Por uma esquerda capaz de olhar para os próprios erros e acolher aqueles e aquelas que se dispõem à árdua tarefa da iconoclastia1
Por: Mácia Teixeira*, de Brasília, DF
No começo do mês de junho, tivemos o lançamento no Facebook do canal ‘À Esquerda’2 , da PhD em Sociologia e Ecossocialista Sabrina Fernandes. O canal tem por objetivo abordar criticamente temas relacionados à forma como as organizações de esquerda atuam no Brasil e sobre as políticas por elas defendidas. Mais especificamente, o canal se volta àquelas organizações que se localizam entre as mais radicais, com estratégia anticapitalista e revolucionária. Nos vídeos, a socióloga se debruça sobre as diversas contradições e novos conceitos surgidos das mudanças históricas que aconteceram na política nas últimas décadas, mais especificamente aquelas que dizem respeito à luta pelo socialismo e pela emancipação humana.
Abordando temas da atualidade, como as interpretações das organizações da esquerda radical sobre a condenação do ex Presidente Lula3 , até novos termos utilizados pelo movimento feminista, como ‘Mansplainning’4, Sabrina Fernandes afiou a espada e o pensamento no intuito, tão necessário para os revolucionários, de criticar a ação da própria esquerda revolucionária como agente histórico que se propõe a mudar o mundo.
Como era de se esperar, o canal À Esquerda tem sido alvo de diversos ataques de ativistas ligados à direita, sejam liberais, ou conservadores; mas também, infelizmente, de militantes de esquerda, muitos deles ligados às organizações tradicionais do movimento de massas que tentam abalar e desqualificar a jovem socióloga recorrendo, principalmente, ao machismo e à misoginia.
É importante salientar que muitos desses ataques vêm camuflados de divergências teóricas, tentando jogar a elaborada iniciativa de crítica marxista da ecossocialista Sabrina na vala comum da “pós-modernidade”, invisibilizando com esse rótulo mal refletido o real conteúdo da polêmica. Para esses setores, as verdades que aprenderam sobre seus próprios chefes políticos, sobre os “mestres do passado” e sobre a dinâmica da política são tão dogmáticas e quase divinas que qualquer um que se esforce por demonstrar suas limitações e equívocos é por eles encarado como um herege, um traidor, um revisionista, um “contrarrevolucionário”. Sendo uma mulher jovem, bonita e estudada a tecer as duras críticas, a raiva dogmática que desperta é ainda maior, pois aguça nesses militantes religiosos toda a fúria de sua cultura patriarcal.
Qual é o significado da CRÍTICA para o marxismo?
Quem já atua em algum fórum ou espaço da esquerda, e que já teve algum contato com os textos clássicos da tradição marxista, já deve ter notado que o nome “crítica” está em tudo. A maioria dos livros teóricos dessa tradição aborda criticamente seus objetos de estudo, quando não trazem esse nome no próprio título – como o famoso “Para uma Crítica da Economia Política” de Karl Marx. Mas por que a crítica é tão importante para o Marxismo?
Resumidamente, o Marxismo faz parte de uma tradição filosófica chamada Dialética. Para essa vertente, a Verdade de uma ideia nunca pode ser suposta antes da análise concreta do fenômeno do qual a ideia surge, ou seja, a Verdade da coisa só é sabida depois de analisarmos a coisa, nunca antes. Também não existem verdades fora da História para o Marxismo. Tudo que é verdade tem um motivo histórico para ser, e deixará de ser verdade quando esses motivos sessarem. Ou seja, o que na Idade Média era considerado uma verdade absoluta, hoje pode não ser mais. A verdade não é eterna; é histórica. Por isso, um sujeito que quer se aproximar dialeticamente de um objeto qualquer de conhecimento, deve fazê-lo através da crítica às primeiras aparências desse objeto; deve-se ir atrás das ‘múltiplas determinações’ que são condições de possibilidade histórica para a existência daquele objeto; nós dialéticos chegamos a um juízo verdadeiro sobre a ideia/objeto como ponto de chegada da análise e não como ponto de partida. Por isso Marx construiu sua principal obra, O Capital, a partir da “crítica da economia política” que ele construiu sobre os equívocos e limitações das teorias liberais de Adam Smith e David Ricardo.
Para a dialética o erro5 – ou contradição – é o motor do movimento histórico e por isso identificar esses erros – ou seja, fazer a crítica – é tão importante para avançarmos nos nossos objetivos estratégicos.
Mas, como assim o motor é “erro” ou contradição? É simples. Só quando algum fenômeno histórico entra em contradição é que está pronto para ser superado. Um exemplo bom é o antigo regime francês do Rei Luís XVI: Quando a estrutura social dividia em três estados (nobreza, clero e plebe) não conseguia mais dar vazão aos diversos problemas políticos, econômicos e sociais dos franceses – ou seja, a forma como a sociedade se organizava entrou em contradição com a satisfação das diversas necessidades dessa comunidade – foi que as condições históricas para o acontecimento da Revolução Francesa estavam colocadas.
A crítica é, por isso, a nossa maior e melhor ferramenta científica para garantir a compreensão dialética da realidade e o consequente avanço nos nossos projetos políticos e a difusão dos nossos ideais. Apenas analisando criticamente os fenômenos e movimentos históricos, vendo onde e em que momento entram em contradição, podemos vislumbrar o que deve ser feito e propor saídas políticas – e revolucionárias – para a sociedade.
A esquerda radical só será revolucionária se reabilitar o esforço cotidiano da AUTO-CRÍTICA
Nesse sentido, iniciativas como a de Sabrina Fernandes, de se dedicar a analisar as ações e políticas das organizações de esquerda, para encontrar nelas suas características determinantes e verificar se estão ou não em conformidade com o que parecem ser as exigências do movimento histórico atual da luta contra o capitalismo, é crucial para nós marxistas. As organizações da esquerda, ao invés de se valer de seu arcabouço teórico para deslegitimar esforços como os de Sabrina, deveriam impulsionar esse exercício de crítica, participar do debate, se abrir de corpo e alma a ele, se auto-criticar: tanto os partidos com menor influência política e institucional, como principalmente aquelas organizações que há mais de 30 anos dirigem a maior parcela da classe trabalhadora e dos setores oprimidos do país, como por exemplo os partidos PT, PCdoB, os movimentos sociais como MST, e etc.
Também – e principalmente – a luta daqueles e daquelas que foram marginalizados pelo sistema capitalista só avança, só se massifica, só hegemoniza a dinâmica histórica da sociedade se estivermos em estado permanente de crítica e auto-crítica. Assim, a cada passo dado, a cada política defendida, a cada tática para uma manifestação ou para as eleições, ou mesmo um giro político organizativo mais ousado dever ser minunciosamente criticado pela própria esquerda. Só assim, poderemos, em verdade, ter controle de como e para onde estamos indo: se para a triste repetição de mais uma farsa histórica, reeditando tantos erros do passado; ou se rumo ao mundo novo, justo e emancipado que tanto desejamos construir.
1 Foi um movimento político-religioso contra a veneração de ícones e imagens religiosas no Império Bizantino. Etimologicamente, iconoclastia significa literalmente “quebrador de imagens”, termo originado da união das palavras gregas eikon, que significa “imagem” ou “ícone”; e klastein, que quer dizer “quebrar”.
2 Link: Facebook Crítia À Esquerda
3 Link: Facebook Sabrina Fernandes
5 A contradição clássica (‘a e não-a’ – dizer que uma coisa é verdade e não é verdade ao mesmo tempo) é a forma lógica do erro, da não-verdade. Na dialética a interpretação da contradição é mais complexa. No movimento histórico, todos os fenômenos estão em constante ‘devir’, ou seja, sendo e não sendo no tempo e no movimento da realidade em fluxo. As superações históricas dos fenômenos se dão nesse movimento desigual e combinado de vir-a-ser e deixar-de-ser.
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