Por: Marcus Correia, de São Paulo, SP
Ocupando todo o trigésimo quarto andar do suntuoso Empire State Building, na 5ª Avenida, em Nova York, está sediada uma das mais conhecidas organizações não-governamentais do mundo, a Human Rights Watch, autoproclamada de defesa dos direitos humanos. O edifício que abriga a entidade, um dos símbolos arquitetônicos máximos do capitalismo moderno, no coração de Manhattan, não poderia ser mais apropriado. Construído durante a crise de 1929, em estilo art déco, é um dos prédios mais altos do mundo, com cento e dois andares, com vista panorâmica para a cidade de Nova York e cujo nome também não poderia ser cinicamente melhor: Empire State!
No topo de duas grandes colunas que ornam a entrada principal do edifício, ostentam-se exuberantes grifos, seres mitológicos da Antiguidade, com corpo de leão, cabeça e asas de águia, que tinham por particularidade colocarem ovos de ouro e eram considerados guardiões desse metal precioso. O edifício não é apenas um conhecido ponto turístico da cidade, um espaço físico, mas representa um lugar social, um lugar de poder, lugar do poder econômico do capitalismo estadunidense.
É de tal lugar físico e social que os executivos da Human Rights Watch elaboram relatórios sobre violações aos direitos humanos pelo globo, que são amplamente divulgados pelos veículos de comunicação de massa, tendo o poder de provocarem sanções a países e, até mesmo, o de desestabilizarem governos e convulsionarem sociedades.
O entra-e-sai de engravatados no Empire State Building, em Nova York, contrasta com o entra-e-sai de trabalhadores nas entradas das estações de metrô de São Paulo, onde alguns jovens, uniformizados com coletes azuis, amarelos, verdes, ganhando pouco mais de um salário mínimo, possivelmente sem registro em carteira, sem sindicalização, trabalham na arrecadação de dinheiro dos transeuntes mais apressados em favor dos “direitos humanos” na África, na Ásia e na América Latina.
Mas, afinal, o que é a Human Rights Watch?
Entre 1972 e 1975, a cidade de Helsinki, capital da Finlândia, sediou uma série de conferências diplomáticas, inicialmente convocadas pela URSS e que contou com a adesão dos EUA e do Canadá e de mais trinta e dois países europeus, para discutir questões internacionais candentes do período. Os debates não deixaram de expressar a polarização da Guerra Fria e foram hegemonizados por duas grandes linhas antagônicas. Enquanto o intuito da URSS era discutir e garantir a permanência de uma política de não-intervenção no seu território e nos países da sua zona de influência, os EUA utilizaram as reuniões para denunciar violações a direitos humanos no campo soviético [1].
De Helsinki, saiu a agenda para o próximo encontro, que ocorreria em Belgrado em 1977, com o objetivo de dar prosseguimento às conferências anteriores e acompanhar os acordos firmados. Um dos impactos das conferências de Helsinki foi a abertura de várias entidades de direitos humanos e liberdade de expressão, tanto no Leste Europeu como na Europa Ocidental, promovidas por dissidentes soviéticos. Um Helsinki Watch foi aberto em Moscou e logo em seguida seus membros foram presos e condenados por “agitação e propaganda antisoviética”.
Durante os anos em que aconteceram as conferências na Finlândia, os EUA passavam por uma profunda desmoralização na política interna e externa do país. As principais razões eram o caso Watergate, que levou à abertura do processo de impeachment contra o presidente Richard Nixon e à sua renúncia em agosto de 1974; a Guerra do Vietnã, que encerrou-se em 1975, com forte oposição de setores internos no país; e o apoio que o governo deu a regimes ditatoriais sanguinários, a exemplo dos da América Latina, cujas notícias sobre as atrocidades começaram a atingir a opinião pública, como o assassinato de Salvador Allende no Chile, em 1973. Ademais, a economia mundial abatia-se sob a crise econômica de 1973. [2]
No campo da política externa, uma das saídas para a desmoralização veio com a formulação de um novo figurino nacional, uma nova roupagem ideológica. A mudança foi captaneada pela campanha e eleição do presidente James “Jimmy” Earl Carter, do Partido Democrata, que assumiu o cargo em janeiro de 1977. [3]
O objetivo da nova administração seria então reestabelecer um imagem moral pós-Vietnã e pós-Watergate e se concretizaria pela extensão e intensificação (ou cooptação) da defesa dos direitos humanos no mundo. As discussões em Helsinki haviam tornado-se um instrumento tanto da oposição interna à desmoralização dos governos republicanos anteriores a Carter, nos EUA, como de oposição à URSS na política internacional. Tal agenda envolveu não apenas o aparato estatal mas também empresas e entidades da dita sociedade civil.
No final de 1977, para as conferências de Belgrado, o presidente Jimmy Carter nomeou como representante diplomático dos EUA Arthur Joseph Goldberg. Este indivíduo era um advogado trabalhista estadunidense, filho de imigrantes ucranianos, que havia sido ministro do Trabalho do presidente John F. Kennedy (1960-62), ex-membro da Corte Suprema (1963-65) e ex-embaixador dos EUA na ONU (1965-1968)[4].
Quando Goldberg retornou, alegando que o tema dos direitos humanos não havia sido devidamente discutido e inspirando-se na experiência européia pós-Helsinki, propôs a construção, também nos EUA, de um comitê privado unilateral de acompanhamento de violações aos direitos humanos no Leste Europeu e na URSS. [5]
Para concretizar e obter apoio à sua idéia nos EUA, Goldberg procurou um antigo colega de governo, McGeorge Bundy, à época, presidente da Fundação Ford. McGeorge Bundy havia sido Assessor de Segurança Nacional dos presidentes John F. Kennedy e Lindon Johnson, enquanto Goldberg era ministro do Trabalho e membro da Suprema Corte. [6] Em 1978, dirigindo o expressivo orçamento da Fundação Ford, McGeorge Bundy interessou-se pelo projeto de montagem de uma estrutura burocrática privada unilateral de observação dos direitos humanos e foi capaz de levá-lo adiante. [7]
A primeira das estruturas foi o U. S. Helsinki Watch Committee ou apenas Helsinki Watch estadunidense, cujo objeto de interesse era o campo soviético. Nos anos seguintes, foram abertos outros comitês no país: Africa Watch, America Watch, Asia Watch e Middle East Watch. Em 1988, todos foram reunidos na organização atualmente intitulada Human Rights Watch, sediada em Nova York, que possibilitou toda uma articulação centralizada da rede internacional de observatórios derivada de Helsinki.
Porém, as biografias de Arthur J. Goldberg e McGeorge Bundy não negam que a preocupação de ambos com os direitos humanos foi circunstancial e motivada fundamentalmente pelos interesses nacionais dos EUA. Arthur J. Goldberg, por ocasião da II Guerra Mundial, em 1942, então com 34 anos de idade, ingressou no Exército estadunidense. Na Europa, foi lotado no Office of Strategic Service, o órgão precursor da CIA, tornando-se chefe de uma de suas principais seções até 1944 e chegando à patente de major. A Enclyclopedia of the Central of Intelligence Agency, publicada em 2003, traz inclusive um verbete sobre ele. [8]
Já McGeorge Bundy, ocupando a assessoria presidencial de segurança nacional dos EUA, foi um dos responsáveis por formular a escalada militar dos EUA na Guerra do Vietnã em 1964, bem como por articular os golpes militares na América Latina, a exemplo do Brasil. Outra função sua era acompanhar as atividades secretas da CIA, como no caso da invasão da Baía dos Porcos em Cuba. Seu irmão, William Bundy era conhecido funcionário da CIA e genro de Allen Dulles, diretor da agência entre 1953 e 1961, com quem Goldberg também havia trabalhado durante a II Guerra. Os irmãos Bundy figuram em várias publicações sobre as atividades do serviço de inteligência dos EUA durante a Guerra Fria [9].
Ocorre que, no final dos anos 1970, no início da chamada globalização, a cooptação da defesa dos direitos humanos pela política externa estadunidense, conforme a expressão de James Peck (cf. notas), em conjunto com toda sorte de entidades privadas, tornou-se um instrumento eficaz para a aplicação de uma agenda econômica para o país. Em decorrência, entre outros fatores, da crise de 1973, as transnacionais estadunidenses e européias necessitavam da expansão de mercados consumidores, somada à crescente demanda industrial por fontes energéticas, como petróleo e gás.
O jogo econômico estava na abertura de mercados e nas privatizações de grandes empresas estatais e recursos naturais daqueles regimes considerados violadores dos direitos humanos e não-alinhados à política de “liberdades democráticas” de Washington. Portanto, a suposta reestruturação moral pós-Vietnã e pós-Watergate carregava a continuidade de uma política externa econômica imperialista dos governos anteriores.
No mesmo período, a massificação do consumo dos produtos oriundos da revolução da microeletrônica, sobretudo, na área das telecomunicações, como a expansão da venda de rádios, de parelhos televisores, de videocassetes, do aparecimento dos primeiros aparelhos celulares e dos primeiros microcomputadores, permitiu a ampliação da circulação de informações. O que possibilitou que a nova imagem moral dos EUA tivesse grande divulgação pelo globo, auxiliada pelo complexo-industrial-audiovisual da Califórnia.
Durante as administrações posteriores de Ronald Reagan e George H. W. Bush, o tabuleiro desdobrou-se nas chamadas Revoluções Coloridas, no Leste Europeu, no desmantelamento da URSS, bem como na “abertura” dos regimes da América Latina. [10]
Mas, apesar do estandarte da defesa humanitária, a administração de Jimmy Carter promoveu e incentivou guerras, golpes de Estado e violações ao direito internacional e aos direitos humanos, sobretudo, na Ásia Central e no Oriente Médio. Quando assumiu o governo, Jimmy Carter convidou ninguém menos que Zigbiniew Brzezinski para ocupar o cargo de Assessor de Segurança Nacional. Zigbiniew Brzezinski é um polonês-americano, intelectual da geopolítica, que foi o grande responsável pela reformulação de uma política externa de combate antisoviético (e anticomunista), a partir do que foi definido pelos hawks como um “Green Belt”, i.e., um “cinturão verde” [11].
A idéia central era fomentar grupos fundamentalistas anticomunistas nos países de maioria islâmica no entorno da URSS (ou dentro dela) como um meio de enfraquecimento do país. Ou seja, apoiar e subsidiar grupos fundamentalistas islâmicos dos países da Ásia Central, do Cáucaso e do Oriente Médio para fazer uma espécie de cerco geopolítico à URSS ao promover regimes semiteocráticos e anticomunistas, contra “ateus” e “infiéis”.
Um exemplo significativo foi o financiamento dos EUA aos mujahidins, no Afeganistão, a partir de 1979, e a promoção de uma guerra por procuração, auxiliada pelos serviços secretos paquistanês e saudita em contato com Osama Bin Laden, do que, na visão do imperialismo, viria a ser o “Vietnã soviético” [12]. Além da posição estratégica do Afeganistão em face dos recursos naturais da região, o intuito era ocasionar uma desmoralização à URSS semelhante ao que ocorrera com os EUA na Guerra do Vietnã.
É evidente que havia (e há) violações a direitos humanos em quase todos os países do globo. No entanto, o que é necessário levar em consideração é que o Estado estadunidense é responsável por toda a sorte de violações e utiliza do discurso de defesa dos direitos humanos, seja por meio da sua diplomacia seja por meio das suas organizações não-governamentais, para promover uma agenda de dominação imperialista, sobretudo, no campo econômico.
Durante o governo de Jimmy Carter, tal cooptação da defesa dos direitos humanos pela política externa dos EUA, associado ao financiamento de grupos locais em países não-alinhados, deu o tom do chamado terceiro setor nesse campo de ativismo, tom que permanece até os dias atuais.
Um breve pesquisa sobre o “quem-é-quem” no staff recente da Human Rights Watch pode fornecer indícios bastante significativos dessa permanência, i.e., a de que ainda na atualidade, existe uma motivação econômica no hasteamento, quando feito por Washington e por suas organizações não-governamentais, da bandeira dos direitos humanos. Assim como os “founding fathers”da entidade (Goldberg e Bundy), a maior parte dos seus quadros atuais são oriundos de grandes corporações do sistema financeiro, de think tanks, como o Council on Foreign Relations, ou do aparato estatal do país, quando, não raro, com fortes conexões com os órgãos de inteligência do país.
Por fim, a Human Rights Watch pode ser comparada com os grifos mitológicos, que a entrada principal do Empire State Building ostenta. Com cabeça e asas de águia, a entidade enxerga do alto e bem distante; com corpo de leão, é temida pela força; porém, sua particularidade é colocar ovos de ouro e protegê-los.
NOTAS:
1. EVANS, Graham; NEWNHAM, Jeffrey. The Penguin Dictionary of Internacional Relations. NY/London: Penguin Books, 1998.
2. Sobre o contexto de desmoralização Cf. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. Formação do Império Americano: da guerra contra a Espanha à guerra no Iraque. Rio de Janeiro: Civiliação Brasileira, 2014. (4ª edição).
3. Idem.
4. SHILS, Edward B. Arthur J. Goldberg: proof of the American dream. Monthly Labor Review. January, 1997.
5. Sobre o contexto de criação do Helsinki Watch nos EUA e a relação entre Goldberg e Bundy Cf. PECK, James. Ideal Illusions: How the U.S. Government Co-Opted Human Rights. New York: Metropolitan Books, 2010.
6. STONOR, Francis Saunders. The Cultural Cold War: the CIA and the world of arts and letters. New York/London: The New Press, 1967.; MARCHETTI, Victor & MARKS, John D. The CIA and the cult of intelligence. [S.n.]: Langley, Virginia, 1974; BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz, op. cit., 2014.
7. PECK, James. Op. cit., 2010.
8. SHILS, Edward B. Op. cit; SMITH JR, W. Thomas. Encycopledia of the Central Intelligence Agency. New York: Fact on File. Inc., 2003.
9. STONOR, Francis Saunders. The Cultural Cold War: the CIA and the world of arts and letters. New York/London: The New Press, 1967.; MARCHETTI, Victor & MARKS, John D. The CIA and the cult of intelligence. [S.n.]: Langley, Virginia, 1974; BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz, op. cit., 2014.
10. A exemplo desse fenômeno, vale gastar um pouco de tempo assistindo (a contrapelo) ao documentário Chuck Norris vs. Comunismo, disponível no Netflix. O filme procura mostrar como o contrabando de videocassetes e de filmes estadunidenses, em fitas VHS, na Romênia, (contrabando esse auxiliado pelos serviços secretos, conforme mostra o documentário), associado à idéia de “liberdade” difundida através dos filmes de Hollywood, contribuíram para criar um caldo cultural de contestação, com consequência na derrubada do regime.
11. A cor verde referia-se ao Islã, conforme explica Moniz Bandeira. BANDEIRA, Luiz Alberto Moniz. A Segunda Guerra Fria: geopolítica e dimensão estratégica dos EUA. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
12. Idem.
LEIA TAMBÉM:
Discutindo a Fundação Ford – 4 Partes
http://esquerdaonline.com.br.br/2016/12/10/discutindo-a-fundacao-ford-parte-1-de-4/
http://esquerdaonline.com.br.br/2016/12/13/discutindo-a-fundacao-ford-parte-2-de-4/
http://esquerdaonline.com.br.br/2016/12/22/discutindo-a-fundacao-ford-parte-3-de-4/
http://esquerdaonline.com.br.br/2017/01/22/discutindo-a-fundacao-ford-parte-4-de-4/
Open Society: sociedade aberta para quem?
http://blog.esquerdaonline.com.br/?p=7704
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