Por: Natalia Conti, do Rio de Janeiro, RJ
Da janela ouvimos os fogos, a felicidade da torcida brasileira pela conquista do ouro olímpico no futebol masculino. Como em todos os jogos, há os que torcem contra, os que não estão nem aí, e uma maioria esmagadora de pessoas que vibra junto com a seleção, torce e sofre até a última bola chutada. Assim foi na torcida pelo Brasil em todos os esportes da Rio 2016. É verdade que as Olimpíadas trouxeram muitas contradições, sobretudo num momento de crise econômica, em que a população trabalhadora e jovem do país sofre muito com o desemprego, os cortes de salário e a alta do custo de vida. Mas, há outra contradição que não tem a ver com as Olimpíadas serem realizadas na cidade do Rio, e ela tem a ver com o machismo e misoginia expressos na invisibilidade do futebol feminino.
Neymar é uma fera do futebol. É inegável. Também é inegável que Marta seja uma grande atleta, mundialmente reconhecida. O que há por trás do slogan ‘A Marta é melhor que o Neymar’, muito difundido durante os jogos Olímpicos? Por um lado, um profundo desgaste da seleção masculina, sua total mercantilização, enquadramento no que é conhecido por futebol moderno, e a desmoralização do 7×1 contra a Alemanha, na última Copa. Pairava no ar a atmosfera de que a seleção brasileira de futebol masculino já não era a mesma, grande, melhor do mundo, como já foi. Há também por trás disso, a necessidade de afirmar o futebol feminino como um espaço conquistado por mulheres guerreiras que construíram suas carreiras em condições adversas, desvalorizadas em seu próprio país. No país do futebol, as mulheres não podem ser donas da bola. E Marta, mas também Formiga, Debinha, Cristiane, mostraram a que vieram, brilharam.
O rendimento de Neymar paga o salário de todas as jogadoras da seleção brasileira de futebol. Isso é culpa do Neymar? Não. Apenas reflete não só a desvalorização das mulheres como jogadoras, negadas em sua potencialidade, mas também a invisibilidade. A seleção masculina não joga contra a feminina. Marta é melhor do que o Neymar não porque ela joga mais bola do que ele. Ambos jogam muito, são incríveis. Dizer que Marta é melhor do que o Neymar é político, e quer dizer que ela teve que brigar muito mais para chegar onde está do que ele. Atravessou o bloqueio midiático, deu um belo chapéu na ignorância que relega à segunda categoria o futebol feminino, e fez um golaço contra o machismo nestas Olimpíadas. Marta e toda a seleção feminina de futebol.
Com o ouro ao futebol masculino, pudemos infelizmente observar dezenas de manifestações altamente misóginas no facebook, alegando que Neymar é muito melhor que a Marta “pipoqueira”, que as mulheres deviam voltar para “o seu lugar de levar cerveja aos seus maridos e namorados”. Também coisas do tipo “Aguentem, feminazis”, ou ainda “Chupa, feminazi, o masculino é muito melhor”.
A resposta à misoginia não pode ser a negação do futebol masculino. Como feministas, não reconhecemos a vitória da seleção brasileira de futebol masculino como uma prova de superioridade em relação à seleção de futebol feminino. É lamentável que ainda tenhamos comentários durante os jogos que justificam as habilidades das jogadoras pelo fato de que, supostamente, as mulheres possuem habilidades específicas, visão periférica, que é o que permite que elas encontrem as coisas no guarda-roupa quando nós, no caso os comentaristas globais, precisamos.
O pronunciamento de Marta que seguiu ao jogo que desclassificou a seleção feminina deu bom tom à conversa: é preciso que pare esta distinção, baseada numa lógica misógina e mercadológica perversa. O futebol feminino brasileiro é ouro, porque tem na sua luta de resistência a luta de cada mulher que batalha pra existir neste país com índices exorbitantes de violência doméstica, sexual e institucional contra as mulheres cis, trans, negras, indígenas, lésbicas, bissexuais, travestis. Comemoramos agora o ouro masculino. Mas é por toda a garra, coragem e o enfrentamento contra a invisibilidade, que hoje somos Marta.
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