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TEORIA

O tempo partido (ou partido dos tempos) como partido-encontro

Pedro Costa, de Brasília-DF

Nos marcos da crise sistêmica do capital, a crise das formas organizativas da classe trabalhadora, sobretudo da forma-partido, se apresenta como uma de suas facetas ou manifestações (críticas). A partir disso, cabe a indagação: seria a forma-partido, mais especificamente a forma-partido leninista, pautada no/pelo centralismo democrático, adequada para os tempos presentes? Seria ela contextualizada às necessidades correntes da classe trabalhadora? Esta forma não se choca contra os modos de subjetivação hegemônicos do atual estágio de desenvolvimento capitalista, comumente caracterizado como neoliberal? Não se trata de uma forma antiquada a uma dinâmica societária na qual o giro cada vez mais acelerado de rotação do capital faz imperar de maneira recrudescida a ditadura do eu, a volatilidade das relações, o esfarelamento do tecido social, o empresariamento de si, a compressão espaço-tempo? Ainda, numa quadra histórica na qual cada vez mais a disciplina é concebida negativamente como sinônimo de controle, como um tolhimento das singularidades, uma forma organizativa na qual a disciplina militante é fundamental se mantém relevante?

A nosso ver, o que pode ser entendido por crise da forma-partido, e mais especificamente, do centralismo democrático, circunscreve-se a uma crise mais ampla, que é a crise de subjetividade da classe trabalhadora, do sujeito político, coletivo e revolucionário3. Na contramão de interpretações mecanicistas, teleológicas de que haveria um avanço e crescimento automáticos da consciência da classe trabalhadora e de sua capacidade de mobilização e organização em face da maior precarização de suas condições de vida, do desenvolvimento cada vez mais destrutivo e barbárico do capital, temos uma conjuntura de arrefecimento no plano da consciência e nas lutas da classe trabalhadora. Nisso, constatamos a eficiência do próprio capital não só em forjar contradições e intensificá-las, mas também em mistificá-las – algo que o próprio Marx apreendeu e denunciou em inúmeras ocasiões.

Daniel Bensaïd, no brilhante ensaio Lenin, ou a política do tempo partido, aponta como a política, ao possuir as suas próprias gramática e sintaxe, “é o lugar de uma elaboração, de uma aparição, de uma representação, onde trata-se de apresentar aquilo que está ausente”. Ora, ainda em consonância com Bensaïd – e com Lênin –, não é o partido “a forma específica sob a qual a luta de classes se inscreve no campo político”? Não seria o partido o “vetor privilegiado desta experiência especificamente política”? Acreditamos – e defendemos – que sim.

Contudo, essa convicção esbarra em outra: a de que, sendo a política o lugar onde se apresenta aquilo que está ausente, cada vez mais as respostas às lacunas de nossas vidas têm sido fornecidas por outras formas, que não o partido. E não quaisquer formas, mas aquelas que expressam de maneira mais pronunciada e acabada as modulações ideológicas, o modo de subjetivação produzido e requerido no/pelo atual estágio de desenvolvimento capitalista para a sua própria reprodução: o que alguns caracterizam por razão neoliberal. Não à toa, vemos o crescimento massivo do neofascismo, da teologia da prosperidade e do fundamentalismo religioso, de coaches, da psicologização, psicopatologização e medicalização da vida, dentre outros inúmeros exemplos.

Não defendo aqui que o partido tome para si a função da psicologia, da psicoterapia ou, por exemplo, ocupe o lugar de igrejas. Muito menos ensejamos ao nosso partido que exerça função social de captura subjetiva por meio de apassivamento, docilização e controle feito por coaches, pela psicopatologização e medicalização da vida. Pelo contrário, cabe ao partido ser instrumento de politização sobre as condições de vida cada vez mais lacunares, cujas respostas às ausências têm sido cada vez mais fornecidas por meios que não as preenchem ou as satisfazem – por mais que deem a impressão de que façam isso ou, em certa medida, podem fazê-las, só que de maneira privativa, individualizada.

Contudo, cabe a nós questionarmos por que tais instituições (e suas mercadorias, cabe ressaltar), e não o partido, têm sido cada vez mais convocadas a apresentarem aquilo que está ausente em nossas vidas, a darem e a serem respostas às nossas lacunas, a serem presenças constantes em nossas ausências, inclusive, ocupando a política, fazendo política, sendo-a; buscando ser o “vetor privilegiado desta experiência especificamente política”, que tanto almejamos ao partido. Grosso modo, por que as formas específicas sob as quais a luta de classes se inscreve no campo político têm sido cada vez mais estes meios (alienados e alienantes) e não o partido? A nosso ver, para além da função social hegemônica de mistificação da ordem, de alienação e de controle que os primeiros têm cumprido, e as quais nos opomos, é necessário pensar como a referida crise subjetiva da classe trabalhadora, evoca uma reflexão também sobre o que a forma-partido e o centralismo democrático não só tem sido, mas podem ser.

Com isso, não defendemos aqui uma mera – e equivocada – postura adaptacionista; que o partido deve simplesmente se adaptar à dinâmica presente. Pelo contrário, estamos convictos que uma parte da sua “inadequabilidade” às condições de vida e ao tempo presentes, diz justamente de suas forças; potencialidades essas que, não por acaso, têm sido bastante confrontadas, atacadas pela ofensiva do capital nos moldes neoliberais. No entanto, nos colocamos a pensar e refletir sobre este fundamental instrumento de luta, com o intuito de fortalecê-lo, num movimento de análise concreta da situação concreta.

Ainda no diálogo com Bensaïd – e com Lênin –, o partido nos moldes leninistas é “um organizador dos diversos tempos”, passando a ser um tempo partido. Esse tempo partido traz para si o papel de mediador e modulador de múltiplas temporalidades. Não à toa, conjuga movimentos defensivos e ofensivos (por mais que os primeiros têm predominada na atual quadra histórica); se põe a organizar passos que não só avancem, mas que, por vezes, carecem de recuos táticos, para que se avance ainda mais. Deve, em suma, gerenciar o tempo presente, a partir do aprendizado histórico, projetando e construindo o futuro.

Nessa esteira bensaidiana – e leninista –, defendemos que este partido tempo, ou tempo partido, se reivindique também como um encontro partido ou partido-encontro, e o seja concretamente, afinal, mediar e gerenciar diferentes tempos, a nosso ver, implica em mediar e fortalecer o encontro entre eles.

Primeiramente, antagonizando à dispersão (e ao consequente enfraquecimento) das lutas, que o partido seja o encontro destas lutas, de outras formas organizativas, como os sindicatos, os movimentos sociais e populares, por exemplo. Que o partido não seja apenas poroso a elas, mas as incorpore, sem evidentemente descaracterizá-las e descaracterizar a si próprio, mantendo suas respectivas autonomias; que as reivindicações, as pautas destas outras formas organizativas encontrem o partido e se encontrem nele, sendo também (d)o partido. Mais do que nunca, é fundamental o diálogo e a mediação do partido, resguardadas as suas especificidades, com o movimento sindical, os movimentos sociais e populares, forjando uma unidade na diversidade: de tempos, de encontros.

Um partido-encontro, a nosso ver, também se põe como antagonista ao individualismo cada vez mais reinante em nossa sociedade, apresentando a si como possibilidade de uma socialização pautada na/pela solidariedade, na coletivização das agruras, mas também das respostas, das saídas. Se os problemas são coletivos, as soluções também. Contrário à paralisia fatalista que cada vez mais nos assola, temos o partido-encontro como fuga ao presenteísmo, arrancando a fórceps a alegria ao futuro, bem como a própria capacidade de prospectar o futuro, de sonhar; e um futuro que não seja a barbárie, o fim da humanidade; um sonho que não seja pesadelo.

Ainda nessa esteira, temos afirmado que se o partido é espaço apenas para as tarefas militantes, para a cobrança etc. – que têm se avolumado –, ele deixa de ser partido, tornando-se “apenas” trabalho (alienado). Se o partido não coaduna seu horizonte de desalienação, de emancipação humana, com o seu “como”, isto é, com a sua forma, o seu programa e regime e como eles são materializados, temos uma incongruência entre forma e conteúdo, de tática e estratégia.

Defendemos, então, que este partido-encontro seja, antes de tudo, mediador e propiciador de uma socialização mais rica, mais humanizada. Para isso, deve pensar a si próprio enquanto ente comunitário, seus espaços enquanto espaços de socialização, de trocas, em conjunto a outros entes comunitários e formas políticas organizativas, utilizando as ferramentas diversas que a própria humanidade criou e tem desenvolvido para si: a arte e a cultura, o lazer, o esporte, a formação etc. Disciplina não é sinônimo de controle, de enrijecimento, de empobrecimento de vínculos, de embotamento. Se tem sido, que voltemos aos princípios, ao programa, ao regime.

Que o partido seja reconhecido, antes de tudo, como espaço de encontro, como possibilidade de encontros, de produção enriquecida e mais humanizada de vida. Mais uma vez, se as relações militantes se dão apenas e exclusivamente pelo tarefismo; se os encontros se dão apenas nas atividades de luta, reuniões, entre outras, temos um grande descompasso entre o que apregoamos e o que temos feito; há uma incongruência inclusive entre o tempo presente o tempo futuro. Mesmo nestas, podemos avançar para que sejam pensadas como ações de cuidado, de acolhimento e escuta permanente, até mesmo para que sejam mediadas pelas singularidades das(os) militantes.

Por fim, defendemos que este partido-encontro seja também um partido-cuidado. Que ele seja um antagonista à precarização da vida, que se manifesta cada vez mais na forma do sofrimento psíquico, do adoecimento físico e mental da classe trabalhadora – e das(os) militantes –, o partido como possibilidade de escuta, de cuidado. Cuidado aqui que não está restrito àquilo que tem sido nomeado como tal – e que tem seu lugar, a sua relevância. Cuidado, como muito bem nos ensina Rachel Gouveia Passos4, como necessidade ontológica de um ser que é social e que se faz nas/pelas relações sociais. Cuidado como necessidade de se fazer no e pelo outro, de ser escutado e de escutar, de obter e fornecer carinho, afeto. Cuidado como respiro à restrição do ar; como parada à aceleração desenfreada da vida.

O partido-encontro implica o cuidado, inclusive, politizando-o, desprivatizando-o, coletivizando-o. Se para educar uma criança é preciso uma aldeia, como nos ensina o provérbio africano, para cuidar de uma outra pessoa é também necessária uma coletividade. Reclamamos, então, que o partido se reconheça nesta coletividade, propondo a si ser uma ferramenta também de cuidado; cuidando das suas e dos seus militantes, tomando seus problemas como nossos, bem como cuidando das comunidades que vão para além dele mesmo.

O tempo partido implica, então, não só que seja partido-encontro, mas que essa amalgama de tempos, de encontros se expressem enquanto cuidado.

Evidentemente que a exigência aqui colocada é alta; possui grande complexidade, inúmeras dificuldades e obstáculos, se chocando com as próprias condições objetivas de militantes (que também são trabalhadores) cada vez mais desgastantes, precarizadas. Contudo, vivemos tempos complexos e de intensificação da barbárie, demandando um partido a altura de seu tempo, o que significa ao menos pensarmos sua dinâmica, limites e possibilidades.

A corrente crise subjetiva da classe trabalhadora, nos marcos da crise sistêmica do capital que vivemos, e suas implicações críticas ao partido denotam o que Marx já nos advertiu, sobre como “a humanidade não se propõe nunca senão os problemas que ela pode resolver, pois, aprofundando a análise, ver-se-á sempre que o próprio problema só se apresenta quando as condições materiais para resolvê-lo existem ou estão em vias de existir”5. Sabemos que este processo não é automático, espontâneo, carecendo de ser construído, dizendo dos nossos desafios. Cabe a nós fortalecer este instrumento para que ele ocupe seu lugar devido de elaboração, de apresentação ao que está ausente em nossas vidas; e para ocupar este lugar ele precisa sê-lo.

Dessa forma, a possível constatação da perda de relevância, e quiçá da hegemonia, da forma-partido entre as formas organizativas de luta da classe trabalhadora não pode ser confundida com uma aceitação dessa realidade. Não podemos confundir o diagnóstico com o prognóstico. Se há, de fato, uma perda de relevância na forma-partido, ainda mais no sentido leninista, pautado no/pelo centralismo democrático, isso não significa que esta forma é menos necessária. Pode ser o contrário – e acreditamos que seja: sua perda de relevância no bojo das lutas se dá, justamente, pela sua importância, ao passo que o enfraquecimento desta forma organizativa reitera ainda mais o quanto ela é necessária. Não à toa, ela tem sido tão atacada, tão desvalidada. E, mesmo assim, ela permanece. E, ainda assim, ela expressa a sua relevância no atual estágio de desenvolvimento capitalista.

Pedro Costa é professor na UnB e militante da Resistência-PSOL em Brasília-DF. Texto oriundo das trocas feitas na Escola de Dirigentes em Brasília, com companheiras(os) do Distrito Federal e Goiânia. Faço um agradecimento especial a Mari Caetano e Lourival Aguiar que brilhantemente conduziram todo o processo.
1 Sobre isso, recomendamos os textos: Pensando um pouco sobre a “crise de direção do proletariado, de Henrique Canary; e As cinco crises estruturais do novo período histórico, de Gabriel Casoni e Genilda Souza.
2 Dentre as várias produções da referida intelectual e militante sobre o tema, recomendamos sua tese de doutoramento, “Trabalhadoras do care na saúde mental: contribuições marxianas para a profissionalização do cuidado feminino” (2016).
3 Em Prefácio, da Contribuição à crítica da Economia Política (Expressão Popular, 2008, p. 48).