Recentemente acompanhamos iniciativas que colocam no centro do debate da política nacional o questionamento da jornada de trabalho em escala 6×1, o que significa dizer que durante 6 dias consecutivos a pessoa se dedica ao trabalho e em 1 único dia ao descanso. O que parece tão naturalizada a impossibilidade de ter outro ritmo de vida diferente deste, aparenta ser surreal acreditarmos que viver assim gera satisfação a ponto de supormos que esse trabalho “dignifica o homem”. Viver para trabalhar ou trabalhar para viver bem é uma reflexão que nos traz à tona necessidades fundamentais da classe trabalhadora de ter a sua dignidade garantida, e não reduzida, face ao capitalismo que impunha lógicas produtivistas e mercadológicas que se contrapõem a diferentes formas de vida, como é o caso das pessoas com deficiência e doentes crônicos.
Se já é duro para qualquer trabalhador ou trabalhadora viver sob a égide capitalista que nos desumaniza a duros golpes constantemente, o que dirá para pessoas que apresentam determinadas condições específicas de vida que costumam não agradar o sistema, justamente porque na visão desse mesmo sistema o trabalhador com deficiência “não produz” o suficiente para atender aos interesses do grande capital; ou o trabalhador com alguma patologia crônica “causa prejuízos”; ou até mesmo é julgado como aquele que “não rende” pois só vive doente, incapaz de gerar mais-valia aos donos dos meios de produção. Convenhamos que é impossível mesmo render ou estar o tempo todo ativo em uma sociedade capitalista e capacitista que desconsidera vivências fora dos padrões corponormativos, o que perpassa a ter um tempo de dedicação de cuidados de si constante e contínuo, para dessa forma conseguir trabalhar, produzir e viver. Viver bem, com qualidade e não sobreviver aos modelos colonialistas e precarizados de trabalho que nos submetem à sujeição e à desvalorização do nosso corpo e mente. Impossível mesmo é não adoecer em contextos de exploração onde o capital dita as regras e o lucro se torna o objetivo maior e comum dos que exploram, acentuando as desigualdades e intensificando assimetrias de classes.
Os dados apontam que em 2022, 5,1 milhão de pessoas com deficiência estavam na força de trabalho enquanto 12 milhões estavam fora da força de trabalho nesse mesmo período no Brasil.
Estamos falando de aproximadamente 18,6 milhões de pessoas com deficiência, segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) – Pessoas com Deficiência (2022), que apresentam diferentes dificuldades funcionais. Os dados apontam que em 2022, 5,1 milhão de pessoas com deficiência estavam na força de trabalho enquanto 12 milhões estavam fora da força de trabalho nesse mesmo período no Brasil. Isso equivale a dizer que apenas 29,2% estavam trabalhando e dentro desse percentual mais da metade na informalidade. Outra observação é a de que o rendimento do trabalho das pessoas com deficiência é 30% menor que a média nacional. Vale ressaltar que essa pesquisa é fruto de um Termo de Execução Descentralizada entre a Secretaria Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania (SNDPD/MDHC) e o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e nos dá um panorama que demonstra as desigualdades no acesso à educação, ao trabalho e à renda, muito menor para as pessoas com deficiência.
Para garantir a participação social no mercado de trabalho de forma digna, saudável e com qualidade é necessário entender que as pessoas com deficiência e doentes crônicos precisam que as suas peculiariedades sejam consideradas no contexto laboral.
Para garantir a participação social no mercado de trabalho de forma digna, saudável e com qualidade é necessário entender que as pessoas com deficiência e doentes crônicos precisam que as suas peculiariedades sejam consideradas no contexto laboral. São pessoas que historicamente foram excluídas e descartadas na sociedade, desde a Antiguidade, passando pela Idade Média, Moderna e Contemporânea. Tão importante quanto assegurar o acesso e à inclusão nos postos de trabalho é entender as dinâmicas de vida que exercem influência no tempo gasto em consultas, exames, retiradas de medicamentos, terapias e atividades de saúde em geral que pacientes crônicos convivem e dedicam-se na sua rotina diária. Como essas pessoas poderão cumprir uma jornada de trabalho que não lhes permite realizar atividades essenciais para a manutenção da vida por lhes faltarem tempo? Como ter qualidade de vida se o trabalho as leva à exaustão e ao afastamento das redes de cuidado tão necessárias para controle de sintomas? Fala-se em inclusão no mercado de trabalho, mas de que adianta incluir se o ambiente não acolhe, muito menos se adapta às condições de quem produz a força de trabalho?
O fim da escala 6×1, ação iniciada pelo Movimento Vida Além do Trabalho (VAT) e agora institucionalizando enquanto PEC pela deputada Erika Hilton, caso aprovada, se constituirá em um grande avanço na luta pelos direitos trabalhistas e ratifica a tese de que não existe força de trabalho sem o agente que a produz. Todas as pessoas com deficiência, e doenças, ou mesmo sem elas, têm direito ao trabalho digno, saudável e seguro. De forma alguma isso é pedir privilégios, mas sim reivindicar o básico enquanto direito para quem é a força motriz da nossa sociedade, O TRABALHADOR. O capacitismo se sustenta nas bases excludentes do capitalismo. Sem capitalismo não existirá capacitismo. A luta de classes atravessa esferas que coadunam com outras mobilizações para que as transformações efetivas ocorram à longo prazo. Afirmar a deficiência enquanto uma questão de direitos humanos é adquirir um novo olhar sobre a vida por meio do respeito às diferenças e à diversidade humana. São os distintos sujeitos os que empreendem seu trabalho para o desenvolvimento da sociedade. Eles têm vida, geram vidas e sustentam outras vidas através do seu trabalho o qual gera renda e outras possibilidades para fins pessoal e coletivo. A luta anticapacitista se movimenta junto com a luta anticapitalista pelo acesso, inclusão e condições dignas de trabalho a todas e todos. O fim da escala 6×1 é uma necessidade real.
* Kamilla Sastre é Covereadora de Belém/PA pelo mandato coletivo Bancada Mulheres Amazônidas (PSOL). É Cientista Social, professora e Pesquisadora. Possui Especialização em Projetos Sociais e em Educação Especial e Inclusiva, além de ser Mestra e doutoranda em Sociologia e Antropologia (PPGSA-UFPA). Vice-Coordenadora de Secretariado da Associação de Discentes com Deficiência (ADD-UFPA). Também compõe a Frente Nacional de Mulheres com Deficiência.
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