Neste domingo, 01 de dezembro, aconteceu o vestibular 2025 da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) cuja redação propunha que se discutisse a seguinte pergunta: “O governo de uma nação pode exercer controle sobre o corpo feminino com base em princípios religiosos?”. O tema foi proposto a partir do romance distópico da canadense Margaret Atwood, O conto da aia. O livro foi publicado em 1985, já foi traduzido para diversas línguas e conta com diversas adaptações, incluindo a série de mesmo nome, atualmente em sua 6a temporada.
A distopia de Atwood é frequentemente associada ao tema do controle do corpo feminino e dos direitos reprodutivos, em especial ao tema do aborto, por falar de abuso sexual sancionado pelo estado e justificado pela religião. Como em outras distopias, nesta também os conflitos sociais reais são ficcionalmente escancarados, colocando uma lente de aumento sobre questões do presente. A história se passa em um futuro em que os Estados Unidos se tornaram um regime teocrático critão após uma brusca queda de natalidade levar o país a uma grave crise. Assim surge Gilead, uma sociedade dividida em castas, em que as poucas mulheres ainda férteis, as aias, são sistematicamente violentadas para engravidar dos homens da elite.
Apesar da premissa repugnante, o romance é baseado em diversos fatos históricos. Sabemos que o controle do corpo feminino, da sexualidade das mulheres e da reprodução servem aos interesses de sociedades escravocratas, governos autoritários e projetos coloniais. Porém, esse controle está no próprio cerne do sistema capitalista e foi fundamental para seu nascimento, bem como para sua manutenção. Não é meramente uma questão hipotética de se ou como os governos poderiam exercer controle sobre os corpos das mulheres: já o fazem.Fazem-no para garantir a reprodução da força de trabalho, a continuidade da própria nação e perpetuação da exploração pelo capital. De maneira mais ou menos extensiva, através das leis, discursos e das instituições, como podemos verificar pela tentativa de equiparar abortos realizados após a 22a semana de gestação ao homicídio, em qualquer caso, inclusive de estupro, proposta do PL 1904/2024 e também a PEC 164/2012, que acaba por criminalizar o aborto legal e até mesmo alguns métodos contraceptivos.
E qual o papel da religião nisso? Dependendo do contexto, pode fornecer o embasamento ideológico. A religião muitas vezes apenas mascara motivações que são econômicas, sociais e políticas. Nesse sentido, a religião confere o véu de legitimidade e até da nobreza das intenções sobre discursos e ações misóginas, homofóbicas e racistas, angariando apoio de parte da população por defender uma suposta moralidade. Mesmo em Gilead, o primeiro passo para o estabelecimento do regime não foi a violência sexual, mas sim proibir as mulheres de trabalhar e de ter propriedade, além da transferência de suas finanças e bens para os parentes homens mais próximos. Havia uma motivação econômica por parte dos idealizadores do regime.
No romamce de Atwood o governo de Gilead justifica o estupro sistemático por conta da baixa natalidade, visando assim, supostamente, cumprir os desígnios de Deus: frutificai e multiplicai-vos. No entanto, o governo se empenha muito mais na morte dos próprios cidadãos do que na manutenção da vida: seja pela guerra, pela existência de campos de concentração ou perseguição de opositores, inclusive aqueles trabalhadores da saúde que realizavam abortos. Ainda que seja patente o quanto Gilead é impregnada de hipocrisia, também não podemos deixar de reiterar o quanto os princípios religiosos são manipulados e deturpados para satisfazer os interesses de uma pequena elite ressentida e reacionária, para quem os direitos das mulheres significavam uma perda do seu próprio poder. Qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência.
A vestimenta das aias virou um símbolo mundial reconhecido e está sempre presente quando há manifestações contra tentativas de atacar os direitos reprodutivos. Foi apropriado pelas mulheres como símbolo de luta no mundo real. O romance de Atwood é um aviso: mesmo os direitos duramente conquistados podem ser perdidos em circunstâncias reacionárias. Não obstante, por isso mesmo ele é um instrumento para apurar nossa imaginação política: só um movimento feminista forte, classista e permanente pode nos fazer avançar em direção a uma sociedade em que princípios religiosos não sejam instrumentalizados para apoiar, acobertar ou agravar opressões.
Comentários