Por Valério Arcary, Colunista do Esquerda Online
Muita gente inteligente e honesta acredita que a luta política é uma luta de ideias. Só que não é tão simples. A luta política é uma luta que gira em torno de interesses sociais e pessoais. Nem sempre nesta ordem, claro. As ideias são somente o vocabulário das análises, plataformas, programas e propostas. Os que lutam por ideias e acreditam, sinceramente, em seu desprendimento são considerados idealistas. E o são.
Mas não no bom sentido. Não no sentido de altruísmo.
Porque imaginam, ingenuamente, que suas argumentações merecem ser consideradas desconectadas da terrível pressão do meio em que estão inseridos. São idealistas somente porque idealizam a realidade, ou seja, os outros e, em primeiro lugar, a si mesmos.
O tema das ideologias me parece importante quando a argumentação liberal insiste em repetir que só há uma boa solução técnica para cada problema. O futuro da Previdência pública, por exemplo. Isso é uma simplificação infantil. Há sempre alternativas. Cada uma com seus custos e benefícios. Fazemos escolhas o tempo todo. Aceitamos algumas perdas para garantir ganhos. Fazemos cálculos. Sempre há diferentes soluções para cada problema.
Entramos aqui em um terreno delicado e até minado da discussão sobre o conceito de ideologia em Marx. Talvez o melhor caminho seja tentar colocar o foco em uma perspectiva histórica. A segunda geração marxista desconhecia a Ideologia Alemã, que permaneceu inédito até 1920: assim Plekanov, Lênin, Trotsky, Gramsci, entre outros, não conheciam, pelo menos nas suas obras iniciais, o sentido mais crítico que Marx atribuía ao conceito.
Generalizaram-se então duas apreciações aparentadas que podemos resumir como:
(a)ideologia como a totalidade das formas de consciência social, que voltou a estar muito em voga hoje, com a chamada crise dos paradigmas, inclusive a crítica à racionalidade e às excessivas pretensões do método científico;
(b) Ideologia como as idéias filosófico-histórico-politicas que expressam a visão do mundo e os interesses de uma classe social.
Bernstein parece ter sido o primeiro a caracterizar o próprio marxismo como ideologia (isto é, como uma expressão da visão do proletariado, e ainda assim uma tentativa de apreensão parcial, com resíduos idealistas-hegelianos) sem que essa crítica tivesse tido a ressonância de uma “boutade” – uma provocação – porque, pelo menos por isso, foi poupado, o que indicaria que seus interlocutores, Kautsky, Rosa e Plekanov, por exemplo, não consideraram esta questão um escândalo: afinal no famoso Prefácio, o próprio Marx se refere “às formas jurídicas, político, filosóficas, em suma, formas ideológicas pelas quais os homens tomam consciência desse conflito e o solucionam pela luta”, o que autorizaria o uso do conceito despido de uma coloração mais crítica, ou restrita e negativa.
Numa direção exatamente oposta a essa, também foi comum a utilização do conceito como expressão de falsa consciência, muito freqüente nas décadas de maior influência do estruturalismo de Althusser: na verdade, uma leitura mais próxima ao sentido, ou aos vários sentidos, com que o conceito parece ter sido utilizado por Marx.
Mas, também, imprecisa e, talvez, até incorreta, porque permitiria a confusão de ideologia com qualquer tipo de erro, o que não era o sentido do conceito para Marx. Nas obras de juventude o conceito de ideologia parece se restringir à qualificação dos elos entre consciência e existência.
Resume a análise das relações invertidas entre essas duas esferas ou dimensões: elas expressariam tanto uma distorção do pensamento que nasce das contradições sociais, quanto a própria distorção da realidade busca compensações no mundo do pensamento, seja ele religioso ou laico. Assim, a ideologia tanto oculta como explica, tanto mascara quanto revela, porque ela nasce de uma dupla inversão, na realidade e no pensamento, que tenta explicar a realidade.
Esta ideia da dupla inversão continuou a ser usada por Marx quando analisa nos Grundisse as formas fenomenológicas do Capital, as aparências do seu movimento, e insiste na crítica do mercado como uma forma de regulação transitória e efêmera, anterior ao capitalismo, porem também histórica. Assim, também, por exemplo a religião, é definida metaforicamente como o ópio do povo, como a moral em um mundo imoral, como o sentimento em um mundo sem sentimentos: o que contem os elementos da dupla inversão.
Mas na Ideologia Alemã, a definição de ideologia era mais elaborada e ao mesmo tempo, mais restrita: as ideologias seriam a expressão do atraso histórico material, encoberto pelos antagonismos sociais, e os homens sendo incapazes de encontrar uma solução para essas contradições na prática histórica, tenderiam a buscar compensações teóricas, que ocultavam e disfarçavam as contradições da realidade, e nesse sentido, ajudariam a preservá-las. A definição é portanto negativa e restrita: negativa porque compreende a ideologia como um ocultamento da realidade, uma distorção das contradições sociais, uma representação parcial, mas que se pretende universal, e tem a pretensão de apreender a totalidade para sempre; restrita porque Marx não está identificando ideologia com todo tipo de erro. As relações entre idéias ideológicas e não ideológicas não se confundem portanto com a relação epistemológica entre erro e verdade.
A seguir um extrato de uma carta de Engels a Merhing, sobre o tema das ideologias, que parece interessante porque contem elementos auto-críticos:
“Principalmente, todos nós atribuímos e tivemos de atribuir o máximo da importância à dedução das concepções políticas, jurídicas e outras concepções ideológicas, bem como aos atos que delas derivam, a partir dos factos econômicos fundamentais. Ao fazermos isso, descuramos o lado formal em troca do conteúdo – a maneira como surgem essas concepções, etc.(…).A ideologia é um processo que o presumível pensador segue, sem dúvida conscientemente, mas com uma consciência falsa. As verdadeiras forças motrizes que o impelem são-lhe desconhecidas, pois, se assim não fosse, não se trataria de um processo ideológico. Por isso, é levado a imaginar para si próprio forças motrizes falsas ou aparentes. Como se trata de um processo intelectual, deduz-lhe o conteúdo, bem como a forma, do pensamento puro, quer do próprio pensamento, quer do dos seus predecessores. Trabalha exclusivamente com materiais de ordem intelectual(…) O ideólogo histórico (histórico deve ser tomado aqui em um sentido colectivo, por político, jurídico, filosófico, teológico, em resumo, por todos os domínios que pertencem à sociedade, e não apenas à natureza) – o ideólogo histórico, dizíamos, encontra em cada domínio científico uma matéria que se formou de maneira independente no pensamento das gerações anteriores e que passou, no cérebro dessas gerações sucessivas, pela sua própria série independente de desenvolvimentos.(…)É esta aparência de história, independente das constituições de Estado, dos sistemas jurídicos, das concepções ideológicas em cada campo particular que, mais do que qualquer outra coisa, cega a maioria das pessoas. Quando Lutero e Calvino “ultrapassam” a religião católica oficial, quando Hegel “ultrapassa’ Fichte e Kant e quando Rousseau “ultrapassa’ indiretamente, com o seu Contrato Social republicano, Montesquieu, o constitucional, esses acontecimentos permanecem no interior da teologia, da filosofia, da ciência política, constituem fases na história desses setores do pensamento e deles não saem. E, desde que a ilusão burguesa da perpetuidade e da perfeição absoluta da produção capitalista se veio juntar a isso, a vitória dos fisiocratas e de A. Smith sobre os mercantilistas passa, ela própria, é bom de ver, por uma simples vitória da ideia, não como o reflexo intelectual de fatos econômicos modificados, mas como a compreensão exata, e por fim adquirida, de condições reais existiram em todos os tempos e em todos os locais. Se Ricardo Coração de Leão e Filipe Augusto tivessem instaurado o liberalismo econômico, em vez de se dedicarem às Cruzadas, ter-nos-iam poupado quinhentos anos de miséria e de ignorância.”
ENGELS, Friedrich. “Carta a Mehring de 14 de julho de 1893” In MARX-ENGELS. Sobre a literatura e a arte. Lisboa, Estampa, 1974. [Coleção teoria7] p.45.
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