Por: Henrique Saldanha, de Salvador, BA
No último dia 24 de agosto, o site do UOL publicou uma entrevista realizada com o novo comandante da ROTA – Rondas Ostensivas Tobias de Aguiar – de São Paulo – Tenente Coronel Ricardo Augusto do Nascimento de Mello Araújo, empossado no cargo desde o 4 de agosto, em que o mesmo afirma que os Policiais Militares adotam formas diferentes de abordar pessoas nas áreas nobres e nas periferias da cidade.
Na entrevista, o comandante explica o porquê das abordagens diferenciadas nos dois territórios:
“É uma outra realidade. São pessoas diferentes que transitam por lá. A forma de abordar tem que ser diferente. Se ele [Policial] for abordar uma pessoa [na periferia], da mesma forma que ele for abordar numa pessoa aqui nos Jardins [região nobre de São Paulo] ele vai ter dificuldade. Ele não vai ser respeitado. Da mesma forma, se eu coloco um [Policial] da periferia para lidar, falar com a mesma forma, com a mesma linguagem que uma pessoa da periferia fala aqui nos Jardins, ele pode estar sendo grosseiro com uma pessoa dos Jardins que está ali andando. O Policial tem que se adaptar aquele meio que ele está naquele momento.”
Esse trecho da entrevista para nós militantes do movimento negro e de defesa dos direitos humanos, ou para qualquer pessoa não é algo desconhecido sobre as abordagens policiais nas grandes cidades. E pode ser encarada como uma declaração carregada de racismo, preconceito de classe e uma violação do artigo 5ª da Constituição Federal brasileira, que diz que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. E essa declaração é tudo isso.
O comandante da ROTA identifica que uma abordagem que respeite os direitos do cidadão na periferia, não faria com que o policial fosse respeitado pelos moradores dessa região, defendendo que o PM tem que se impor e ser autoritário para conseguir ser respeitado. E para o Ouvidor da Polícia Militar, Júlio Cesar Neves, a declaração do comandante da ROTA foi elitista, preconceituosa e infeliz.
Mas ela também deve ser lida como parte da disputa policial pela garantia do seu poder e autoridade, numa sociedade desigual, profundamente desigual, como é a sociedade capitalista brasileira. Essa fala abre a oportunidade para entendermos o exercício cotidiano da autoridade policial e sua relação com as classes sociais.
O historiador Marcos Luiz Bretas no livro “Ordem na cidade – O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro 1907 – 1930”1 diz que o alvo preferido da vigilância policial sempre foi o “cidadão comum”. E que não era simples para os policiais exercerem o seu papel, quando o cidadão que ele encontrava em sua atividade não era tão “comum” assim. Segundo o historiador, o policiamento das classes superiores é assunto complicado, porque desde a criação das modernas corporações policiais, o ideal de segurança é que as elites sejam protegidas e não policiadas. No entanto, isso não significa que os membros da classe dominante não praticassem e pratiquem crimes, mas é que a maioria dos seus delitos fogem do alcance dos procedimentos tradicionais da Polícia.
A relação entre Polícia e membros do grupo dominante deve ser entendida dentro do campo mais geral das relações de poder que existem. Os policiais na sua experiência cotidiana apreendem que existem determinados limites e barreiras impostas pela sociedade de classes, e que dependendo de quem seja a pessoa os mesmos podem sair da condição de acusadores para acusados. O poder policial não é o mesmo em todos os espaços e para os indivíduos numa sociedade capitalista.
E ainda mais se tratando de Brasil, onde o surgimento histórico das organizações policiais tem profunda relação com os interesses da classe social dominante por segurança no período da escravidão. O historiador brasilianista Thomas H Holloway num livro clássico sobre a história do Polícia no Brasil chamado “Polícia no Rio de Janeiro – Repressão e resistência numa cidade do século XIX”2 vai buscar a origem da polícia brasileira na vinda da Família Real portuguesa para o Brasil em 1808.
A polícia como instituição à parte teve início antes da independência formal, quando a transferência da família real portuguesa para o Brasil levou a criação da Intendência Geral da Polícia da Corte e do Estado do Brasil. A Intendência era baseada no modelo francês introduzido em Portugal em 1760, que era responsável pelas obras públicas e por garantir o abastecimento da cidade, além da segurança pessoal e coletiva, o que incluía a ordem pública, a vigilância da população, a investigação dos crimes e a captura dos criminosos.
O modelo de policia do Rio de Janeiro criado pela coroa portuguesa foi o primeiro instrumento policial da história brasileira, que serviu de base para as polícias que foram criadas logo após nas demais províncias. E esse modelo que serviu de base foi a Guarda Real de Polícia criada em 1809, uma força policial de tempo integral, organizada militarmente e com autoridade para manter a ordem e perseguir criminosos.
O comandante mais conhecido da Guarda Real de Policia foi Miguel Nunes Vidigal, que segundo Thomas Holloway, se tornou um implacável inimigo da população negra e pobre, escrava ou livre/liberta do Rio de Janeiro nas décadas iniciais do século XIX. Vidigal e seus homens patrulhavam as ruas a noite pela cidade, em busca de reuniões e festas que envolvessem a população de descendência africana, as batidas policiais da Guarda Real eram tão violentas, que elas ficaram conhecidas como “ceias de camarão”, fazendo uma alusão ao ato descascar o camarão até chegar à sua carne cor de rosa.
E para aumentar o controle sobre a população negra escrava ou livre na corte imperial, foi estabelecido o “Toque de Aragão”, um decreto que instaurou um toque de recolher a partir das 21h, garantindo a Guarda Real o poder para revistar qualquer pessoa em busca de armas ou instrumentos ilegais, que pudessem ser usados para fins criminosos. Só que a ordem a ser cumprida tinha uma restrição, de que a Guarda Real não abusasse e nem adotasse tal postura contra pessoas notoriamente conhecidas e probas, que com certeza só deveria incluir a população branca da cidade.
E só para termos uma ideia de como a Polícia no Brasil está vinculada ao poder e proteção das elites, o brasão da Polícia Militar do Rio de Janeiro é representada por um ramo de café e um ramo de cana de açúcar, símbolos econômicos da produção escravista no século XIX que enriqueceu os senhores, duas armas de fogo da época, e uma coroa real e uma a sigla “GRP” – Guarda Real de Polícia – e o seu ano de fundação, 1809.
A fala do comandante da ROTA é gravíssima, sobretudo se tratando de um dos agrupamentos da Polícia Militar de São Paulo conhecido pela sua extrema violência. Em 2015 a ROTA foi o batalhão que mais matou suspeitos de cometerem crimes no estado de São Paulo nos dois primeiros meses do ano. A ROTA também ficou conhecida pelo livro do jornalista Caco Barcellos, ROTA 66 – A história da Polícia que mata. E o seu representante mais conhecido é o “Coronel Telhada”, atualmente deputado estadual pelo PSDB/SP, que já disse na imprensa ter matado mais de 30 pessoas quando estava na ativa.
A Polícia militar de São Paulo também carrega no seu brasão símbolos e homenagens que vinculam a instituição aos momentos históricos de defesa dos interesses das elites políticas e econômicas na nossa formação nacional. As estrelas que compõem o brasão fazem referências a repressão a movimentos populares como “Revolta da Chibata”, liderado por João Cândido contra os baixos salários e os castigos físicos na Marinha, o massacre de Canudos, a greve operária de 1917, a “Intentona Comunista” de 1935, o apoio ao golpe que instaurou a Ditadura do Estado Novo varguista e por fim, o golpe Militar – Empresarial de 1964. As nossas policias são instituições altamente impopulares, elitistas e se orgulham disso!
A entrevista dada pelo comandante da ROTA se cruza com a prática da Polícia Militar de São Paulo, que somente nos dois primeiros meses desse ano, já matou muito mais do que o número de homicídios cometidos pela população civil. Uma pesquisa realizada pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) em 2014 demonstrou que o número de negros mortos pela Polícia Militar para cada 100 mil habitantes, era quatro vezes maior do que para a população branca. E que a taxa de negros presos em flagrante era duas vezes maior do que a de brancos.
E mesmo um jovem periférico, principalmente negro, em um local nobre como Jardins não seria tratado com respeito que o comandante fala referente às pessoas que transitam pelo bairro. Em 2013 a Polícia Militar em Campinas expediu uma Ordem de Serviço, para que seus integrantes abordassem jovens negros e pardos, com idade entre 18 e 25 anos no bairro Taquaral, uma das áreas mais nobres da cidade. A determinação do comando policial dizia que pessoas enquadradas nesse perfil deveriam ser vistas como suspeitas de praticarem assaltos na região.
Mas o discurso sobre ação da Polícia diferenciada a depender do local não é apenas “privilégio” do comando policial de São Paulo. José Maria Beltrame, que é ex Secretário de Segurança Pública do Rio de Janeiro, afirmou em 2007 que um tiro da Polícia na Zona Sul, em Copacabana é uma coisa, mas na favela da Coréia e no Complexo do Alemão era outra coisa.
O problema da abordagem diferenciada, para pessoas diferenciadas não será resolvido apenas com a troca do comando da PM, nem com uma formação Policial preparada para compreender os Direitos Humanos e as garantias individuais, mas sim com transformação social, que leve a sociedade a um nível máximo de igualdade possível, que reduza a capacidade política de criminalização de determinados grupos sociais. Porque quando chegarmos nesse nível, acredito que nem de policiamento precisaremos.
Henrique Oliveira é graduado em História e mestrando em História Social pela UFBA, militante do Coletivo Negro Minervino de Oliveira/Bahia e colaborador da Revista Rever.
1 BRETAS, Marcos Luiz, Ordem na cidade: O exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro, 1907 – 1930,trad Alberto Lopes, Rio de Janeiro, Rocco,1997.
2 HOLLOWAY, Thomas H, Policia no Rio de Janeiro: Repressão e resistência numa cidade do século XIX, Rio de Janeiro, Editora Fundação Getúlio Vargas, 1997.
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