Por: Mariana Pércia*, de Maceió, AL
*médica e militante do MAIS
Antes de iniciar essa discussão, observe esses dois mapas e pare para pensar. O mapa da esquerda se refere às legislações relativas à criminalização ou não do aborto no mundo, o mapa da direita se refere à divisão internacional entre países desenvolvidos e subdesenvolvidos. Agora pense, por que a grande maioria das mulheres europeias, estadunidenses, canadenses, australianas pode abortar e reger sob seu próprio corpo e a maioria das africanas e latino-americanas não podem?
Abro esse texto com esses mapas para dar, desde o início, o viés que gostaria nessa discussão: as leis são moldáveis aos interesses socioeconômicos de cada país e o direito das mulheres é enxergado como mais um interesse, ou não, desses países. Nos países subdesenvolvidos e que ocupam um papel na produção de “mão de obra barata” há um rígido controle sobre a natalidade com leis proibitivas do aborto, já nos países que pós-reestruturação produtiva não cumprem mais centralmente esse papel, não. Perceber que os mapas praticamente coincidem não é qualquer indício. Não à toa o movimento de mulheres, desde 1999, no 5º Encontro Feminista Latino-Americano e Caribenho instituiu o dia 28 de setembro como Dia Latino-Americano e Caribenho pela Descriminalização do Aborto.
É claro que a legalização do aborto nos países desenvolvidos também foi fruto da luta das mulheres, o status quo “natural” de nosso sistema é o controle da maternidade, de nossos corpos, de nossa sexualidade, de nossa monogamia, e a força do movimento de mulheres e do movimento de trabalhadores nesses países foi em geral decisivo. Não à toa, o primeiro dos países a ter em sua legislação essa conquista foi a Rússia em 1917 diante da Revolução Socialista.
Por outro lado, existir mais abertura ao debate nesses países e menos nos países subdesenvolvidos é também parte de uma escolha sobre qual papel social as mulheres cumprem em cada um desses lugares. Observe que, por exemplo, na China, apesar de ainda se encontrar no limite dos países subdesenvolvidos, existe uma política oposta do Estado, a de praticamente forçar mulheres a abortarem devido à superpopulação no país, o que também deve ser uma prática repreendida por nós.
Por outro lado, o Uruguai e a África do Sul permitiram o aborto recentemente. Ou seja, não há uma equação simples onde as peças do tabuleiro mundial já estão montadas e não se moverão, isso depende da força das mobilizações sociais, da correlação de forças entre movimento e forças reacionárias, da situação econômica, entre outras variantes. Mas entender que a criminalização do aborto, no sentido do controle até da natalidade da população, assim como uma série de outras bandeiras democráticas, ocupa um papel de manter esses países como subcolônias, é entender também a importância dessas bandeiras para esses países.
Como mostrado em diversas pesquisas, sendo a mais recente e completa delas a Pesquisa Nacional do Aborto (PNA – 2016), o aborto é uma prática cotidiana na vida das mulheres, a legalidade ou ilegalidade não tem muita interferência sobre a decisão dessas mulheres, tem interferência sobre as consequências para a saúde delas. Hoje, a cada minuto uma mulher aborta em nosso país, sendo cerca de meio milhão de mulheres por ano. Ao todo, 48% dessas mulheres vão parar no hospital devido a abortamentos inseguros.
O abortamento inseguro provoca 602 internações diárias por infecção, 25% dos casos de esterilidade e 9% dos óbitos maternos, sendo a terceira causa de mortes maternas no Brasil. Acontece cerca de uma morte a cada 11 minutos por abortamento inseguro. No mundo são realizados cerca de cinco milhões de abortos ao ano, sendo 97% em países onde o aborto é ilegal. Se consideradas as negras e pardas juntas, elas realizam cerca de três vezes mais abortos que as mulheres brancas, morrem ou sofrem sequelas três vezes mais também.
Estamos num momento em nosso país onde se apropriar, ter posicionamento e se mobilizar por esse debate é essencial. Em março desse ano, O PSOL protocolou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 442, na qual querem que o STF considere inconstitucionais dois artigos do Código Penal, números 124 e 126, garantindo, assim, que mulheres que façam a interrupção da gravidez até a sua 12ª semana não sejam consideradas criminosas. Isso seria um grande avanço.
Em retaliação à ADPF, os setores mais reacionários de nosso país, que também são sustentáculos do golpe, como o próprio Temer, Eduardo Cunha, Marco Feliciano e Jair Bolsonaro mexeram os pauzinhos para desenterrar o debate no Congresso Nacional sobre o Estatuto do Nascituro, que retrocede em casos de aborto por estupro, e no Senado sobre a PEC 181/15, que visa declarar proteção à vida desde a concepção. Bolsonaro e Feliciano chegaram a se declarar contra o aborto, inclusive nos casos permitidos constitucionalmente em nosso país: abortos em gestações decorrentes de estupro, em fetos anencefálos e em caso de risco de vida da mãe. Bolsonaro afirmou em discussão que “não foi a sociedade que comeu aquela mulher”, se referindo ao caso de uma jovem que morreu numa clínica clandestina de aborto.
Bolsonaro e os setores que ele mobiliza representam o atraso, a hipocrisia, o controle sobre a vida das mulheres. São os mesmos setores que defendem “a vida”, no caso do embrião, defendem a pena de morte e a redução da maioridade penal e são também setores envolvidos até o fundo com a corrupção desenfreada que rouba dinheiro de escolas e hospitais e impedem não só uma educação de qualidade, incluindo educação sexual nisso, como assistência de qualidade. Esses setores são inimigos absolutos da luta das mulheres e de todos os oprimidos e oprimidas.
É preciso estarmos atentos e bem fundamentados quanto à defesa da descriminalização e da legalização do aborto em nosso país. Por isso, vamos um a um desmistificar e rebater argumentos usados constantemente nas discussões:
1- O direito à vida do embrião
Em geral, quando vamos discutir sobre esse tema com as pessoas, a primeira argumentação que vem é sobre o direito à vida. É preciso dizer que a definição de vida é biológica, mas é também filosófica e que não há em nossa legislação uma definição “certa”, o que há é a definição de morte cerebral, para que haja autorização de, por exemplo, transplante de órgãos, se o protocolo de morte cerebral for estabelecido confirmando a morte do tronco encefálico. Mesmo que os demais órgãos ainda se mantenham em funcionamento por um tempo, ou com auxilio de aparelhos, o indivíduo é considerado morto. Seguindo esse pressuposto, a definição para a vida deveria ser quando o sistema nervoso central estivesse completo, no caso após 12 semanas de gestação, período escolhido pela maioria dos lugares onde o aborto é legalizado para permiti-lo, e período onde também a realização é mais segura para a saúde da mulher.
Nesse sentido, entram na discussão, muitas vezes, doutrinas religiosas acerca do aborto. As pessoas devem ter liberdade para exercer suas religiões e o Estado tem o dever de garantir liberdade religiosa e de culto. Nesse sentido, é preciso ser dito também que mesmo a Igreja em determinadas épocas históricas, não tinha um posicionamento contrário ao aborto. Mais especificamente, a Igreja Católica só passou a condenar a prática no século XIX a partir da pressão política feita por Napoleão III, que necessitava de mais mão de obra. Santo Agostinho, por exemplo, tem declarações favoráveis ao aborto nas primeiras semanas, mostrando que mesmo a Igreja apresenta uma posição de conveniência.
Outra coisa é que isso não pode interferir nas decisões do Estado, que é laico e que deve se pautar por outras coisas, no que é melhor para o bem estar das mulheres. Nesse sentido, independente da minha ou da sua opinião sobre a vida, as mulheres não deixam de abortar, e o fazem por uma série de fatores. E o pior de tudo, elas morrem. Como já dito acima, a cada 11 minutos uma mulher morre decorrente de um abortamento inseguro, metade das mulheres que fazem abortos ao ano necessitam de internações e passam por complicações e isso tem inclusive um alto custo para o sistema de saúde, um custo muito menor do que se o procedimento fosse realizado com assistência.
2 – “Hoje em dia, com tantos métodos contraceptivos, engravida quem quer”
Essa é outra “máxima” utilizada nas discussões sobre aborto, e ela desconsidera, em primeiro lugar, as falhas nos métodos e desconsidera ainda que a maior parte dos métodos recaem a responsabilidade apenas para a mulher. Sobre isso quero colocar alguns dados na questão: segundo a OMS, 5.886.000 gestações no mundo ocorrem devido à falha dos métodos anticonceptivos com uso perfeito e 26.567.000 gestações devido à falha dos métodos anticonceptivos com uso típico ou habitual, outro dado ainda mais chocante está expresso no gráfico abaixo:
Com certeza, esses números já aumentaram hoje em dia, mas a discrepância entre conhecimento e uso atual regular é chocante. Observe, por exemplo, o caso da camisinha, tão difundida em campanhas publicitárias do governo e mesmo assim não é usada habitualmente, observe ainda que a pílula anticoncepcional tem o uso regular muito maior que a camisinha, especialmente porque é um método que depende da mulher. Cerca de 50% das mulheres que abortaram usavam algum tipo de método anticoncepcional enquanto engravidaram e 70% estavam em relações estáveis. Ou seja, o argumento de “engravida quem quer” dispensa enxergar também o machismo nas relações, o qual implica desde violências sexuais até relações violentas no cotidiano onde os homens acabam por relativizar o uso de contraceptivos e não assumem a responsabilidade pelas consequências dos atos. Pra ser mais explícita, há hoje cerca de 20 milhões de mães solteiras e cerca de cinco milhões de crianças não têm o nome do pai na certidão. Além do que o Estado não garante a essas mães uma maternidade plena, apenas 30% das crianças no Brasil tem acesso a creches públicas.
Outra coisa interessante para observar como a responsabilidade pela concepção sempre recai para a mulher, enquanto o direito de escolha sobre a maternidade lhe é negado, é observar como são tratadas as pesquisas em relação aos tão prometidos anticoncepcionais masculinos. Em 2016, a ANVISA suspendeu a liberação da pílula por verificar “efeitos colaterais semelhantes às pílulas femininas para as mulheres”, leia-se alterações de humor, de libido, efeitos cardiovasculares maléficos em longo prazo. Quando se trata da saúde da mulher, para o Estado é praticamente exigido que sejam submetidas a anos de hormônios exógenos, já que “a culpa de engravidar é dela”, mas quando se trata dos homens vale “meu corpo, minhas regras”.
3 – “Se o aborto for legalizado vai virar método anticoncepcional”
Em primeiro lugar, qualquer pessoa que tenha passado pela experiência própria de aborto, seja acompanhando alguém, seja realizando, sabe que essa afirmação carrega em si um absurdo. As mulheres só recorrem a esse método em última instância, justamente porque em geral significa um trauma psicológico, mesmo se realizado de forma segura, e pode significar um trauma físico imenso. Além dos riscos a que as mulheres se submetem diante da criminalização, desde medicações falsas, passando por clínicas clandestinas sem assepsia adequada, gerando abortamentos infectados, esterilidade e mortes maternas, até o risco de ser criminalizada de fato. Mesmo com a legalização, que exporia a mulher a menos riscos no sentido do procedimento, nós somos desde pequenas educadas na “função social” de sermos mães. Não é nada fácil tomar uma decisão como essa diante de tamanho peso psicológico.
Mas, o principal argumento diante dessa afirmação é a experiência de outros países que legalizaram o procedimento, mostrando que essa afirmação é completamente inverossímil. Países como Canadá, Noruega, Portugal e mais recentemente Uruguai já divulgaram dados de diminuição drástica do número de abortos após a legalização, isso porque a política de legalização veio acompanhada, mesmo que precariamente, pelo aumento da política de educação sexual e de planejamento reprodutivo. As taxas da Holanda (0,53 em 100 mulheres em idade fértil), do Canadá (1,2) e da Inglaterra (1,42) somadas são menores que as do Brasil (3,65). Nos três primeiros países o aborto é legalizado. Além do quê, nos países onde a legalização foi implementada conseguiu-se reduzir drasticamente as mortes maternas por abortamento. O Uruguai, por exemplo, divulgou dados no ano passado onde essa taxa foi zerada. Ou seja, não há nem consistência epidemiológica no argumento, nem psicológica. A questão aqui é optar por proteger, ou não, a vida das mulheres.
4- O aborto é crime em nosso país
Mesmo que você seja contrário à legalização, você acha que uma mulher ou quem a ajuda deva ser criminalizado por isso? Nosso código penal acha isso e defende de um a três anos de detenção para esses casos. A ADPF 442 defendida pelo PSOL visa derrubar justamente esses artigos, e como mínimo, descriminalizar a prática. Além disso, a luta para que os poucos direitos reprodutivos em relação ao tema não sofram um retrocesso é essencial. Foi uma dura batalha para que o abortamento por estupro, anencefalia e “terapêutico” para a mãe fossem aprovados. Não podemos deixar que esse Congresso reacionário, simbolizado por figuras como Bolsonaro, retroceda em nossos direitos. Para avançar, não retroceder é essencial. Hoje, no Brasil, se as mulheres que fizeram abortos fossem encarceradas, considerando que uma a cada cinco mulheres de 40 anos, ou mais, já fez um aborto, o sistema carcerário brasileiro cresceria em quatro vezes seu já absurdo tamanho.
A questão é que essa lei não é feita exatamente para encarcerá-las, mas para fazer com que quem não tenha dinheiro se submeta a riscos e óbitos completamente evitáveis se a prática fosse legalizada. O aborto já é legal em nosso país e é parte do cotidiano das mulheres, a questão é que ele é legal apenas para quem tem dinheiro. Diferente de leis como as em relação ao tráfico de drogas, que têm como centro o encarceramento da juventude negra, a lei em relação ao aborto tem como centro o controle da natalidade perante o Estado e em nosso país foi centro de uma série de “chantagens políticas”. Foi usada pela bancada religiosa como moeda de troca para apoio de determinado governo, ou não, seja nos governos do PT, como expresso na “Carta ao Povo de Deus”, por Dilma, seja nos governos reacionários como o de Temer e em projetos de candidatos como Bolsonaro.
Não podemos aceitar que nossos direitos sejam moedas de troca e muito menos que mulheres continuem morrendo na clandestinidade do abortamento inseguro. Alguns ministros do STF já se posicionaram favoráveis à ADPF, e é possível que ainda esse ano haja uma posição do Supremo quanto à questão. É possível que dure anos tramitando, mas o importante é mantermos a pressão na sociedade, porque com todo esse cenário, cerca de 80% da população ainda é contrária ao abortamento em todos os casos. No caso de estupro a maioria da população é a favor. Precisamos discutir com as pessoas e mostrar a cara verdadeira do aborto em nosso país, a cara de mulheres negras, religiosas, casadas. A sua maioria já tem filhos, e que morrem em valas, nas suas casas ou em clínicas na mão de mercenários que se aproveitam de uma situação desesperadora.
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