Por: Allany Thayze Nogueira e Anderson Nogueira Alves*, de Guarulhos, SP
*membros do Quilombo Raça e Classe – CSP Conlutas Guarulhos
Um tremendo genocídio se perpetua no Brasil. Segundo o Mapa de Assassinatos de Pessoas Trans no Brasil, organizado pela ANTRA desde 2011, mais de 100 pessoas travestis, transexuais e homens trans são assassinadas anualmente em nosso país.
No ano de 2016, o número de assassinatos chegou a 144, e pasmem, só nestes seis primeiros meses de 2017 chegamos ao número de 92 pessoas trans que tiveram suas vidas ceifadas pela transfobia. Os estados do Ceará, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro e Bahia são campeões no ranking de assassinatos de pessoas trans no Brasil.
No entanto, sabemos que estes números são ainda maiores, visto que os dados do Mapa de Assassinatos de Pessoas Trans são recolhidos dos casos que saíram na mídia, ou que foram informados por meio da rede da própria ANTRA em todo o Brasil.
Além disso, o fato de não haver a criminalização do preconceito, violência e ódio por transfobia e homofobia como motivação em tais crimes, além do fato de muitos casos de mortes serem subnotificados ao aparecerem como assassinatos de gays ou lésbicas, invisibilizam a identidade de gênero e nome social dos homens trans, das travestis e das transexuais. Outro agravante é que muitos cafetões e cafetinas, agentes corruptos do Estado e donos de clínicas clandestinas de cirurgia plástica atuam conjuntamente como organizações criminosas no chamado tráfico de próteses de silicone, onde o fato de ocultar a identidade de gênero das travestis e das transexuais faz todo sentido, muitas vezes proposital no sentido de perpetuar ação criminosa destas quadrilhas.
Alguns casos
Vários casos de assassinato trans ganharam repercussão nacional e mundial, mas dois são bastante emblemáticos. A travesti Dandara dos Santos, de 42 anos, foi brutalmente espancada e morta a tiros por vários homens e colocada dentro de carrinho de mãos em plena rua no Bairro Bom Jardim, em Fortaleza, em fevereiro deste ano.
Têu Nascimento, de 24 anos, teve sua casa invadida e foi brutalmente assassinado no dia 5 de maio, em Salvador, na Bahia. Ele foi vítima do chamado “estupro corretivo”, uma brutal violência sexual criminosa muito praticada contra os homens trans.
O estado do Ceará é o campeão nacional de mortes de pessoas trans em 2017, totalizando num total de 11 assassinatos. Além do brutal assassinato de Dandara dos Santos, a travesti Paloma Oliveira, de 30 anos foi assassinada brutalmente no dia 30 de janeiro a pauladas, às margens da BR-116, no município de Russas, no Ceará, região da Vale do Jaguaribe.
A travesti Hérika Isidório, de 24 anos, faleceu no dia 12 de abril, dois meses depois de ter sido espancada e jogada do alto de uma passarela localizada na Avenida José Bastos, na cidade de Fortaleza.
A travesti Salomé, de 25 anos, foi alvejada a tiros ao sair de um forró na cidade São Luís do Curu.
Neste contexto de desumanização, é importante registrar também os assassinatos de outras trans. A travesti Agatha Lios, de 23 anos, foi assassinada no dia 23 de janeiro dentro de um centro de distribuição dos Correios, em Taguatinga Sul, por gangue de quatro travestis ligadas a uma cafetina de Brasília.
A transexual Mirella de Carlo, de 39 anos, militante do Centro de Luta pela Livre Orientação Sexual de Minas Gerais (CELLOS), foi brutamente assassinada em seu apartamento, em Belo Horizonte, no dia 20 de fevereiro.
A travesti Laysa Mello, de 28 anos, foi assassinada com quatro tiros no dia de 30 de abril na cidade de Vila Velha, no Espírito Santo.
A travesti estudante do curso de Bombeiro Civil e empregada doméstica Carla Viana, de 23 anos, foi assassinada brutalmente por quatro homens com golpe de facas, chutes e pontapés, falecendo três dias depois no HGE da cidade de Maceió, em Alagoas.
A transexual Sophia Castro, de 21 anos, foi morta por um cliente na cidade de Contagem, em Minas Gerais.
E a nossa amiga pessoal da militância, a travesti Vicky Spears, da cidade da Grande São Paulo Diadema, foi assassinada covardemente com sete tiros no dia 3 de julho.
Estudos recentes já comprovaram a baixa expectativa de vida das pessoas trans, que não ultrapassa os 35 anos, semelhante aos países mais pobres da África em guerra civil, como Serra Leoa. Estes dados não levam em conta os recortes étnico-raciais, o que levaria a índices ainda menores.
Outro dado importante é que mais de 95% das travestis e transexuais vivem da prostituição e não chegam à 7ª série do Ensino Fundamental.
Infelizmente, com o atual avanço do conservadorismo a partir do crescimento das bancadas evangélica fundamentalista e da bala, no Congresso Nacional, lideradas por figuras centrais como os deputados pastor Marco Feliciano (PSC-SP), o militar Jair Bolsonaro (PSC–RJ) e o senador Magno Malta (PR-ES), juntamente com a traição do PT em suas alianças espúrias com a burguesia nos governos Lula e Dilma, para manter a chamada governabilidade, nossas bandeiras e nossos direitos são usados como moeda de troca.
O fracasso desta política de conciliação de classes acabou caindo por terra, principalmente depois do golpe parlamentar e da posse do governo golpista de Temer. A gestão peemedebista é o governo oficial das elites e do imperialismo, que pretende promover ainda mais o desmonte das políticas públicas e dos direitos trabalhistas, sociais e previdenciários da classes trabalhadora, iniciado nos governos anteriores.
É neste cenário, de espoliação, criminalização dos movimentos sociais e ofensiva da burguesia sobre os direitos da classe trabalhadora, que os segmentos sociais mais vulneráveis como a população negra nas periferias, favelas e áreas quilombolas, povos tradicionais, populações indígenas e a população LGBT, em especial as travestis, as transexuais e os homens trans, se tornam os maiores alvos de violência e de crimes de intolerância, racismo, homofobia e transfobia em todo o Brasil. O nosso país é que mais mata trans no mundo.
A militância LGBT teve muitas ilusões com os governos de frente popular do PT, que posavam de progressistas, mas preferiram a governabilidade com a chamada bancada evangélica, abandonando as principais bandeiras do movimento LGBT. É necessário um processo de autocritica da militância da esquerda socialista LGBT que se distanciou desde fins de anos de 1980 da realidade da maioria das pessoas LGBTs. Foram os primeiros grupos vitimados junto com as profissionais do sexo, hemofílicos e usuários de drogas injetáveis do HIV-Aids e Hepatites virais e que encontraram nas ONGs de prevenção às doenças sexualmente transmissíveis um único espaço para lutar por sua vida e contra os preconceitos, violência e exclusão do Estado e da sociedade.
O fato de grande parte da população LGBT, formada principalmente por gays e lésbicas estarem em maioria no mercado informal do mundo do trabalho e em subempregos, distante das organizações sindicais, e os adventos do boom da Aids chamada de “praga gay” acabaram transformando as ONGs nos principais espaços de acolhimento e de espaço destas populações.
Este processo de distanciamento dos movimentos sociais de luta organizados acabou alimentando o discurso sectário de grande parte da esquerda socialista, seja por desconhecimento, seja por uma visão deturbada e equivocada da militância da esquerda socialista dos gays e em menor parte das lésbicas, que enxergam que toda a militância LGBT ligados ou próximos as ONG’s eram reformistas, o que jamais foi uma verdade, pois foram nestas entidades que se formaram as maiores lideranças nacionais LGBT nos anos 1980 e 1990.
No entanto, com ascensão os governos de frente popular do PT, as principais lideranças LGBT na sua maioria gays foram cooptados por esses governos reformistas e abandonaram as principais bandeiras defendidas pelo movimento. Neste processo outro agravante presente foi o crescimento do machismo e da misoginia que sempre tornou ainda mais invisível a pauta dos gêneros femininos das lésbicas, travestis e transexuais, também dos homens trans. Questões como mudança do prenome nos documentos, cirurgias de transgenitalização, tratamento de hormônio terapia e a defesa de políticas afirmativas como cotas para a população trans na educação e no mundo do trabalho jamais estiveram na pauta do movimento LGBT dirigido pelo segmento dos gays, ainda mais quando as pautas mais polêmicas esbarravam nos interesses destes governos reformistas que trocavam nossos direitos como moeda de troca para manter a chamada governabilidade com partidos fisiológicos da burguesia conservadora e atuais bancadas BBB – Bíblia, Bala e Boi.
A partir de meados dos anos 2000 outro fenômeno surgiu: o processo mercantilização das paradas LGBT’s e o crescimento do “Pink Money” representado por boates e donos de saunas nestas atividades do movimento. Neste processo percebeu-se além de processo de transformação das paradas em espaço de consumo, do turismo e do entretenimento, houve um distanciamento da militância da ONG’s cooptadas pelo governos de plantão financiadores destes eventos de rua e própria elitização do movimento o qual dirigido na sua maioria por uma militância gay branca de classe média das ONG’s das grandes e médias cidades do país, onde acabou mostrando um pouco duas realidades: a da classe média branca na sua maioria gay machista organizadora das paradas e frequentadora de boates e shoppings, e outra da população LGBT da população trans que sua maioria vivem da prostituição nas ruas das grandes e médias cidades correndo o risco de se tornarem estatística no país do mundo que mais mata pessoas tran e da população pobre LGBT na maioria negra que vivem na periferia e nas favelas, ambas vítimas da violência e do genocídio, da exclusão brutal do Estado e de seus aparelhos repressores como a polícia.
É necessário colocarmos a questão da luta de classes para que possamos construir um movimento LGBT classista que rompa com o machismo e misoginia dominante na movimento LGBT, que seja sensível e que priorize as pautas dos segmento trans, tais como mudança do prenome nos documentos das travestis, das transexuais e dos homens trans, o acesso as cirurgias de transgenitalização/resignação sexual, o acesso ao tratamento de hormônio terapia e a defesa de políticas afirmativas como cotas para a população trans na educação e no mundo do trabalho; que lute efetivamente pelo processo de criminalização da homofobia e transfobia e que combata, principalmente o oportunismo dos ativistas de Ong’s LGBT ligados a social-democracia que vendem o movimento e suas principais bandeiras para os governos burgueses de plantão e aos mercadores do Pink Money. Estas entidades, infelizmente, salve raras exceções, vivem na sua maioria da miséria LGBT, onde por meio do uso da vulnerabilidade dos mesmos com as doenças sexualmente transmissíveis como o HIV-Aids e as hepatites virais fomentam a criação de ONG’s LGBT para viver do financiamento do Estado e da iniciativa privada.
O assassinato da travesti Dandara Santos, do homem trans Têu Nascimento, e das outras trans como Salomé, Hérica Izidório, Mirella de Carlo, Sophia Castro, Paloma Oliveira, Layza Mello, Agatha Rios, Vicky Spears e Carla Viana; e de centenas de outras trans mortas que deixaram de ser apenas estatística, um número, um triste dado. Mostraram a cara de um país transfóbico que mais mata pessoas trans no mundo e de um governo neoliberal, que além negar cidadania as pessoas trans, pretende pilhar todos os direitos da classe trabalhadora conquistada com muita luta em várias décadas.
É nesta conjuntura triste onde, em seis meses, quase cem pessoas trans tiveram suas vidas ceifadas no país que mais mata travestis, transexuais e homens trans no mundo, que a esquerda socialista e as centrais sindicais do terceiro campo devem ter a tarefa urgente de se tornar um espaço de organização e se propor a organizar efetivamente o(a)s LGBTs de luta, que na sua maioria se organizam de forma individual, ou que de alguma forma ainda têm suas referências e sua militância ligadas às ONGs.
Por isso, é preciso mudar este paradigma para que nós da esquerda socialista sejamos vistos como uma alternativa real e representativa, que organize os trabalhadores e as trabalhadoras LGBTs em todos os locais de trabalho por meio de coletivos e setoriais, os que trabalham no mercado informal, no subemprego e no submundo da prostituição. Para este último, mais de 95% das travestis e transexuais são empurradas, como única forma de trabalho e sobrevivência. Acabam sendo expostas de forma quotidiana à violência e para seu próprio genocídio nas ruas das grandes e médias cidades do país.
Nosso maior desafio é assumirmos o verdadeiro direito das pessoas trans de serem o que são, e deixarem de ser tratadas como cidadãs de segunda classe. Neste contexto, se faz necessário e urgente o processo de reparação histórica em relação à ausência total de cidadania das pessoas trans no Brasil, que só poderá acontecer por meio da construção de políticas afirmativas e cotas na educação e mundo do trabalho.
Nossos sindicatos, movimentos populares, estudantis e sociais da esquerda socialista têm o dever de, junto com a luta pela criminalização da homofobia, transfobia e lgbtfobia no Brasil, defender a bandeira da implementação das políticas afirmativas e de cotas na educação e no mundo do trabalho para as travestis, as transexuais e os homens trans e fomentar ações dentro de nossas entidades que visem qualificar e inserir pessoas trans como trabalhadoras de nossos sindicatos e associações.
Mapa de Assassinatos de Pessoas Trans no Brasil, organizado pela ANTRA
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