Por: Yuri Lueska
Recentemente, no desenrolar das notícias envolvendo a Odebrecht e sua lista de favorecidos, um ataque foi proferido contra Luciana Genro. O jornal Valor Econômico, numa postura infeliz, atribui a Genro uma participação inverídica nos esquemas de Caixa dois. Esta notícia serviu de estopim para um debate entre duas correntes socialistas, iniciada por um texto de Glória Trogo (militante do MAIS), e continuada com uma réplica escrita por Bruno Magalhães (militante do MES, corrente interna do PSOL). O debate entre as duas correntes políticas começa do acordo, constatado em fatos, que é falsa a acusação da participação de Luciana Genro nos esquemas de caixa dois. Todavia, debatem dois pontos fundamentais e que apresentam uma polêmica: financiamento das iniciativas das organizações revolucionárias e o caráter da Lava Jato. Esta tréplica visa contribuir para o debate.
Antes de tudo, e sempre é bom ressaltar, e o texto de Glória Trogo começa apontando isto: a calúnia feita pelo periódico Valor Econômico. Bruno Magalhães destaca, corretamente, este fato. É importante sublinhar a necessidade da esquerda socialista, independente das suas polêmicas internas, contra-atacar qualquer calúnia ou ataque feito a qualquer indivíduo ou corrente de suas colunas. A trajetória de Luciana Genro é incomparável com a dos integrantes da lista do Fachin: é incomparável com a trajetória dos parlamentares do PSDB, PMDB, PT e tantos indivíduos sujos na lama da corrupção. O próprio MES é uma corrente formada por militantes honestos e aguerridos, como por exemplo o próprio Bruno Magalhães, que conheço aproximadamente faz uma década.
Bem, indo à tréplica. A réplica de Bruno – que é muito bem escrita, aliás – têm como alicerce uma lógica: estariam em debate duas questões, conteúdo da Lava Jato e financiamento privado, e nestes dois pontos se apresentariam duas concepções políticas, uma idealista (que o autor atribui ao MAIS) e outra concreta (atribuída ao MES). Tal argumentação perpassa o conjunto do texto, e apresenta-se também na conclusão:
“Por fim, a reorganização dos revolucionários precisa se dar através do debate de ações e de um programa concreto para a realidade brasileira, não de receitas abstratas que se utilizam do argumento da “paciência” para se abster de questões centrais da conjuntura.”
Concordamos com Bruno. Apresenta-se aqui duas concepções de política, uma idealista e outra concreta. Discordamos, porém, de quais atores corresponderiam a cada concepção. Ou seja, ao contrário do camarada do MES, acreditamos que são eles que apresentam concepção idealista, e não nós. Nos esforçaremos agora para explicar, começando pelo financiamento das iniciativas das organizações revolucionárias.
Glória, em seu texto publicado no Esquerda Online, manifesta a opinião do MAIS.
“A questão que está em debate não é roubo, caixa dois, ou enriquecimento ilícito, portanto, não se trata de uma questão legal, mas de um problema político de enorme importância. Deve a esquerda se financiar recebendo dinheiro dos empresários? Sejam nas campanhas eleitorais, sejam nos seus projetos políticos como o cursinho Emancipa?
É um problema de classe. Não há qualquer interesse comum entre os trabalhadores e a Odebrecht, a Braskem, a Gerdau, ou o grupo Pão de Açúcar. Argumentar, como faz o MES, em favor da “flexibilidade tática” neste terreno, provoca uma deseducação completa no interior da esquerda.”[1]
Antes de tudo. Existe uma confusão de Bruno. Ele escreve que no texto da Glória há uma crítica ao conjunto do Projeto do Rede Emancipa ou à construção de cursinhos populares. A crítica que a camarada Glória faz não é ao Rede Emancipa ou à tática de cursinhos populares. Quem tiver dúvida, leia o texto dela. A crítica é sobre uma questão específica: financiamento privado nas iniciativas dos revolucionários. E é sobre este aspecto que devemos construir a polêmica, não em fantasmas. Vamos lá. Como foi apontado pela própria Luciana Genro, houve num dado momento um investimento da Odebrecht na iniciativa do Rede Emancipa. O próprio Bruno esclarece:
“Para nós a experiência é central e nos 10 anos de Emancipa houve um debate político intenso e constante a partir das nossas experiências reais. Tivemos companheiros que defendiam somente o financiamento privado, que defendiam cobrança de mensalidades, que defendiam autofinanciamento total, entre outras posições, e foi o conjunto dessas experiências que construíram os princípios da Rede Emancipa de hoje.”
Ainda sobre o financiamento privado em iniciativas de revolucionários, Bruno expõe uma metodologia para apreciar se é justo ou não tal financiamento. Vejamos:
“A qual política interessa determinada tática? Quais suas contradições? Vale a pena? Essas são as perguntas para encarar a luta, para viabilizar de forma concreta seu projeto na realidade.”
Gloria, em seu texto citado alhures defende uma posição que a relação com a iniciativa privada leva os revolucionários a corromperem seu projeto socialista. Bruno também responde sobre isso:
“De qualquer forma, se é quase natural que uma organização política se corrompa pelo acesso a recursos financeiros, a burocratização de Estados de trabalhadores é inevitável. A burocratização petista teve início muito antes da chegada ao governo e sua causa era política, relacionada a uma estratégia de conciliação de classes que foi também a base para o estabelecimento das relações corruptas próprias e hoje explícitas.”
Vamos lá. Aqui temos uma compreensão idealista – e perigosa – sobre financiamento privado. Em primeiro lugar, sobre a questão colocada por Bruno acerca do Estado dos trabalhadores, e aqui ele se refere aos Estados operários. Queremos lembrar o camarada que se trata de um outro estado, um estado de outra classe social, que muito embora apresente os perigos de burocratização, são uma questão de outra natureza.
Em segundo lugar, sobre a burocratização petista. O camarada Bruno aqui expõe uma caracterização perigosa, que tem consequências. O companheiro do MES está correto em dizer que a burocratização do PT é anterior à chegada ao governo. Cabe lembrar ao camarada que já foram citadas as relações de Lula com a Oderbrecht ainda no começo da década de oitenta. Todavia, o camarada erra ao dizer que tal burocratização ocorre simplesmente porque os dirigentes deste partido tinham uma concepção de conciliação de classes. Um simples exame histórico demonstra que não basta um programa revolucionário para estar livre do risco da burocratização.
Porém, e isto é o mais perigoso, aqui se demonstra uma concepção idealista do camarada. Segundo o camarada, a ideia (o programa revolucionário) se impõe à matéria (capital oriundo da iniciativa privada) caso estes financiamentos sejam feitos quando “valem a pena”. Nós do MAIS acreditamos no poder das ideias, mas não desprezamos a força corrupta do capital. Tal força, camaradas, não se apresenta num primeiro momento intransigente. Seria ingênuo acreditar nisto. No primeiro momento, o capital se apresenta despretensioso… pode até parecer que vale a pena… Na primeira dose, não há abstinência, não segunda também não. Na terceira há pouca, dá para se livrar. Porém na quarta, na quinta, a abstinência toma corpo, e nada mais vale a pena sem o capital. Pois já não é possível andar sem ele.
Dizer que não é concreto andar sem este financiamento contradiz nossa história. O próprio texto do Bruno aponta outras iniciativas. Mas não só. Recentemente, a campanha de Freixo no Rio apontou um caminho, onde em financiamento coletivo, vindo dos seus eleitores e militantes, superou mais de um milhão de arrecadamento para a campanha[2].
Mas não só. O estatuto do PSOL, por exemplo, diz que:
“Não serão aceitas contribuições e doações financeiras provindas, direta ou indiretamente, de empresas multinacionais, de empreiteiras e de bancos ou instituições financeiras nacionais e/ou estrangeiros (…)”[3]
Muito embora o PSOL e as iniciativas compartilhadas pelo MES, como o Rede Emancipa, sejam elementos distintos, de natureza diversa; a preocupação – correta – do PSOL não pode ser transposta para as iniciativas dos socialistas? Apontamos isso pois tal preocupação relaciona-se com um risco. O risco de não se misturar, o risco de não se corromper: o risco de não entregar um expediente tão necessário para os socialistas – como seu financiamento – para uma classe social inimiga.
Camaradas, a história demonstrou que é idealismo achar que basta um programa revolucionário para não se burocratizar, para não se corromper. Por isso que a independência financeira tornou-se um princípio: pois ninguém é incorruptível, por mais belas que sejam nossas ideias. Vale realmente a pena correr este risco? O próprio Bruno não demonstrou em seu texto que existem outras possibilidades? Vale mesmo a pena manter, nem que seja em um único e-mail, num único momento, relação financeira com a Oderbrecht? Nós acreditamos que idealista não é aquele que é rigoroso no que concerne independência financeira, mas sim aquele que acredita que suas ideias não interagem – não modificam e são modificadas – pela matéria. A própria história do PT deve servir de exemplo para este debate.
Outra manifestação do texto de Bruno, que expõe uma interpretação idealista da realidade trata-se da Lava Jato. Nós do MAIS compreendemos que a operação Lava Jato não deve ser defendida pela esquerda socialista. Já os camaradas do MES discordam. Bruno apresenta os motivos em seu texto:
“A defesa da Lava Jato não é abstrata, é sim a única forma de defender que as investigações continuem. Esse é outro ponto central que o texto não toca, a defesa da Lava Jato não é confiança e sim exigência de que as investigações vão até o fim e todos corruptos sejam punidos.”
A política dos camaradas, segundo o próprio Bruno, trata-se de uma exigência à operação. Ou seja, trata-se de forçar, a partir de política, a ela ir até o fim: prisão de todos os corruptos. O problema desta lógica é uma: trata-se de uma interpretação parcial, ou melhor, ideal da Lava Jato. Ideal pois não compreende a operação chefiada por Sergio Moro como um todo, mas sim apenas como uma parte. O marxismo, como ferramenta de interação com a realidade, tem como método a compreensão do todo, do total. Esta metodologia deve ser aplicada à Lava Jato.
A Lava Jato não é uma investigação comum sobre corrupção, é uma investigação com método peculiar. Tal método não se trata de uma jabuticaba (uma fruta típica brasileira), tem paternidade: inspira-se, confessamente, noutra operação, a operação Mãos Limpas. Tal operação, ocorrida na Itália, foi inclusive motivo de estudo do juiz paranaense, que escreveu ainda em 2011 trabalhos acadêmicos sobre ela. A ManiPulite (nome em Italiano da operação Mão limpas), compartilhava de métodos para investigação: delação premiada, morosidade da justiça, e, principalmente, o uso da imprensa. Ela era um todo indissociável, não uma soma de partes.
Não pretendo aqui manifestar que os camaradas do MES acreditam na imparcialidade da justiça. O grande problema da lógica dos camaradas é que não observam que a Lava Jato, assim como a ManiPulite, não pode ser interpretada sem considerar seu método, e excluir esta característica da sua compreensão pode levar a um crasso erro político. É evidente que a Lava Jato indiciará caciques do PMDB e do PSDB, mas isso ocorre por um único motivo: sua sobrevivência. Pesquisa publicada em Outubro de 2016 demonstrou que a maioria da população considerava a Lava Jato parcial[4]. Se levarmos em consideração que como método ela existe a partir do seu respaldo popular, caso não indiciasse o PSDB ou PMDB, ela correria o perigo de perder sua base de sustentação: o apoio popular.
Mas vamos nos lembrar: a Lava Jato não é só o indiciamento. Ela é também o relacionamento com a imprensa. Esta é uma parte indissociável dela, é a sua lógica, e é sobre isso que ela se baseia: é isso que ela é. E quem diz isto não é o autor deste texto, é o juiz Sergio Moro. Os camaradas do MES acreditam mesmo que o vazamento parcial das informações, as opiniões da página do facebook “eu MORO com ele”, as declarações políticas do próprio Juiz, tudo isso e muito mais, é um acidente? O próprio embasamento metodológico da operação, não prevê isso? Não é um tanto idealista e abstrato desconsiderar estes elementos, quando, inclusive, o próprio Juiz Sergio Moro considera? Caso os camaradas tenham dúvidas, segue alguns trechos do artigo Considerações sobre a Operação ManiPulite, do próprio Sergio Moro:
“Os responsáveis pela operação manipulite ainda fizeram largo uso da imprensa. Com efeito: Para o desgosto dos líderes do PSI, que, por certo, nunca pararam de manipular a imprensa, a investigação da “manipulite” vazava como uma peneira. Tão logo alguém era preso, detalhes de sua confissão eram veiculados no “L’Expresso”, no “La Republica” e outros jornais e revistas simpatizantes. Apesar de não existir nenhuma sugestão de que algum dos procuradores mais envolvidos com a investigação teria deliberadamente alimentado a imprensa com informações, os vazamentos serviram a um propósito útil. O constante fluxo de revelações manteve o interesse do público elevado e os líderes partidários na defensiva.”[5]
Há sempre o risco de lesão indevida à honra do investigado ou acusado. Cabe aqui, porém, o cuidado na desvelação de fatos relativos à investigação, e não a proibição abstrata de divulgação, pois a publicidade tem objetivos legítimos e que não podem ser alcançados por outros meios.[6]
Infelizmente, os camaradas do MES desconsideram este aspecto da Lava Jato, compreendendo esta em apenas um de seus expedientes. Ao fazer esta seleção, isolam um aspecto somente da operação e tornam este absoluto. Uma compreensão idealista da realidade. A operação Lava Jato tem objetivo e método para alcançar sua meta. Não compreender isto significa confundi-la com a luta contra a corrupção ou, – como Bruno apontou quando disse que é impossível tirar a meia sem retirar os calçados – compreender que só é possível lutar contra a corrupção sendo a favor da Lava Jato. Uma lógica formal, idealista. Outra coisa bem distinta é, a partir da caracterização de que ela é uma operação com um objetivo específico e claro, objetivo antagonista com o da classe trabalhadora, pensar qual é a melhor política. Mas inverter a lógica, isto sim, é tentar “retirar a meia antes do sapato”.
Tanto na questão da Lava Jato, como na questão do financiamento privado, os camaradas do MES, na argumentação de Bruno, tratam esta questão de maneira formal e idealista. E isto é perigoso, pois ao cair nesta lógica os camaradas acham justo tanto defender a Lava Jato, operação cúmplice do processo de precarização da classe trabalhadora brasileira, como também achar que é algo tático receber, ou não, financiamento para suas iniciativas, da Oderbrecht, principal corruptora do estado brasileiro.
Camarada Bruno Magalhães, pensar concretamente não é interpretar a realidade como uma sequência lógica de fatos ou elementos; é compreender o todo, sua gênese, sua essência, suas tendências e seus possíveis rumos.
[3] Capítulo XI, Art 71, Paragrafo único. Ver em
[6]Ibdem.
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