Por Lucas Vidal Silva Moraes, de Fortaleza, CE
Paola, Hérica, Dandara. Pessoas de locais diferentes, características físicas diferentes, mas com algo em comum: serem vítimas da transfobia. Paola, travesti morta a pauladas na cidade de Russas, Ceará. Hérica, travesti espancada em um viaduto na Avenida José Bastos, em Fortaleza, Ceará. Dandara, travesti espancada e morta no bairro do Bom Jardim, em Fortaleza, Ceará. Todos esses crimes com requintes de crueldade dão forma concreta e cotidiana a transfobia, ódio a pessoas transgêneros. Essas mulheres em seus terríveis enredos nos contam uma história de um Estado marcado pela morte e pelo preconceito.
De acordo com pesquisas de 2015 do grupo Transgender Europe, o Brasil é o país que mais mata travestis e transexuais no mundo. Esse posto ainda não foi perdido e continuamos com esse título vergonhoso. Os assassinatos e episódios de violência contra essas pessoas têm seu fundamento nas construções de gênero que são naturalizadas em nosso cotidiano, nos noticiários e nos meios de comunicação. As piadas com travestis, as brincadeiras na escola, os tabus sobre o corpo criado também por uma cultura fundamentalista religiosa e a constante estigmatização do Estado que mata e violenta essas pessoas através da invisibilidade e da ação policial, são consequências não apenas de uma invisibilidade, mas também de um projeto de sociedade patriarcal.
Os fatos que acompanhamos sobre a população trans nos mostram que grande parte dessa violência é pouco discutida e longe de ser sanada. Apesar dos inúmeros canais de diálogo criados como Coordenadorias LGBT, Secretarias que são importantes para captação das demandas dessa população, poucos ainda são as reais propostas para sanar a situação precária na qual se encontram essas pessoas dentro de um país culturalmente preconceituoso e transfóbico.
As travestis e transexuais têm inúmeras dificuldades em termos de acesso a educação. Diante da violência no cotidiano escolar e a falta de uma proposta educacional que discuta o preconceito e as desigualdades de gênero, vemos diversas travestis abandonarem a escola ou a universidade para trabalharem, dentre elas, muitas encontram como única saída às ruas. Já as mulheres e homens transexuais precisam se submeter a análise psiquiátrica para serem enquadrados dentro da chamada “disforia de gênero”, ou seja, um distúrbio de personalidade, quando na verdade ser transgênero é uma construção social, assim como ser cisgênero.
Todas essas problemáticas de cunho institucional só se agravam quando olhamos para a atual situação da população Trans no contexto das periferias. O descaso no acesso a saúde, a falta de atendimento especializado e toda uma estigmatização dentro do mercado de trabalho (que se abre ainda de maneira tímida) nos mostram que o Brasil patriarcal não morreu com a colonização. A superioridade do masculino sobre o feminino, as hierarquias que perpassam as relações de gênero, a estigmatização transgênero encontram em uma sociedade brasileira patriarcal um local fértil para emergirem. Toda a forma de vida desviante dos padrões estabelecidos pela preciosa família tradicional brasileira ainda se encontram perseguidas por essas regras medievais e encontram na morte a maioria de seus desfechos.
As agressões e assassinatos citados também possuem algo em comum: a impunidade. Paola nem é mais citada em nenhuma discussão sobre a transfobia. Hérica ainda espera pela punição de seus agressores. Dandara, morta e exposta através de vídeo no Facebook, encontra em determinados comentários a culpabilização: “alguma coisa ela fez”… Diante de tanta revolta vemos uma polícia apática que precisa ser pressionada para investigar ou prestar esclarecimentos diante do ocorrido, não a toa. O braço armado do Estado, a polícia, muitas vezes é a culpada por ceifar essas vidas de maneira direta ou indireta.
Todos esses fatores como impunidade, preconceito cultural e violência fazem com que a transfobia engrosse as estatísticas do feminicídio no Brasil. Apesar de algumas correntes do movimento feminista não concordarem com essa afirmação, uma conquista recente das mulheres transexuais e travestis foi a sua inclusão na Lei Maria da Penha a partir do ano de 2016. Ou seja, casos de violência contra essa parte da população transgênero pode ser denunciada na delegacia da mulher e tomar todas as medidas cabíveis por tal. Mas o que vemos são equipamentos que já precários para atender a demanda de mulheres cisgênero, também estão longe de estarem preparados para receber mulheres transexuais ou travestis.
As políticas para mulheres, até os anos 2000, não contemplavam a grande maioria da população de travestis e transexuais. O movimento político dessa população, desde seu surgimento era e é constantemente atrelado ao movimento LGBT que pautava questões acerca da liberdade sexual e liberdade do regime da heterossexualidade obrigatória. Essas políticas públicas em sua grande parte não especificavam a possibilidade de contemplar essa população, evidenciando uma concepção da categoria mulher concebida pela ótica do sexo biológico, ou seja, não comportando mulheres transgênero, nem travestis.
Nesse sentido, a transexualidade precisa ser compreendida dentro da esfera do gênero, já que uma pessoa por ser transexual não necessariamente virá a ser homossexual, lésbica, bissexual, pansexual ou assumir outra sexualidade vinculada às suas preferências sexuais. A transgeneridade se relaciona com a maneira de viver o corpo em sua dimensão social, ou seja, se uma pessoa nasce com um pênis e não se identifica como homem, mas sim como mulher (não com o gênero masculino, mas com o gênero feminino), deve ser respeitada em sua identidade e tratada como tal.
Parece pouco, óbvio e mínimo, mas a invisibilidade custa caro a milhares de mulheres trans e travestis que nem são citadas nas reportagens. Essa invisibilidade é discutida a sombra da norma, mas também tem fundamentos econômicos. Para capitalistas é interessante promover a diferenciação social e as desigualdades, paga-se diferente, lucra-se mais. A invisibilidade social não é apenas sobre representatividade, é quando o mercado e o Estado ditam as regras do jogo das desigualdades sociais. Combater essa invisibilidade trata de lembrar-se daquelas que morreram no cotidiano, que tombaram na batalha da sobrevivência diária por não terem outros caminhos. As esquecidas por nós, mas não pela terra.
A transfobia é necessária ao Estado patriarcal, pois cria corpos marginais, passíveis de superexploração e extermínio. Recria diferenciação. Faz com que periferia se volte contra periferia. Trabalhador se revolte contra trabalhadora. Atentemos a isso e comecemos a nos revisitar. Pense sobre sua piada feita a custa da vida de travestis, repense sobre a condenação de uma criança porque ela brinca com “brinquedos de menino ou menina”, enterre de vez essa banalização da violência e culpabilização da vítima! Pelo fim da violência contra travestis e transexuais!
Foto: Vídeo do assassinato da travesti Dandara, em fortaleza,CE.
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