Por: Aldo Sauda, de São Paulo, SP
“Estamos por todo mundo e temos tropas por todo mundo em lugares que estão muito, muito longe” afirmou a presidência norte-americana em meados de agosto. “A Venezuela não está muito longe e as pessoas estão sofrendo, e estão morrendo. Temos muitas opções para a Venezuela, inclusive, se necessário, a possível opção militar”. Como tudo que vem de Donald Trump, seus gritos de guerra devem ser medidos pela particularidade de seu estilo. Porem uma não descartável segunda guerra americana na Coreia do Norte mudaria consideravelmente a dimensão de tal ameaça. Enquanto uma aventura militar contra Caracas é altamente improvável, a intensificação da guerra comercial é certa.
A crise social no país caribenho também colocou a classe dominante sul-americana na ofensiva. Em declaração conjunta ao presidente do Paraguai, Horácio Cartes, Michel Temer alegou um suposto “caráter ilegítimo” da Constituinte Venezuelana, dando “pleno respaldo” à Assembleia Nacional, onde a oposição é maioria. Encabeçada pelo tucanato paulistano, o Itamaraty fez questão que a suspensão da Venezuela do Mercosul se desse não só na cidade de São Paulo, mais na própria sede da prefeitura de João Dória. O alinhamento ofensivo dos estados pan-americanos, pautado pelo tema da constituinte, coloca desafios a esquerda brasileira.
A ofensiva tucana contra Venezuela exige do movimento anticapitalista brasileiro oposição ao boicote à assembleia constituinte como proposto pelo governo Temer. Polêmica legitima na esquerda venezuelana, não cabe a aqueles que expressam solidariedade ao país querer ditar regras táticas em um país estrangeiro. A medida que se conhece a realidade factual, e a partir dela, é possível ter posições sobre as principais questões do país, porém apenas de forma geral. E é fundamental ter a disposição de apoiar e aprender das experiências de outros povos. No caso, também, voltar suas energias ao combate da política externa da classe dominante brasileira, como é a descarada intervenção reacionária do governo Temer contra a Venezuela.
Debates Marxistas
Em polêmica recente sobre a crise política em Caracas, destacou-se na imprensa anticapitalista de língua inglesa duas posições distintas. A primeira, encabeçada por Mike Gonzalez, defende que o processo bolivariano se esgotou a partir de sua incapacidade de romper com a dependência na exportação de matérias primas a países imperialistas. A segunda, apresentada por George Ciccariello-Maher, afirma que o processo iniciado no Caracazo de 1989 segue em curso, cuja prova é a mobilização constante da base chavista nas ruas e a política de boicote econômico baseada na oposição pro-EUA. Em artigo intitulado “Uma conversa franca sobre a Venezuela”, Gonzalez, definindo o chavismo como expressão política de um dos dois blocos políticos pró-capitalistas hegemônicos na Venezuela, afirma
Chávez prometeu que a renda excedente iria ser investida no futuro, que a economia se diversificaria e que o país iria escapar da armadilha da dependência no petróleo.
Este projeto fracassou. Hoje, 95% da renda externa na Venezuela vem do petróleo, há 20 anos, eram 67%. Enquanto isto, o PIB caiu 18% e a produção industrial e agrícola colapsou em diversos setores. As reservas públicas caíram a 40% do nível de 2012. Quase 90% da população não consegue comprar comida, o que explica a perda em média de 8 quilos. O consumo de leite caiu pela metade. Não há dados sobre o impacto da falta de medicamentos. (…)
Os defensores do chavismo argumentaram que a queda no preço do petróleo é a causa da crise. Houve de fato uma brutal queda a partir de 2014, mas esta é só parte da verdade. Apesar de o lucro do petróleo ter caído, o boom precedente deveria ter permitido ao governo economizar dinheiro suficiente para equacionar a crise atual, como mostra a matemática cuidadosa de Manuel Sutherland. O governo baseou seu orçamento na venda de petróleo por 60 dólares o barril mesmo enquanto o preço era o dobro. Esta renda a mais desapareceu no sistema corrupto que o estado chavista administra e sustenta. E é claro, a burguesia tem se dado bem. Eles sorridentemente pactuaram com as novas elites chavistas para extraviar fundos públicos, especular no mercado de cambio e investir seus lucros no exterior.
Em sua resposta a Gonzalez, também publicada na revista Jacobin, Ciccariello-Maher recorre prioritariamente às argumentações de José Miguel Gómez, da comuna de Pío Tamayo, em Barquisimeto. Segundo Gómez,
O governo não é o projeto bolivariano, que vai muito para além da presidência – é por isto que eles não foram capazes de derrota-lo e porque ele segue nas ruas hoje. Precisamos continuar a resistir e construir uma alternativa verdadeiramente revolucionária que possa transformar a própria estrutura do estado. A Assembleia Constituinte é um passo nesta direção, mas temos que limpar o governo e as instituições, que estão repletas de corruptos e burocratas. Precisamos arrastar o poder para longe do exército. Ha uma enorme quantidade de máfias fiscais – precisamos eliminar o controle sobre o crédito e nacionalizar os bancos e o comércio exterior. A direita jamais será uma alternativa. Precisamos permanecer críticos em relação ao governo e construir uma verdadeira alternativa para governar.
Dentro destes marcos, Ciccariello-Maher afirma:
Em última instância, para Gonzalez, as elites chavistas e a burguesia com quem ela “sorridentemente pactuou” são a mesma coisa. Mas isto faz com que o autor não consiga responder à mais básica das perguntas: se são a mesma coisa, então porque lutam de forma sangrenta nas ruas? A resposta é porque, por mais imperfeito que seja, o governo Maduro ainda representa a possibilidade de algo radicalmente diferente, como mostram as muitas lutas revolucionarias de base que seguem a apoiar o processo.
Ao apresentar uma caótica constelação de fatos sem explicar suas causas, jogando a culpa nas costas do governo e fechando os olhos para a oposição e o imperialismo, a narrativa de Gonzalez se confunde a de seus declarados adversários.
O debate presente nestas duas posições possibilita extremos que distorcem a realidade. Um erro possível, ao qual se aproxima a posição de Ciccariello-Maher, seria a confiança de que o chavismo irá se radicalizar por conta das pressões externas e mesmo do movimento social. Ainda do Brasil, observado de longe, parece haver um giro à direita no chavismo – desde a queda no preço do petróleo – ganhando características cada vez mais repressivas e submetida a velhos e novos imperialismos.
Guerra comercial
Por conta da centralidade dos recursos naturais na vida econômica nacional, as sanções impostas pelos EUA a 13 autoridades de alto escalão venezuelano tiveram o efeito de bloquear legalmente o comando da PDVSA de realizar operações financeiras nos EUA. Impedindo que os diretores da empresa possam assinar documentos ligados a bancos americanos, as sanções têm dificultado cada vez mais a vital exportação de petróleo – do qual o país é proprietário da terceira maior reserva do mundo – ao vizinho do Norte.
Outra medida americana voltada a enfraquecer a economia da Venezuela tem sido impedir que a estatal russa Rosneft assuma o controle da Citgo Petrolio, empresa de energia da PDVSA localizada nos EUA, que inclui refinarias no Texas, Louisiana e arredores de Chicago. Cerca de metade da empresa foi oferecida de garantia a Moscou em troca de 1,5 bilhões de dólares tomados de empréstimo em 2016. A inaceitável intromissão estadunidense nas relações entre dois estados soberanos revela não só a ofensiva americana, como também a hipocrisia da classe dominante russa, que, enquanto critica os EUA, se aproveita da crise para arrematar a PDVSA.
Simpatia à ofensiva russa sobre as riquezas da Venezuela é um dos poucos consensos que unem a oposição de direita e o governo Maduro. Segundo Viktor Semyonev, do Instituto de Estudos Latino Americanos da Academia Russa das Ciências, Henrique Capriles, candidato derrotado à presidência venezuelana nas eleições de 20013, defende o que capital dos oligarcas russos veio a Caracas para ficar. Citado pelo jornal Financial Times, Semyonev afirma que Capriles “compreende que a Rosneft fez muito pelo país e é uma operadora eficiente que pode ajudar a produção de petróleo crescer rapidamente. ”
Já o poder de fogo do governo Temer na guerra econômica é bem mais limitado. Segundo a Folha de São Paulo, “em 2012, o mercado venezuelano chegou a absorver US$ 1,9 bilhão em bens brasileiros -levando em consideração o período de janeiro a maio. Era o segundo maior destino na região e o oitavo no mundo – hoje não está nem entre os 50 primeiros. ” Segundo o jornal “Os embarques para Venezuela caíram 57% de janeiro a maio em relação ao mesmo período de 2016. No total, as vendas do Brasil para o mundo subiram 20%”. “Na comparação com 2012, o declínio é de 91%. ”
Talvez por isto, Romero Juca, senador por Roraima e um dos principais articuladores do PMDB, resolveu demonstrar a criatividade do governo em seu ataque. Segundo Jucá, o país deveria parar de conceder refúgio a seus vizinhos, afinal, “É muito fácil para [o presidente Nicolás] Maduro mandar 5 milhões de pessoas para o Brasil porque nós vamos pagar a conta aqui e ele se livra do problema. Ele manda para fora todos os adversários e fica só a patota dele lá; mas o Brasil tem Orçamento para pagar isso?” Para além do imaginário êxodo a Boa Vista projetado pelo senador, segundo estimativas do governo brasileiro, menos de 10 mil venezuelanos mudaram-se para o Brasil.
A incapacidade do chavismo, após uma década e meia, de romper com a dependência do petróleo exige clareza dos limites estratégicos do processo bolivariano. As diversas críticas a Assembleia Constituinte, inclusive de fraudes eleitorais (que a própria empresa responsável pelo serviço, Smartmatic, afirma serem mais de um milhão de votos falsos, sobre os 8 milhões oficiais) não podem ser ignoradas. Nada disto, porém, permite que na crítica ao chavismo, nos confundirmos com a proposta do ilegítimo Temer sobre a legitimidade da constituinte venezuelana.
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