“Quem não sabe contra quem luta não pode vencer”
Sabedoria popular chinesa
“Se você está em uma mesa de poker e não sabe quem é o otário, é porque você é o otário”
Sabedoria popular brasileira
1 Embora o Brasil seja menos pobre e ignorante que há quarenta anos, não é menos injusto. O balanço histórico é devastador. A desigualdade social diminuiu, mas mudou muito pouco. Tudo é dramaticamente, lento. Pior, aquilo que não avança, recua. A direção lulista se deixou transformar em refém da operação LavaJato, desmoralizou-se diante de parcelas grandes da classe trabalhadora e da juventude, e entregou as classes médias exasperadas (pelas denúncias de corrupção, pela inflação nos serviços, pelo aumento dos impostos, etc.) nas mãos do poder da “Avenida Paulista” (sede de grandes bancos e corporações), abrindo o caminho para um governo Temer ultrarreacionário. E depois Temer entregou nas mãos da extrema-direita e Bolsonaro. Não foi para isso que uma geração lutou tanto. Lula conquistou, entre 1978 e 1989, a confiança da imensa maioria da vanguarda operária e popular. A proeminência de Lula foi uma expressão da grandeza social do proletariado brasileiro e, paradoxalmente, de sua simplicidade ou inocência política. Uma classe trabalhadora jovem e com pouca instrução, recém-deslocada dos confins miseráveis das regiões mais pobres, sem experiência de luta sindical anterior, sem tradição de organização política independente, porém, concentrada em grandes regiões metropolitanas de norte a sul e, nos setores mais organizados, com uma indomável disposição de luta. As ilusões reformistas de que seria possível mudar a sociedade sem um conflito de grandes proporções, sem uma ruptura com a classe dominante, eram majoritárias e a estratégia do “Lula lá” embalou as expectativas de uma geração. Essa experiência histórica ainda não foi superada. Mas o governo Lula III não pode se beneficiar da situação atípica de vinte anos atrás. São muitas as diferenças. A principal é que há uma corrente de extrema-direita liderada por neofascistas que querem voltar ao poder.
2 O projeto do governo Lula é aproveitar o contexto internacional de relativa recuperação econômica, após o impacto da pandemia, com a esperança que se mantenha dinamizado, outra vez pela China. Ambiciona manter um pacto com a fração burguesa que o apoiou no segundo turno de 2022 contra Bolsonaro e integrou o ministério, a governabilidade no Congresso com o centrão, para garantir a continuidade do crescimento e a realização de reformas. No primeiro ano de mandato a PEC da transição permitiu crescimento próximo a 3% e elevação da renda do trabalho em 12%, a ampliação do programa Bolsa-Família que em 13 dos 27 Estados beneficia mais pessoas que aqueles trabalhadores com carteira assinada, a recuperação do salário-mínimo, a reestruturação do IBAMA e da FUNAI, o novo programa Pé de Meia para os estudantes do ensino médio, a recuperação do Plano Nacional de Vacinação, o apoio dos Bancos públicos para o Desenrola que favorece as famílias endividadas, a ampliação de acesso ao crédito com a queda das taxas de juros, a expansão de mais 100 unidades dos Institutos Federais, além de outras iniciativas que beneficiam as massas populares. Ambiciona o crescimento do PIB, mantido em 2024 acima de 3%, preservando controle da inflação abaixo de 5%, insistindo em um ajuste fiscal gradual, apostando na elevação do investimento privado estrangeiro e, também, nacional através do arcabouço fiscal que substituiu o Teto de Gastos. Em resumo, uma aposta em um reformismo “fraco”, mas com uma lenta e contínua melhora das condições de vida, e a garantia da preservação da democracia. Só que no Brasil, se é verdade que até mesmo pequenas reformas mudam a vida de milhões, também é verdade que não é possível vencer as eleições sem apoio na maioria da classe trabalhadora. Os bons indicadores econômicos não serão suficientes. Há uma disputa ideológica implacável e ininterrupta. O lulismo preserva a confiança dos mais pobres, mas o bolsonarismo avançou entre os trabalhadores “remediados” que ganham acima de dois salários-mínimos, e acumula forças na “guerra cultural” com o apoio das igrejas neopentecostais. O povo está dividido e o desenlace de 2026 é imprevisível.
3 A estratégia repete, essencialmente, o projeto que foi sendo construído após a vitória eleitoral de 2002, e permitiu as vitórias de 2006, 2010, 2014 e, perigosamente, de 2022. As premissas que o sustentam repousam em três cálculos. O primeiro é uma aposta de que o perigo de uma nova conspiração, como aquela que resultou no golpe institucional que derrubou o governo Dilma Rousseff, estaria descartado, por enquanto. O segundo é a avaliação de que a inelegibilidade de Bolsonaro torna a hipótese de uma vitória de um herdeiro bolsonarista em 2026, sendo Lula candidato, improvável. O terceiro é a previsão de que a divisão burguesa sobre a necessidade de preservar o regime democrático-eleitoral é irreversível e que em 2026, a fração capitalista que se expressa através de Geraldo Alckmin e Simone Tebet, voltará a defender Lula, porque não está disposta a correr o risco de uma segunda presidência da extrema-direita. Os três cálculos têm até mais do que um “grão de verdade”, mas desconsideram, seriamente, os terríveis riscos colocados. Esquecem as lições do golpe de 2016 contra Dilma Rousseff. As mais importantes são cinco: (a) a primeiro é a subestimação da corrente neofascista – o erro mais catastrófico dos últimos sete anos – a sua audácia, sua implantação social e cultural, sua disposição de luta frontal, a confiança na liderança política de Bolsonaro, portanto, a resiliência do apoio social da extrema-direita que revela que a disputa não se reduz somente à percepção de melhoras nas condições de vida, porque tem na sua raiz, também, uma feroz luta política-ideológica e até cultural de visão de mundo reacionária; (b) a segunda é fantasia de que é possível manter, indefinidamente, uma governabilidade a “frio”, e a idealização da Frente Ampla, acreditando que as lideranças burguesas incorporadas ao ministério vão manter lealdade, esquecendo o papel de Michel Temer e exagerando a confiança na estabilidade do governo que repousa nos acordos com o Centrão no Congresso Nacional, esquecendo o perigo de ameaça por chantagens inaceitáveis; (c) o terceiro é a subestimação pessoal de Bolsonaro como líder da oposição e pré-candidato, mesmo na condição de inelegível, porque, se necessário, podem substituí-lo por outro – Tarcísio, Michelle, ou até outro “personagem” – confiando que a capacidade de transferência de votos permanece possível; (d) o quarto é a desvalorização da emergência das reivindicações populares, dos negros, das mulheres, dos LGBT’s, dos ambientalistas e da cultura, um erro que foi fatal para o peronismo na Argentina, porque a confiança na continuidade do crescimento econômico, condição da turbinação de reformas progressivas, pode se frustrar, porque o arcabouço fiscal limita o papel dos investimentos públicos e o cenário internacional de demanda de commodities pode mudar; (e) o quinto é a eleição de Trump nos EUA que gerou um efeito catalizador mundial, também no Brasil, e vitórias da extrema-direita nas próximas eleições europeias, além de uma agudização dos conflitos no sistema internacional com a China.
4 Como explicar a força da extrema-direita? Marxismo não deve ser, estritamente, determinismo econômico. Mas a economia importa. Algo estrutural mudou nos últimos dez anos. Entre 2013 e 2023 tivemos a primeira década regressiva depois do final da Segunda Guerra Mundial: (a) durante os trinta “anos dourados a Europa e o Japão reconstruíram suas infraestruturas e realizaram as reformas que garantiram o pleno emprego e as concessões à classe operária, e a economia brasileira foi beneficiada como primeiro endereço dos investimentos dos EUA na periferia; (b) nos anos oitenta veio o mini boom com Reagan, e o Brasil mergulhou em crise social, mas não deixou de crescer; (c) nos anos noventa o “mini boom” com Clinton que permitiu a estabilização da moeda brasileira e do regime democrático-liberal, possível, também, pelo fim da URSS; (d) na primeira década do século XXI um “mini boom” com Bush filho, e o Brasil acumulando reservas de centenas de bilhões de dólares, em função da excepcional valorização das commodities puxadas pelo crescimento chinês, somente comparável à inversão das relações de troca durante as guerras mundiais. Mas a segunda década do século XXI foi de estagnação, pela primeira vez na história. Nunca aconteceu nada assim no Brasil. Brexit e Donald Trump, Jair Bolsonaro e Javier Milei são a expressão eleitoral de uma estratégia para salvar a liderança dos EUA no mundo. Uma fração da burguesia, em escala mundial, insatisfeita com o gradualismo neoliberal girou para uma estratégia de choque hiperliberal de destruição de direitos: defende a “latino-americanização” nos países centrais, e “asiatização” na América Latina para nivelar os custos produtivos por baixo com a China. Quer impor uma derrota histórica que garanta regimes estáveis pelo intervalo de uma geração. Mas a extrema direita não abraça somente uma estratégia econômica de manutenção da liderança no mercado mundial. Não é somente um alinhamento político com os EUA no sistema internacional de Estados. A corrente neofascista tem heterogeneidades internas, ênfases programáticas diferentes, país por país, mas tem um núcleo ideológico comum. Abraçam uma visão de mundo: o nacionalismo exaltado, a misoginia machista, o racismo de supremacia branca, a homofobia patológica, o negacionismo climático, a militarização da segurança, o anti-intelectualismo, o desprezo pela cultura e a arte, a desconfiança da ciência. Este choque não é possível sem restrição das liberdades democráticas e até destruição das liberdades políticas. A extrema-direita tem apetite pelo poder e ambiciona a subversão do regime democrático-liberal. Não persegue uma “cópia” do totalitarismo nazifascista dos anos trinta. Mas ambiciona regimes autoritários. Admira Erdogan na Turquia, Bukele em El Salvador e Duterte nas Filipinas. Só podem detidos com muita luta.
5 Um movimento político-social de extrema-direita liderado por uma direção neofascista se construiu através de denúncias implacáveis. Os neofascistas têm uma narrativa. Denunciam que há direitos demais para os trabalhadores. Jair Bolsonaro cunhou a ameaça: empregos ou direitos? O que está ameaçado pela extrema direita são todas as pequenas, mas valiosas conquistas sociais desde o fim da ditadura. As conquistas de todos os movimentos sociais: populares por moradia ou de mulheres, negros ou culturais, estudantis ou sindicais, camponeses ou LGBT’s, ambientalistas ou indígenas. O bolsonarismo não é uma reação ao perigo de uma revolução, nem responde a um projeto de disputa de poder no sistema internacional de Estados, como foi o nazifascismo na Europa, nos anos vinte do século passado, depois da vitória da revolução de outubro. Não há nem remotamente perigo de uma revolução no Brasil. Os neofascistas ganharam uma base de massas, porque uma fração burguesa radicalizou e lidera uma ofensiva contra os trabalhadores apoiada em uma maioria da classe média, arrastando setores populares e defendendo que é necessário um choque de capitalismo “selvagem”. A extrema direita cresce como uma reação à crise aberta em 2008/09 que condenou o capitalismo ocidental, também no Brasil, a uma década de estagnação, enquanto a China crescia. Seu programa é o neoliberalismo com “43 graus de febre” um alinhamento incondicional com Trump nos EUA e um regime autoritário nostálgico da ditadura militar. A aposta neofascista é impor uma derrota histórica anulando as reformas sociais progressivas: assistência social que protege 50 milhões de pessoas da extrema-pobreza, através do Bolsa Família, acesso à Previdência Social para 38 milhões de idosos, universalização da saúde pública e gratuita pelo SUS, universalização da escola pública até o final do ensino secundários e expansão da Universidade pública com cotas para negros e indígenas, elevação do salário mínimo acima da inflação, etc.
6 Todas as nações têm as suas distinções, originalidades, grandezas e misérias. O Brasil, embora dependente, é o país com a maior economia na periferia do capitalismo, tem dimensão continental e se estende da Amazonia até o Pampa, responde por metade da população da América do Sul, um pouco mais da metade do povo é negra, e uma imagem internacional simpática construída, na segunda metade do século XX, pelas belezas naturais dos trópicos, pelo carnaval e futebol. Mas, talvez, as três peculiaridades políticas sejam: (a) o grau, absurdamente, imenso de desigualdade social que persiste quase intacto; (b) a capacidade histórica da classe dominante de procurar soluções para os conflitos sociais e políticos pela via de concertações negociadas; (c) a existência de uma classe trabalhadora gigantesca, e de uma das esquerdas mais influentes no mundo. O país sofre, historicamente, com a dominação imperialista. Foi colônia portuguesa por três séculos, semicolônia inglesa por mais cem anos e, desde meados do século XX, na área de influência norte-americana. Mas a “excepcionalidade” brasileira resulta destas “particularidades endógenas”, e produz um paradoxo: a desconcertante lentidão de qualquer transformação social que diminua a terrível injustiça que oprime o povo. O que prevaleceu no Brasil, ao longo de muitas gerações, foram as transições pelo alto, ou concertações entre frações burguesas. Os conflitos na classe dominante se resolvem por conchavos, longas e minuciosas negociações com mútuas concessões. Não conhecemos guerra civil, a não ser local no Rio Grande do Sul, há cem anos atrás e, por poucos meses, quando do levante paulista de 1932. A única ruptura foi uma exceção: o golpe militar de 1964. Mas o Brasil foi um “laboratório” pioneiro da história nos últimos dez anos. Afinal, em 2018, Bolsonaro, uma liderança de origem militar neofascista, venceu as eleições presidenciais, depois de treze anos de governos liderados pelo PT, o maior partido de esquerda que surgiu ao final do século XX, enquanto Lula estava na prisão. Por quê? Não fosse este desfecho excepcional, Bolsonaro perdeu a reeleição em 2022 para Lula, ensaiou uma quartelada militar golpista, foi condenado inelegível pela Justiça em 2023, mas ameaça concorrer nas próximas eleições presidenciais em 2026, com altíssima taxa de popularidade, em um cenário imprevisível. Muitas razões explicam essa “excepcionalidade”.
7 Há fatores objetivos e subjetivos que ajudam a compreender este desfecho. Trata-se de um paradoxo, porque a desigualdade social crônica no país que tem o maior PIB e, ao mesmo tempo, proporcionalmente, a maior e mais concentrada classe trabalhadora no mundo periférico, gigantescos centros urbanos, mais de 20 cidades com um milhão de pessoas, deveriam impulsionar um nível muito elevado de tensão social. São as lutas sociais que favorecem mudanças, por via de reformas ou de revolução. Mas não é assim. O Brasil foi o país campeão mundial de greves, nos anos oitenta do século XX, ao lado da África do Sul. Mas, depois, não mais. Todos os principais países vizinhos do Brasil – Argentina (2001/02), Venezuela (2002), Chile (2019), além de Peru, Equador, e Bolívia – conheceram, neste século, situações pré-revolucionárias. O Brasil não. O que vingou no Brasil foi a experiência do lulismo. O PT venceu cinco das seis eleições presidenciais desde 2002. Foi necessária uma derrubada “institucional” do governo Dilma Rousseff para abrir o caminho da eleição de um neofascista como Bolsonaro. No entanto, não foi um golpe “a frio”. As mobilizações, entre 2015/16, levaram milhões às ruas para apoiar o impeachment, e potencializaram uma extrema-direita poderosa, até hoje, com influência intacta. Precipitaram uma situação reacionária, invertendo a correlação social de forças de forma duradoura, apesar da vitória de Lula em 2022, por estreita margem. E pode ficar pior até 2026. Na principal cidade do país, um boçal neofascista histriônico, Pablo Marçal acabou de conquistar, em 2024, uma posição de liderança da corrente de extrema-direita, em dinâmica vertiginosa. Confirmando que o perigo é real e imediato. E que ninguém pode subestimar a ameaça de que voltem ao poder nacional.
8 Surgiram diferentes hipóteses de explicação do paradoxo. Duas são as mais importantes e têm um “grão de verdade”: (a) a teoria ultra-objetivista remete, essencialmente, à força da burguesia; (b) a teoria ultra-subjetivista remete, simetricamente, à fragilidade da consciência popular. Mas este caminho é circular, portanto, insuficiente. A gigantesca riqueza e poder, associados ao extremo reacionarismo da burguesia brasileira, só comparável com sua inteligência estratégica, teve muita importância para conter a pressão social por mudanças. A debilidade subjetiva de uma classe trabalhadora muito heterogênea explica, também, os limites de sua capacidade de auto-organização e união, e a espantosa paciência política e ilusões renitentes em soluções concertadas. Mas não se deve esquecer a presença de um terceiro fator. O papel das camadas médias. A classe média no Brasil sempre foi menor, em comparação, que a Argentina. Mas é, como em todo os países urbanizados, o colchão social que oferece estabilidade à dominação burguesa. A classe média arrasta, tradicionalmente, os setores mais elevados do mundo do trabalho assalariado que ascenderam pela escolaridade, e compartilham um modo de vida das camadas médias. No Brasil não há negros na classe dominante e são raríssimos na classe média. O país é fraturado, racialmente, e a branquitude goza um status de privilégio. Isso importa.
9 O Brasil de hoje mudou, qualitativamente, comparado com o do final dos anos setenta, numa escala diferente dos países vizinhos. Ao longo deste ciclo histórico ocorreram muitas oscilações nas relações de forças entre as classes, umas favoráveis, outras desfavoráveis para os trabalhadores e seus aliados. Mas não se abriu uma única vez uma situação revolucionária. Eis um esboço de periodização do período até à primeira eleição de Lula. O que deve nos interessar é que sempre que existiu a possibilidade de ruptura foi contornada: (a) tivemos um ascenso de lutas proletárias e estudantis, entre 1978/81, seguido por uma estabilização frágil, depois da derrota da greve do ABC de 1981 até o final de 1983, quando o fracasso do plano “asiático” de Delfim Neto de impulsionar exportações, pela desvalorização cambial, fez disparar a inflação sem recuperar crescimento; (b) em 1984 uma nova onda de mobilização contagiou a nação com a campanha pelas Diretas Já, e selou o fim da ditadura militar, mas o governo Figueiredo não caiu; (c) uma nova estabilização entre 1985/86 com a posse de Tancredo/Sarney e o Plano Cruzado, e um novo auge de mobilizações populares contra a superinflação que culminou com a campanha eleitoral que levou Lula ao segundo turno de 1989; (d) uma nova estabilização breve, com as expectativas geradas pelo Plano Collor, e uma nova onda a partir de maio de 1992, potencializada pelo desemprego e, agora, da hiperinflação que culminou com a campanha pelo Fora Collor; (e) uma estabilização muito mais duradoura com a posse de Itamar e o Plano Real, uma inflexão desfavorável para uma situação defensiva a partir da derrota da greve dos petroleiros em 1995; (f) lutas de resistência entre 1995/99, e uma retomada da capacidade de mobilização que agigantou-se, em agosto daquele ano, com a manifestação dos cem mil pelo Fora FHC, interrompida pela expectativa da direção do PT e da CUT de que uma vitória no horizonte eleitoral de 2002 exigiria uma política de alianças, que não seria possível em um contexto de radicalização social. A ditadura militar acabou em 1985, mas não caiu. O primeiro presidente eleito em 1989 foi derrubado por impeachment em 1992, mas não se conquistou eleições antecipadas. A primeira mulher foi eleita presidente por um partido de esquerda, Dilma Rousseff foi derrubada em 2016 e Lula foi preso, mas o PT não foi ilegalizado. O neofascista Bolsonaro chegou ao poder por eleições e mergulhou a nação numa regressão histórica, diante da pandemia, mas não foi derrubado por impeachment. Todas as transições foram amortecidas por negociações.
10 Entretanto aconteceu uma “explosão” social brusca e imprevista em junho de 2013. Mas não foi nada parecido com a derrubada de De La Rua na Argentina em 2001/2002. A estabilização social prevaleceu ao longo dos dez anos de governos de Lula e Dilma, entre 2003 e junho de 2013, enquanto prevaleceu o crescimento econômico, em torno de 4% ao ano, e se consolidou uma rede de seguridade social fortalecida. Até que ocorreu a irrupção de uma onda “vulcânica” de protesto popular acéfala que levou milhões às ruas, em um processo interrompido ainda no primeiro semestre de 2014, antes da reeleição de Dilma Rousseff. O mais importante foi a inversão muito desfavorável da situação com as mobilizações reacionárias gigantes da classe média insufladas pelas denúncias contra a corrupção da LavaJato, entre março de 2015 e março de 2016, quando alguns milhões ofereceram a sustentação para o golpe jurídico-parlamentar que derrubou Dilma Rousseff. Parecia que estava encerrado o ciclo histórico. Mas não estava. O Brasil é lento. Este ciclo foi a última fase da tardia, porém, acelerada transformação do Brasil agrário em uma sociedade urbana; a transição da ditadura militar para um regime democrático-eleitoral; e a história da gênese, ascensão e apogeu da influência do petismo, depois transfigurado em lulismo, sobre os trabalhadores; a classe dominante conseguiu, aos “trancos e barrancos”, evitar a abertura de uma situação revolucionária no Brasil como aquelas que a Argentina, Venezuela e Bolívia conheceram, embora, mais de uma vez, tivessem se aberto situações que podiam ter evoluído nessa direção, mas foram interrompidas.
11 A perspectiva histórica pode ajudar a compreensão. A eleição em 2002 de um presidente operário em um país capitalista semiperiférico, como o Brasil, foi um acontecimento atípico. Do ponto de vista da burguesia uma anomalia, mas não foi uma surpresa. O PT já não preocupava a classe dominante, como em 1989. Um balanço dos treze anos de governos petistas parece irrefutável: o capitalismo brasileiro não esteve nunca ameaçado pelos governos do PT. Mas isso não impediu que toda a classe dominante tenha se unido, em 2016, para derrubar Dilma Rousseff com acusações estapafúrdias. Essa operação política, uma conspiração liderada pelo vice-presidente Michel Temer, nos revela algo de importância estratégica sobre o que é a classe dominante brasileira. Os governos do PT foram governos de colaboração de classes. Favoreceram algumas reformas progressivas, como a redução do desemprego, o aumento do salário mínimo, o Bolsa-Família, e a expansão das Universidades e Institutos Federais. Mas beneficiaram, sobretudo, os mais ricos, mantendo até 2011 o tripé macroeconômico liberal intacto: a garantia do superávit primário acima de 3% do PIB, o câmbio flutuante em torno dos R$2,00 por dólar e a meta de controle da inflação abaixo de 6,5% ao ano. Não deveria surpreender o silêncio da oposição burguesa, e o apoio público indisfarçável de banqueiros, industriais, latifundiários e dos investidores estrangeiros, enquanto a situação externa foi favorável. Quando chegou, em 2011/12, o impacto da crise internacional aberta em 2008, o apoio incondicional da classe dominante desmoronou. Não houve qualquer hesitação depois da derrota de Aécio Neves em 2014. Foram para o golpe. A denúncia do “petrolão” pela LavaJato foi somente uma bandeira instrumental. O “ovo da serpente” do neofascismo já estava presente.
12 A manifestação liderada por Jair Bolsonaro na Avenida Paulista em 7 de setembro de 2024 foi mais uma demonstração de força do neofascismo. Não foi um fiasco. Tampouco um tropeço. Algo próximo a cinquenta mil pessoas confirmaram presença ao longo de três horas, debaixo de um sol escaldante, aplaudindo aos gritos a exigência de anistia para os golpistas e o impeachment de Alexandre de Moraes. Além de ovacionarem Pablo Marçal, carregado pela multidão. Marxismo é realismo revolucionário. Diminuir a força de impacto da radicalização da extrema direita, o erro mais constante e fatal da maioria da esquerda brasileira, tanto entre os mais moderados como entre os mais radicais, desde 2016, seria obtuso. O argumento de que não se deve subestimar, nem superestimar é uma fórmula “elegante”, mas escapista. O “escapismo” é uma solução negacionista. O estado de negação é uma atitude defensiva para evitar encarar de frente um perigo imenso. Só serve para perder tempo, alimentando o autoengano de que se estaria “ganhando” tempo. Existe uma audiência de massas para o “contra tudo que está aí”. A radicalização antissistema é de extrema direita. Mas este extremismo não é neutro, é reacionário. A atração pela histeria antissistêmica da extrema direita não pode ser disputada pela esquerda no Brasil. Não há um espaço disponível simétrico para um discurso de esquerda antissistêmico. Um discurso antissistêmico seria ir para a oposição ao governo Lula III. A prova “dos nove” é que as organizações que radicalizaram sua agitação contra Lula são invisíveis. Não existe este espaço, porque a relação social de forças social inverteu. Estamos em uma situação ultradefensiva em que a confiança dos trabalhadores em suas organizações, e em sua própria capacidade de luta, é muito baixa. As expectativas desmoronaram. Nos setores mais conscientes e combativos da classe trabalhadora prevalece a apreensão. Estamos em uma relação de forças desfavorável. Não estamos diante de uma polarização social e política. Uma polarização existe somente quando os dois campos principais – capital e trabalho – têm forças, mais ou menos, parecidas. O Brasil está fragmentado, mas a ilusão de que a vitória eleitoral de Lula, por dois milhões de votos sobre 120 milhões de votos válidos, seria um retrato de uma equivalência de posições sociais de força é uma fantasia do desejo. Estamos na defensiva e, portanto, a unidade de esquerda nas lutas e, inclusive, eleitoral, é indispensável.
13 A esquerda moderada entrou em crise em todo o mundo, diante da ofensiva da extrema-direita: Labour, PS português e francês, PSoe, Pasok e até Syrisa, PT e peronismo, mas foi um processo parcial e transitório de experiência, e se recuperou. As massas se protegem com as ferramentas de que dispõem. A esquerda da esquerda, pode ocupar um lugar. Mas não precisa retroceder ao propagandismo. Pode demonstrar que é um instrumento de luta útil no interior de espaços de Frente Única, se acompanhar, com paciência revolucionária, o movimento real de resistência ao neofascismo. A unidade de esquerda não deve ser esgrimida para silenciar as críticas justas às vacilações desnecessárias, maus acordos, decisões erradas, ou capitulações indesculpáveis, mas o inimigo central é o neofascismo. Uma estratégia de oposição de esquerda ao governo Lula é, perigosamente, errada e estéril. A vitória eleitoral de Lula em 2022 foi gigante, justamente porque a realidade é muito pior do que se poderia concluir pelo resultado das urnas. Um desfecho que, aliás, só foi possível porque uma dissidência burguesa o apoiou. São muitos os fatores que explicam por que a situação é reacionária. Entre eles, a derrota histórica da restauração capitalista entre 1989/91 define a etapa porque não há mais uma referência de alternativa utópica como foi o socialismo para três gerações. A restruturação produtiva foi impondo, gradualmente, acumulação de derrotas e, também, divisões na classe trabalhadora. Os governos liderados pelo PT, entre 2003 e 2016, não são inocentes, em função de uma estratégia de colaboração de classes que limitou as mudanças a reformas tão minimalistas, que a mobilização de massas não foi possível para defender Dilma Rousseff quando a hora do impeachment chegou. As derrotas acumuladas contam. Nossos inimigos estão na ofensiva. Não é sensato uma polêmica de que sem Lula não teria sido possível a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro. Lembremos que a chapa era Lula “paz e amor” contra o gabinete do ódio e abraçado com Geraldo Alckmin. Só foi possível vencer com uma tática ultra moderada. Esta evidência deve nos orientar quando se avalia de forma realista a relação política de forças.
14 O governo Lula já completou dois anos de gestão, mas o país continua fragmentado. Isso confirma que, embora em uma relação de forças, politicamente, melhor, porque Lula está no Planalto, a relação social de forças ainda não inverteu: (a) as diferentes pesquisas de opinião confirmam que, aproximadamente, metade da população aprova o governo e outra metade desaprova, com pequenas variações. As variações em série longa se mantêm em torno das margens de erro. Há discrepâncias entre o apoio a Lula 47,4% contra 45,9%, e os 40% que dizem reprovar o governo (em janeiro, esse índice era de 39%). Os que aprovam são 38% (uma queda de 4 pontos percentuais em relação ao levantamento anterior), enquanto mais de 18% avaliam a gestão como regular. (b) o desempenho do governo até agora não conseguiu diminuir a influência da extrema-direita, que mantém uma audiência em torno de um terço da população1. (c) a divisão sociocultural permanece igual. O bolsonarismo preserva maior influência nas camadas médias que ganham acima de dois salários-mínimos, no sudeste e sul, e entre evangélicos2. O lulismo é mais influente na maioria mais pobre, nos extremos da escolaridade, nos menos instruídos, e nos que têm nível superior, entre católicos e no Nordeste3. Em resumo, há poucas mudanças qualitativas. Mas esse quadro não autoriza conclusões tranquilizadoras. O governo não está mais forte, mesmo sendo evidente o contraste abismal na comparação com o governo Bolsonaro. Depois de um ano de governo, as oscilações nos graus de apoio ou rejeição são pequenas, mas há um viés de baixa mais acentuada em 2024. Deslocamentos deste tipo nunca são monocausais. São sempre muitos fatores que incidem sobre a consciência de dezenas de milhões em um país tão desigual. Não deveria nos surpreender que, de longe, os piores resultados estão concentrados entre aqueles que ganham mais de três salários-mínimos, com escolaridade média, homens mais velhos e do Sudeste para o Sul, e evangélicos. Ou seja, no eleitorado de Bolsonaro. A armadilha bolsonarista voltou às ruas exigindo anistia como uma avalanche neofascista. Uma armadilha que colocou um desafio. Por quê? Porque há a possibilidade de que Bolsonaro venha ser preso em 2025.
15 O caminho da luta política é sinuoso e até labiríntico, cheio de curvas, subidas e descidas, nunca é uma linha reta. A maioria da direção do PT esperou que a exasperação e fadiga do governo de extrema-direita seria o suficiente para Lula derrotá-lo em 2022. Fez a aposta em uma lenta paciência. Venceu, mas foi por pouco. O governo Lula faz agora a aposta de que uma boa gestão, que responda a pelo menos a algumas das necessidades urgentes do povo através de “entregas” ou realizações do governo será suficiente para vencer em 2026. Bolsonaro não agirá assim: uma tática quietista de espera. O bolsonarismo é uma corrente de combate. A extrema-direita conhece a “patologia” de sua base social. Uma sociedade tão desigual se preserva porque aqueles com privilégios materiais e sociais lutam, furiosamente, para defendê-los. Conhece a prepotência da nova geração burguesa à frente do agronegócio que acumula rancores socioculturais contra o mundo mais cosmopolita das grandes cidades que os despreza como brutos machistas e negacionistas do aquecimento global. Conhece a arrogância de uma parcela das camadas médias envenenada pelo ódio racista, homofóbico, e pela perda de prestígio social. Conhece a desconfiança anti-intelectual alimentada pelas igrejas-empresas neopentecostais. Sem mudanças muito sérias na experiência de vida – aumento de salários, empregos decentes, educação de qualidade, SUS mais forte, acesso à casa própria – não é possível dividir esta base social. Derrotar o bolsonarismo exige disposição de luta, habilidade para manobras táticas, audácia para giros, coragem para estratagemas, disposição para confrontos, constância e contenção para ganhar tempo, e depois um novo giro e medição de forças. Mas, até agora, o governo fez, essencialmente, contemporizações. Apostou na “pacificação”. Quase nunca um passo em frente, e depois muitos passos para trás. Não aprendemos nada com a derrota do peronismo na Argentina e de Kamala Harris nos EUA?
16 Há muitos na esquerda que descrevem esta evolução como tendência á polarização. A fórmula é atraente. Mas perigosamente enganosa, porque os dois polos na luta de classes não ocupam posições equivalentes. No campo reacionário comandam os mais radicais. No campo da esquerda a condução é dos mais moderados. A extrema-direita “devorou” a influência dos partidos tradicionais de centro-direita (MDB, PSDB, União Brasil), mas o governo Lula não é um governo de esquerda, já que aceitou um pacto com a fração liberal liderada por Tebet/Alckmin; Em situações de estabilidade do regime democrático-liberal a maioria da população se situa, politicamente, no centro do espectro político, apoiando a centro-direita ou a centro-esquerda, que se alternam na gestão do Estado. Foi assim desde o fim da ditadura, com três governos da centro-direita e depois quatro governos do PT. Esta foi a chave do período mais longo, trinta anos (1986/2016) de estabilidade do regime democrático liberal. Esta etapa, que era uma hipótese que o marxismo considerava improvável em países da periferia, mas passou a ser possível depois do fim da URSS, se encerrou. Uma das maiores dificuldades da esquerda é admitir que acabou. Mas o que veio depois não se explica em função de uma polarização. Polarização acontece quando os extremos se fortalecem. Não é o que estamos vivendo no Brasil, desde 2016. Desde o golpe institucional, como efeito da inversão da relação social de forças, somente a extrema-direita “endurece”, exercendo uma pressão de “gravidade” como um arrastão da influência histórica dos reacionários. Arrastão unilateral não é polarização. Polarização assimétrica é mais elegante, mas continua sendo desproporcional. No campo da esquerda se mantém posições, e não ocorre radicalização. Ao contrário, o governo Lula se desloca para o centro, renuncia a qualquer mobilização, ampliando a coalizão com partidos de direita para não ser ameaçado no Congresso. Portanto, basta uma tensão com os aliados que preservam a governabilidade para que a ameaça do neofascismo e seu projeto de subversão bonapartista do regime seja perigo real.
17 A chave da análise é que a esquerda está na defensiva. Muitos fatores explicam a perplexidade, redução de expectativas, e insegurança na base social da esquerda. A autoridade da liderança de Lula é grande. Mas há medo e desânimo no movimento operário e sindical depois de anos de recuos e derrotas. No povo de esquerda a disposição de luta não é elevada, ao contrário. Não é muito diferente nos movimentos sociais populares. A capacidade de mobilização, desde os Atos de campanha eleitoral de 2022, é pequena. Isso se explica em função da divisão nas classes populares. Estudar mais não garante mobilidade social ascendente. A vida dos trabalhadores das camadas médias com mais escolaridade e com renda um pouco mais elevada, na sua maioria eurodescendentes, está estagnada com viés de empobrecimento, e acumulam-se rancores com os beneficiados pelos programas de transferência de renda. A juventude masculina se sente ameaçada pelo avanço das lutas feministas. A LGBTfobia aumentou entre os setores mais conservadores, como resultado da disputa ideológica e guerra cultural feita pelas igrejas evangélicas. Os neofascistas exploram o nacionalismo exaltado e denunciam os movimentos ambientalistas que defendem a Amazônia como instrumentos de uma conspiração. As divisões têm consequências paralisantes. O ativismo transferiu para Alexandre de Moraes a responsabilidade pelo julgamento dos golpistas, a começar por Bolsonaro. Mas seria injusto não destacar o papel do governo e do próprio Lula na desmobilização. A vanguarda busca um ponto de apoio que favoreça uma saída política mais avançada. De todas as concertações desde a posse, e foram muitas, nenhuma foi mais grave do que a atitude diante das Forças Armadas. Mesmo depois que ficou claro a cumplicidade com o golpismo. A decisão de não aproveitar a oportunidade do aniversário dos 60 anos do golpe militar de 1964 para uma iniciativa de educação e mobilização política de massas foi desmoralizadora. O pior erro que a esquerda poderia cometer seria desvalorizar o impacto desta contraofensiva dos neofascistas. Se não forem interrompidos, avançarão.
18 O desafio de pensar para onde vamos só é possível, se tivermos clareza de onde viemos, e o que a história nos deixou como aprendizado. Desde 2016, quando mudou, estruturalmente, a relação social de forças, cinco lições são fundamentais: (a) depois da vitória apertada contra Aécio Neves em 2014, a aposta em uma “governabilidade” com uma fração da classe dominante, através da nomeação de Joaquim Levy, fracassou e o golpe institucional de 2016, apoiado em mobilizações reacionárias gigantes, foi fulminante, e a aposta de que os Tribunais Superiores não iriam legitimar o golpe institucional via Congresso Nacional, também, fracassou; (b) a acumulação de derrotas ininterruptas até 2022, a desmoralização da operação Lava Jato, a prisão de Lula, a reforma trabalhista, a eleição de Bolsonaro, mais uma reforma da previdência, a catástrofe humanitária durante a pandemia, nova onda de queimadas na Amazônia e Cerrado, deixou sequelas, ainda não revertidas, na moral da classe trabalhadora e no ânimo da militância de esquerda; (c) diminuir o perigo da extrema-direita foi um erro imperdoável, porque o neofascismo é um movimento social-político-cultural de massas, de dimensão internacional, que arrastou quase metade do país, nas urnas, mas também, na militância nas ruas, portanto, não é somente uma corrente eleitoral, e já provou que Bolsonaro consegue transferência de votos; (d) uma análise complexa da derrota eleitoral de Bolsonaro em 2022 deve considerar muitos fatores, mas a lucidez exige reconhecer que o papel individual de Lula foi qualitativo; (e) a vitória de Lula alterou a relação política de forças, mas não foi suficiente para inverter a relação social de forças.
19 Mas este quadro é insuficiente para uma avaliação das discrepâncias nas relações social e política de forças. Há três questões fundamentais a serem consideradas: (a) a capacidade de iniciativa política não se esgota na luta política institucional “profissional” nas instâncias de poder, e o bolsonarismo mantém uma força social de choque nas ruas muito maior do que a do lulismo; (b) nas pesquisas e nas eleições todas as pessoas têm peso igual, mas na luta social e política o que prevalece é a defesa de interesses das classes e frações de classe mais organizadas, e a esquerda ter força na maioria do semiproletariado mais pobre, entre a juventude, negros e mulheres não é o mesmo que o bolsonarismo ter força no agro negócio, nas camadas médias proprietárias, nos assalariados entre 5 e 10 salários/mínimos, e nas igrejas evangélicas, ou ter muita força no Nordeste não é o mesmo que ser maioria no Sudeste e Sul; (c) os maiores “batalhões” da classe trabalhadora organizada, que se concentra entre aqueles que têm carteira assinada, no setor privado e estatais ou no funcionalismo público, continua dividida, porque a extrema-direita conquistou audiência. Quando fazemos análise de conjuntura é importante lembrar que a luta de classes não se reduz a uma luta entre capital e trabalho. Nem o capital nem o trabalho são classes homogêneas, há que considerar as frações de classe: a burguesia tem várias alas com interesses próprios (agrária, industrial, financeira) ainda que muito concentrada, O mundo do trabalho tem realidades diversas: proletariado, semiproletariado, assalariados com ou sem contratos, do Sul ou do Nordeste. E as camadas médias são muito importantes: pequena burguesia proprietária, nova classe média urbana. A luta de classes não acontece somente no espaço da “estrutura” da vida econômico-social. Ela se desenvolve, também, na superestrutura do Estado, na forma de choques entre as instituições de poder. Governo, Legislativo, Justiça, Forças Armadas. Há um conflito em curso entre os Tribunais Superiores e o Exército e, em grande medida, contra o Congresso. Seria um grave erro subestimar estes choques. Assim como há uma parcela da esquerda moderada que exagera o sentido dos duelos nas “alturas” que são agigantados pela mídia comercial burguesa, há uma parcela da esquerda radical que desvaloriza o significado da luta política entre representantes de frações da classe dominante que ocorre no teatro institucional. Esse é o papel do regime democrático-liberal: permitir que, publicamente, se expressem e resolvam as diferenças. A aposta do governo Lula na governabilidade “a frio”, sem ter que mobilizar uma base social de apoio, se apoia nesta divisão, e responde ao cálculo que há que evitar, a qualquer preço, uma “venezualização”. A Câmara de Deputados, sob liderança de Lira, conquistou uma fatia do orçamento superior à da maioria dos Ministérios Se enganam, no entanto, aqueles que depositam confiança desmedida nos desfechos destas disputas. O destino de Bolsonaro não depende somente de um julgamento “técnico”. Ele caminha para uma derrota jurídica, mas pode sobreviver, politicamente, enquanto 40% da população acreditar que está sendo perseguido. Depois do 8 de janeiro de 2023, a questão política central tem sido saber se Bolsonaro e os generais serão ou não condenados e presos.
20 Uma análise marxista deve partir do estudo das mudanças na situação econômica. Desde o início do mandato de Lula as três variáveis mais importantes foram: (a) a confirmação de que a entrada de capitais estrangeiros continuou elevada, e garantiu redução de déficit no balanço de pagamentos, confirmando expectativas positivas de investidores internacionais; (b) o superavit comercial bateu recordes históricos, elevando o patamar das reservas, assim como a arrecadação fiscal4; (c) a preservação do crescimento que vinha desde o fim da pandemia fez o desemprego diminuir mais rápido, os salários subiram e a inflação caiu, indicadores positivos. Mas não o bastante para diminuir a audiência da extrema-direita entre os assalariados de instrução mais elevada, do Sudeste e Sul que ganham entre 3 e 5 salários-mínimos, portanto, sem superação das divisões na classe trabalhadora. Há uma questão de método quando fazemos avaliação das oscilações de conjuntura: nem tudo se explica pela economia O que nos remete à consideração de outras variáveis. Quais as decorrências do que está acontecendo no mundo e, em especial, nos países que têm mais impacto sobre a situação brasileira, como a vitória de Trump nos EUA, a eleição de Milei Argentina, e a ascensão vertiginosa da extrema-direita em Portugal? Devem ter levantado a moral do bolsonarismo. Quais foram as implicações das notícias diárias do massacre que Israel conduz na Faixa de Gaza, e da denúncia de genocídio que Lula fez? Parece ter aumentado a simpatia pela causa Palestina entre o lulismo, mas cresceu, também, o apoio ao sionismo entre os bolsonaristas. Tivemos, também, o impacto da maior epidemia de dengue da história, os incêndios criminosos no Cerrado e Amazônia, a elevação de feminicídios. Qual foi a repercussão nacional da operação criminosa da PM paulista na Baixada Santista? Ou a fuga de líderes do Comando Vermelho de Penitenciária de segurança máxima? Tão importante quanto, qual tem sido a repercussão das “entregas” do governo Lula, a grande aposta do Planalto?
21 Encerrado o ano de 2024 permanece incerto qual será o destino do governo de coalizão liderado por Lula. Mas a fórmula indeterminada de que “tudo pode acontecer” não é razoável. Embora o governo esteja diante de uma encruzilhada de caminhos, é possível algum cálculo de probabilidades. Depois do fracasso da sublevação de 8 de janeiro de 2023, e do cerco ao núcleo duro do bolsonarismo, inclusive, da alta oficialidade militar, uma nova tentativa insurrecional seria impensável. A extrema-direita decidiu se reposicionar para disputar as eleições em 2026. O calendário eleitoral estabelece o contexto. Há três grandes cenários, grosso modo, diante do Brasil, mas, por enquanto, um prognóstico ainda é impossível. O governo pode chegar em 2026 com suficiente aprovação, como Lula chegou em 2006 e 2010, e conseguir a reeleição. O governo pode chegar em 2026 como Dilma Rousseff chegou em 2014, e o desenlace será imprevisível. Finalmente, a esquerda pode chegar em 2026 muito desgastado e alta rejeição, como foi a situação da candidatura de Haddad em 2018, e a oposição de extrema-direita pode ser favorita. Claro que há sempre que lembrar do fator Forrest Gump: “shit happens”. Existe o acaso, o acidental, o aleatório. E dois anos é muito tempo. O amanhã pode não ser uma continuidade sem sobressaltos de ontem. Não é possível antecipar as mudanças na situação mundial até 2026, as oscilações da situação econômica, as reviravoltas das disputas ideológicas e culturais, as transformações nos humores das classes e frações de classe, os estratagemas, as rasteiras, os escândalos, as manobras, os giros dos partidos e lideranças, e dominar todas as variáveis. Isto posto, o mais provável é que permaneça a sequência do calendário eleitoral. Nesse marco, o primeiro cenário é a possibilidade de uma reeleição de Lula. O segundo é a possibilidade de uma vitória eleitoral do bolsonarismo. O terceiro é o mais desconcertante, porque imprevisível. E se nem Bolsonaro, nem Lula, ou algum dos dois, puder concorrer? Se, eventual e infelizmente, Lula não puder disputar, o mais provável seria a candidatura de Haddad. Não é um segredo que sua popularidade é, qualitativamente, menor que a de Lula.
22 Por último, quando pensamos o futuro, estamos diante do problema do papel dos indivíduos na história. Os três cenários esboçados – favoritismo de Lula, eleição em disputa acirrada ou favoritismo da oposição de extrema-direita- dependem de tantos fatores, que não é possível fazer um cálculo de probabilidades com antecedência. Uma análise marxista não pode perder o sentido das proporções. As lideranças fazem representação de forças sociais. Mas seria uma superficialidade imperdoável diminuir o protagonismo de Bolsonaro: a presença dele faz diferença. A extrema-direita teria se transformado em um movimento político, social e cultural com influência de massas, mesmo sem Bolsonaro, depois de 2016? Trata-se de um contrafactual, mas a hipótese mais provável é que sim. O neofascismo é uma corrente internacional. Não se pode explicar como uma coincidência a força simultânea de Donald Trump nos EUA, de Marine Le Pen na França, de Giorgia Meloni na Itália, de Santiago Abascal no Estado Espanhol, de André Ventura em Portugal e Javier Milei na Argentina. As condições objetivas impulsionaram uma fração da classe dominante a abraçar uma estratégia liberal de choque frontal. Mas a forma concreta que assumiu o neofascismo dependeu muito do carisma de Bolsonaro. Bolsonaro é tosco, bruto, intempestivo, mas não é um idiota. Um imbecil não se elege à presidência em um país complexo como o Brasil. Bolsonaro não tem muita instrução ou repertório, mas é esperto, astuto, ardiloso, velhaco. Nenhum energúmeno conquista a posição de liderança que ainda usufrui hoje, depois de tantas denúncias: desprezo pelos riscos de vida de milhões, apropriação pessoal de joias da presidência, conspiração militar golpista, etc. A chave de explicação de seu papel é o desconcertante carisma que impulsiona uma identificação apaixonada. Ele uniu a representação dos interesses da fração burguesa do agronegócio negacionista do aquecimento global, com o ressentimento dos militares e das polícias, o rancor das camadas médias com a desconfiança popular manipulada pelas empresas-igrejas neopentecostais, o reacionarismo saudoso da ditadura militar com o machismo, racismo, e a homofobia. Não precisou dos cabelos desgrenhados e da retórica anticasta anarco-capitalista de Milei, nem do nacional-imperialismo xenófobo de Trump, nem da fúria islamofóbica de Le Pen. Se viesse a ser condenado e preso sua autoridade irá diminuir. Esta deveria ser o centro da tática da esquerda: sem anistia, punição de todos os golpistas, cadeia para Bolsonaro.
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