS, F. História; FERNANDES, Florestan (org.), São Paulo: Ática, 1983.
2 Importante observar que setores das classes dominantes e de partidos tradicionais não apoiam propriamente o governo Temer de conjunto, mas sua agenda de reformas pró-mercado. Ou seja, há conflito político entre os setores dominantes, mas consenso em torno do programa econômico.
3 PPCTAE (Plano de Carreira dos Cargos Técnico-Administrativos em Educação).
4 Cargos comissionados e funções gratificadas ligadas diretamente ao governo permanecem intocáveis, bem como os altos rendimentos de parlamentares e membros do judiciário.
5 Apesar do fenômeno apresentado pelas pesquisas de opinião pública de intenções de voto ao reacionário e protofascista, Deputado e pré-candidato, Jair Bolsonaro (que está a dezenas de mandatos consecutivos no parlamento), arriscamos dizer que sua candidatura bizarra não emplacará a partir do momento em que as classes dominantes definirem quais serão as candidaturas tradicionais da direita conservadora encampadas pelo mercado. Contudo, o perigo da ofensiva reacionária em termos ideológicos permanece, é assustadora e precisa ser combatida politicamente.
6 Sob esse aspecto, é preciso lembrar, os dispositivos autoritários contra os movimentos sociais recentemente acionados se apoiam em medidas preventivas acionadas pelo próprio governo petista de Dilma Rousseff, como o resgate da Lei de Segurança Nacional oriundo da ditadura militar, a portaria de Operações da garantia da Lei e da Ordem, bem como a Lei Antiterrorismo.
7 Importante esclarecer que há dissenção evidente no interior do PT. O partido é composto por inúmeras correntes e por uma ampla base social. As críticas a seguir se destinam, sobretudo, a sua direção, a linha política geral do partido e seu programa de colaboração de classes.
Foto: Bruna Piazzi | Esquerda Online
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