Pedro Henrique Antunes da Costa
Em 2024, comemoramos o centenário de Franco Basaglia. Psiquiatra italiano, marxista e comunista, foi um dos principais nomes do que veio a ser chamado de Movimento Antimanicomial. Em texto anterior1, à luz de Basaglia e a partir de um caso que vivenciei, abordei alguns dos impasses da Reforma Psiquiátrica brasileira. Agora, dou continuidade ao resgate de Basaglia para abordar um dos principais obstáculos e pontos de retrocesso da saúde mental: as chamadas Comunidades Terapêuticas.
Em maio deste ano foi lançado o livro “Um encontro inesquecível. Primeiro Simpósio Internacional de Psicanálise, Grupos e Instituições”, organizado por Gregório Baremblitt que infelizmente faleceu em 2023, antes do lançamento do livro. Trata-se de produção referente ao supracitado Simpósio, que foi realizado no Rio de Janeiro em 1978, e contou com a presença de alguns dos maiores nomes dos movimentos de crítica, reforma e revolução no campo da saúde mental do mundo. Um destes nomes foi Franco Basaglia, que participou de algumas mesas, painéis e cursos no evento.
Em um dos capítulos, foi publicado um dos cursos ministrados por Basaglia, o “Curso: A Comunidade Terapêutica”. Dialogaremos com ele e com outras produções suas que abordam a experiência de comunidade terapêutica que ele coordenou na cidade italiana de Gorizia. Enquanto movimento de resgate da práxis basagliana, em ocasião dos seus 100 anos de nascimento, o teor de suas reflexões contidas no referido curso e capítulo também se mostram relevantes por, infelizmente, serem atuais, sobretudo quando vemos na realidade brasileira o ganho de força política e econômica das ditas Comunidades Terapêuticas (CTs)2, enquanto supostas instituições de cuidado para pessoas com necessidades assistenciais associadas ao consumo de drogas.
Atualmente, as CTs estão no cerne da Contrarreforma Psiquiátrica brasileira, que se põe a negar a Reforma Psiquiátrica, ao mesmo tempo que é um ataque também ao Sistema Único de Saúde (SUS). A despeito do nome que carregam, que remete a um modelo cuja gênese está na crítica à psiquiatria, à lógica asilar-manicomial e ao hospital psiquiátrico (o manicômio), se colocando como uma alternativa a esse último, as CTs no Brasil, vão na contramão dessas iniciativas históricas, sendo o oposto delas. Para além de instituições supostamente especializadas no tratamento a pessoas com necessidade associadas ao consumo de drogas, as CTs são: entidades privadas e que se apropriam de parcelas cada vez maiores do fundo público, recrudescendo o desfinanciamento e sucateamento dos serviços públicos; instituições manicomiais; segregatórias; pautadas em modelos morais; majoritariamente religiosas-fundamentalistas, cometendo violências religiosas; além de se materializarem por meio da chamada laborterapia, que concretamente tem sido trabalho forçado, não pago, em condições degradantes, análogo à escravidão. Como temos denunciado, se trata de uma amálgama de quatro instituições fundamentais da formação social brasileira: manicômios, prisões, igrejas e senzalas.
Cabe reforçar que os Basaglia (não só Franco, mas também Franca, que não se resume a ter sido “sua esposa”) foram os principais nomes do Movimento Anti-institucional italiano e sua organização na Psiquiatria Democrática, tendo desenvolvido experiências como a de Gorizia, numa perspectiva de comunidade terapêutica, além da de Trieste, na qual puderam avançar no sentido de superação e eliminação do manicômio. Somado ao fato de que a Reforma Psiquiátrica brasileira tem nos Basaglia importantes exemplos nos e pelos quais se subsidiou e se desenvolveu, o resgate da reflexão e da práxis basagliana podem contribuir para a análise crítica das CTs no Brasil, o que elas expressam e conformam, bem como para a sua eliminação.
As comunidades terapêuticas como negação (contraditória e inconclusa) dos manicômios
A gênese da comunidade terapêutica como modelo alternativa ao manicômio é a Inglaterra, nos anos 1940-50. O contexto econômico e político era o de pós-guerra, no qual se constatou que o horror manicomial se parecia com o horror nazista, e que os manicômios em muito se assemelhavam aos campos de concentração. Além disso, a Inglaterra passou a ser governada pelo Partido Trabalhista (Labour Party). Nisso, “em termos de lei, sem que fosse estimulada uma luta popular das mudanças institucionais”3, um conjunto de mudanças foram implementadas na organização das políticas de saúde, inclusive, as de saúde mental. Deu-se início, então, a “uma liberalização do hospital [psiquiátrico] e de um modo alternativo de haver uma tentativa de relação com a pessoa doente”4.
Por conta do caráter de cima para baixo de tais medidas, sem participação popular, além de outras mediações e determinações da própria realidade inglesa, “foi devolvido pela janela aquilo que saiu pela porta”5. O manicômio se reinstalou naquilo que deveria suprimi-lo ou ser uma alternativa a ele. Melhor dizendo, houve o retorno do que nunca tido ido de verdade, por mais que com outras roupagens.
Nesse ínterim, nasce “uma experiência extremamente interessante que é aquela da comunidade terapêutica, isto é importante por razões, eu diria, sociais e históricas”6. Segundo Basaglia, nasce a primeira modalidade de comunidade terapêutica, por meio das iniciativas capitaneadas por Maxwell Jones.
Maxwell Jones criou uma comunidade terapêutica em Melrose, na Escócia, que se chama hospital Dingleton, onde exatamente ficaram em evidência alguns fatos importantes através dos quais a gestão de um manicômio pôde ser menos repressiva. Realizou-se uma organização extremamente tolerante que elencou todos os elementos importantes que vocês devem conhecer, ou seja, uma democratização da situação institucional de acordo com a qual o hospital psiquiátrico, o manicômio, não era mais um agregado mecânico, distorcido, uma simples soma de seres automatizados. Construiu-se um coletivo socializado que constituía uma comunidade cujo escopo era o fato de discutir, dia a dia, cada coisa que acontecia e que devia ser pensada, decidida e executada nesse lugar7.
Dada a relevância desta iniciativa, que estava na vanguarda em comparação com as instituições italianas, Basaglia relata que “alguns de nós fomos nesses países mais ricos que eram pioneiros de novas técnicas, para ver o que foi que aconteceu”8. Lá, viram que “a condução nos parecia ser muito mais ética, muito mais humanitária e, assim sendo, tentamos trazer para a Itália a inspiração da comunidade terapêutica”9.
Assim, a comunidade terapêutica foi concebida e desenvolvida por Basaglia na Itália, num hospital psiquiátrico localizado na cidade de Gorizia, o qual ele coordenava como “um passo necessário na evolução do hospital psiquiátrico […] como uma fase transitória, na espera de que a própria situação evolua de modo a nos fornecer novos elementos de clarificação”10. Por isso mesmo, apesar de um avanço, a comunidade terapêutica trazia consigo uma série de limitações, de contradições, não podendo ser vista e tratada “como a meta final a ser buscada”11, ou como um “modelo resolutivo (o momento positivo de uma negação, que se propõe como definitivo)”12.
Movido, por um lado, pelo pessimismo da razão e, por outro, pelo otimismo da prática, pela necessidade de se fazer algo, o próprio Basaglia era franco no reconhecimento destas contradições. Ele compreendia que o reconhecimento dessas contradições e a consequente responsabilização para mediá-las, mesmo que não pudesse saná-las via comunidade terapêutica, poderia até mesmo ter caráter terapêutico, ser terapêutico. Da mesma forma, negar tais contradições significaria ocultar as próprias contradições da sociedade que se expressavam na e pela comunidade terapêutica e na própria condição do louco, do doente mental. “O que se revela importante, no momento, é conseguirmos manter, enfrentar e aceitar nossas contradições, sem sermos tentados a afastá-las para negá-las”13.
Essa postura de Basaglia é de suma importância, aliás, para fazermos um balanço crítica da Reforma Psiquiátrica, inclusive naquilo que se pode avançar por meio dela. Isso nos leva a analisar que os próprios serviços substitutivos (ao manicômio) não podem ser tomados como fins em si, a meta final a ser buscada ou modelos resolutivos, de modo que também expressam contradições que só serão resolvidas com a superação desta sociabilidade e a realização de uma realidade que seja verdadeiramente antimanicomial.
Nessa esteira, a própria Reforma Psiquiátrica jamais se completou, acabou. Pelo contrário, seu caráter incompleto aponta para a sua própria condição processual, um processo social (complexo), cujo desenvolvimento dar-se-á por completo caso ela seja superada. Caso ela nem seja mais necessária enquanto reforma.
Contudo, em determinado momento, as próprias contradições não eram mais passíveis de serem gerenciadas, mediadas, ou o seu gerenciamento e mediação significava ir na contramão daquilo que se pretendia: avançar na superação do manicômio. Como o próprio relatou:
[…] a questão interessante foi que toda a técnica de comunidade terapêutica se viu destruída em nossas mãos simplesmente porque não agia, era inútil que nos aplicássemos uma técnica de Maxwell Jones chamada de learning living situation, ou seja, de aprender a viver, porque percebíamos que éramos nós que deveríamos aprender a viver com os doentes; porque no momento em que se tem uma posição de reciprocidade com o doente, os problemas se levantavam para nós, não para o doente, que denunciava uma situação inaceitável e urgente14.
Alia-se a isso outras dificuldades encontradas na implementação da proposta, como: o enraizamento social da construção ideológica do louco como perigoso, que deve ser trancado; a atuação de partidos e figuras públicas de direita, contrárias à iniciativa; as próprias clivagens e contradições entre movimentos, partidos e sindicatos do “ecossistema” de esquerda; a reticência e o boicote de profissionais, quando não de categorias profissionais com muito peso político, como a psiquiatria e a enfermagem; a utilização política de um caso de paciente do hospital, que ao sair dele, acabou matando sua esposa, para criminalizar Basaglia e paralisar a proposta, entre vários outros. Nesse interregno, Basaglia passa em um concurso para diretor de outro hospital psiquiátrico, se mudando para Trieste. No seu lugar, foi colocado um manicomial, fazendo com que seus agora ex-colegas pedissem demissão, enterrando a proposta de comunidade terapêutica de Gorizia.
Neste “segundo ato”, já em Trieste, em vez “de recriar uma comunidade terapêutica”, Basaglia e colegas se propuseram a “fazer uma ação que elimina[sse] por completo os manicômios”15. Em suma, o enterro ou a morte da comunidade terapêutica, ao menos no que se refere à práxis basagliana e da Psiquiatria Democrática italiana, significou o seu nascimento e espraiamento por outras partes, com a diáspora da referida equipe e dos próprios Basaglia.
As Comunidades Terapêuticas (CTs) no Brasil como negação das comunidades terapêuticas
Mesmo que breve, o resgate da práxis basagliana com a comunidade terapêutica, nos reforça – e qualifica – de antemão o óbvio que, infelizmente, precisa não só ser dito, mas repetido: as CTs no Brasil não são comunidades nem terapêuticas. Quanto à concepção de comunidade, o próprio Basaglia alertou “que o conceito de comunidade, para que possa designar algo como uma comunidade, é uma palavra muito ambígua”16. A comunidade jamais é uma mera “aglomeração de pacientes”, devendo apresentar “as características de qualquer outra comunidade de homens livres. Essa é a suposição básica”17. Em suma, comunidade diz respeito à liberta, e aponta à libertação. Não há comunidade num contexto segregatório, de aprisionamento. Até porque a própria identificação que se produz, o reconhecimento de um no outro, se dá pela via da negação.
Para Basaglia, “o comunitário tem um sentido de libertação e de solidariedade, porque se não for assim, o significado do comunitário é de uma uniformização sob o poder, ou seja, um objetivo de controle”18. No caso das CTs, não são indivíduos, muito menos livres: são drogados, pecadores, desviantes, doentes, loucos, em suma, não humanos. Soma-se a isto o caráter evidentemente classista e racista de tais instituições, voltadas ao controle e à (super)exploração sobretudo de homens pobres e negros.
Há, pois, uma alteridade mortificadora – um oxímoro no qual o adjetivo nega o substantivo. Na CT, o eu é compelido a ser um outro que é negado; ele próprio, este outro, não é. Logo, a negação do outro se reproduz no eu e o nega (ainda mais), ao passo que é recrudescida. O que há de comum na CT é a negação, a desumanização, a mortificação, o não ser. Não ser, eis a questão! A CT, como manicômio, é “um lugar de discriminação e controle social, e não de cuidado”19; uma instituição da violência, como qualquer outro manicômio.
Quanto ao adjetivo que constitui a CT, seu suposto caráter terapêutico, reproduzimos a análise de Basaglia:
O que é mais difícil de ilustrar é o conceito de terapêutica relacionado à comunidade. Nem todas as comunidades são, de fato, terapêuticas. Os quartéis, os colégios são organizações de homens “livres” que devem, todavia, subordinar-se às regras da comunidade a que pertencem; regras baseadas na eficiência necessária para o bom desempenho da organização. No entanto, mesmo que essa eficiência seja alcançada apenas pela mortificação individual, ela mina apenas parcialmente a liberdade de seus membros que, fora da própria organização, é consentida uma vida pessoal20.
Por vezes, escutamos até mesmo de quem foi internado e violentado em uma CT, que ela o salvou, que a pessoa deixou de usar droga e está limpa. Não negamos que isso possa ser verdade e que até tenha implicações interessantes para a pessoa. No entanto, para além do evidente caráter moralista, expresso na ideologia salvacionista, que toma o indivíduo como mero objeto, questionamos se os fins justificam os meios; se a dita eficiência alcançada, valida a mortificação individual na e pela qual se assentou. E cabe aqui ressaltar que, segundo a literatura acadêmica, as evidências científicas, nem a eficiência as CTs têm.
Acrescentamos que não existe nenhum tipo de tratamento para a droga. Qualquer tratamento que a toma como sujeito, tornando o real subjetivo objeto, não é tratamento, muito menos cuidado. Propostas de tratamento, assistenciais, de cuidado, ao colocarem a drogas entre parênteses e tomarem o indivíduo na sua singularidade, se orientam a uma produção de vida mais humanizada. Terapêutico é tudo aquilo que contribui para o fortalecimento da saúde como produção de vida mais humana e humanizada, menos alienada. Quem se depara com isso e não age para a sua transformação, não pode, portanto, ser agente de processos comunitários, muito menos de iniciativas que tenham caráter terapêutico:
nenhum médico, nenhum psiquiatra, que entendeu qual é a lógica e não destruiu a lógica manicomial, pode fazer o trabalho na comunidade. Não é possível como uma pessoa, que não conhece a maneira na qual se pode destruir o hospital [o manicômio], possa trabalhar na comunidade21.
Usando uma expressão que Basaglia lançou mão em vários momentos para criticar o manicômio e alguns exemplos problemáticos que se pautavam no modelo da comunidade terapêutica como suposta alternativa ao manicômio: as CTs no Brasil são comunidades antiterapêuticas!
Além disso, contra a retórica comum de representantes das CTs, que ao serem confrontados com – os cada vez mais – recorrentes casos de violência das CTs tornados públicos, de que são “casos isolados”, práticas de CTs que não seriam CTs de verdade, reproduzimos o próprio Basaglia:
não tem nenhuma diferença entre um manicômio do Brooklin (Estados Unidos), ou Juqueri de São Paulo. Eu posso falar assim porque eu vi todos os dois, é a mesma idêntica coisa, aparecem para gente pessoas que tem só um diagnóstico, a miséria. E a miséria é a verdadeira doença padecendo da qual a pessoa não pode viver, porque a miséria é somente um modo de sobreviver22.
Em outro texto, também oriundo de visita ao Brasil23, Basaglia explica que “a descoberta da psiquiatria comunitária não é nada mais que uma reciclagem da velha gestão manicomial”, sendo que se tratava de “uma gestão suave do manicômio em oposição a uma gestão violenta do manicômio. Essa gestão suave de certa forma é melhor, pois é melhor ser manipulado do que torturado”. No caso das CTs no Brasil, não temos melhoria alguma, mas retrocesso. Temos a gestão violenta do manicômio, de modo que para que haja tortura, há de haver manipulação, inclusive, na apresentação do manicômio como comunidade terapêutica, como se houvesse um avanço e uma superação da sua gestão violenta.
Dessa forma, a CT é uma sofisticação do processo de reciclagem da velha gestão manicomial, na qual o novo é a radicalização e o recrudescimento do velho. Há, inclusive, um sentido diferente nesta reciclagem, porque, diferentemente das comunidades terapêuticas, ela não emana como uma das limitações ou contradições do movimento de tentar negá-lo. Ela é intencionalmente a afirmação manicomial. No caso das comunidades terapêuticas, essa reciclagem manicomial ocorre como uma de suas limitações, negando-as e (re)afirmando o manicômio: “a comunidade terapêutica como ato reparatório, como resolução de conflitos sociais mediante a adaptação dos seus membros à violência da sociedade, pode levar a termo sua tarefa terapêutico-integradora, fazendo o jogo daqueles contra os quais tinha nascido”24. Ao se desperdiçar enquanto alternativa manicomial, a comunidade terapêutica, dialeticamente, recicla o manicômio
Já a CT no Brasil, enquanto reciclagem manicomial, desperdiça a comunidade terapêutica e demais alternativas ao manicômio – mesmo que limitadas e contraditórias. A ordem aqui é invertida, invertendo também o sentido das coisas – e vice-versa. A CT no Brasil, por si só, é a afirmação do manicômio, ela é o manicômio, ao passo que é também a negação da comunidade terapêutica.
Uma das características que expressam como as CTs são a sofisticação e a radicalização dos manicômios, é que ela nem necessita da psiquiatria para sujar as mãos, afinal, ela já cumpriu a sua função de forjar o manicômio, ao fornecer a argamassa ideológica (científica e técnica) da construção social do louco, do drogado como perigoso, só podendo ser segregado, aprisionado – com roupagens de tratamento, de cuidado. Como Basaglia apreendeu, “se por um lado é o sistema social que determina tal situação, por outro, a própria psiquiatria a avalizou cientificamente, reconhecendo o incompreensível do fenômeno psicopatológico como uma monstruosidade biológica que só poderia ser isolada”25.
No caso da CT, o trabalho da psiquiatria já foi tão bem-feito, já está tão naturalizado e enraizado, que ela nem precisa comparecer fisicamente no interior das CTs, para que as CTs se utilizem dela como pilar de sua sustentação. Por exemplo, mesmo as normativas que supostamente regulamentam as CTs exigem a presença de psiquiatrias ou demais profissionais especializados. A ausência física de psiquiatras não significa ausência de psiquiatria nas e pelas CTs; pelo contrário. O problema das CTs não pode ser reduzido a ausência de uma equipe técnica “competente”, até porque as equipes que a compõem já são bastante competentes se compreendemos a real função social das CTs, que não é o cuidado. Uma CT com mais psiquiatras – psicólogos, enfermeiros e demais profissionais “especializados” – continua sendo uma CT, ou seja, uma mistura de manicômio, prisão, igrejas e senzalas.
Aliás, a ausência ou insuficiência de tais profissionais serve para reduzir ainda mais custos, potencializando os lucros desse grande comércio ou indústria da loucura 2.0, agora via drogas. Tudo isso exprime que a sofisticação das CTs é uma modernização reacionária; um novo-velho; um arcaico-moderno típico da nossa formação social. Nada é mais evidente disso do que as CTs serem a sofisticação dos manicômios, pautadas no trabalho escravo.
Soma-se a isto as criativas e variadas formas de obtenção de renda pelas CTs. Para além dos tradicionais pagamentos pelas internações, temos também: doações; financiamento público (cada vez mais generoso); isenções fiscais (também cada vez mais generosas); e o próprio trabalho não-pago, a chamada laborterapia, dos internos – entre outros que vão sendo desenvolvidos, junto
Assim, diferentemente do que Basaglia postulou com as comunidades terapêuticas, as CTs no Brasil, em vez de serem “a negação desse mundo ideal”, são a afirmação deste mundo concreto – cada vez mais exploratório, opressivo, destrutivo.
Se a comunidade terapêutica era “uma fase transitória, na espera de que a própria situação evolua de modo a nos fornecer novos elementos de clarificação”, a CT não só paralisa a transição, como é a clarificação do manicômio em definitivo, em absoluto. Se a comunidade terapêutica, “mais que como produto, nasceu como recusa a uma situação dada”26, a CT no Brasil é o retorno e reafirmação da situação dada, negando a sua recusa, a partir da comunidade terapêutica. Se para Basaglia e a Psiquiatria Democrática italiana, “a escolha do modelo anglo-saxônico da comunidade terapêutica pretendia ser a escolha de um ponto de referência genérico, que pudesse justificar os primeiros passos de uma ação de negação da realidade manicomial”27; o “modelo” de CT brasileiro é um passo de reafirmação da realidade manicomial; é a sua sofisticação e radicalização.
Ao negar a comunidade terapêutica, a CT tolhe, inclusive, o avanço de serviços e instituições que buscam se tornar alternativas ao manicômio. Por exemplo, na própria RAPS brasileira, temos os exemplos dos Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas (CAPSad) e da as Unidades de Acolhimento (UAs), que podem ser tanto para adultos (UAAs) como para adolescentes (as UAIs), mas que se encontram em número obstante insuficiente no país, muito em decorrência da hegemonia das CTs – inclusive da apropriação do fundo público pelas CTs, que poderia ser revertido às UAs e outros serviços públicos substitutivos da RAPS.
Para se ter uma ideia, segundo dados do Ministério da Saúde, tínhamos no final de 2022 e início de 2023, apenas 443 CAPSad e 70 UAs no país, sendo 45 UAAs e 25 UAIs. A título de comparação, edital do Ministério do Desenvolvimento Social no governo Lula III, habilitou 585 CTs, para receberem financiamento público apenas deste Ministério.
A partir do exposto, nos pautando no pessimismo da razão e no otimismo da prática basaglianos, terminamos parafraseando-o, naquilo que disse sobre Gorizia (enquanto experiência de comunidade terapêutica): a comunidade terapêutica morreu – por meio da CT! Viva a comunidade terapêutica28! Matemos quem matou (a CT) a comunidade terapêutica! A morte da comunidade terapêutica pode ser (e será) a sua vitória, desde que feitas as devidas autocríticas do processo que levou a seu óbito. Mais, será a vitória do seu horizonte, que foi o da superação do manicômio, bem como da sociedade que o produziu e se reproduz nele e por ele. Que a morte da comunidade terapêutica possibilite não o seu renascimento, mas a criação do novo, que venha, inclusive, a negar não só no desejo, mas concretamente, a CT e quaisquer outras formas de manicômio.
Pelo fim das Comunidades Terapêuticas (CTs)!
Pelo fim de quaisquer manicômios!
Por uma sociedade sem manicômios!
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