A vitória ao alcance das mãos, difícil mantê-la num mundo hostil
Como já escrevi, a história não se repete mecanicamente, não porque os participantes assimilaram as lições do passado – que aliás em geral desconhecem – mas porque as condições variam sempre. Quando entretanto as condições sociais, notadamente a natureza de classe das forças em presença, são parecidas, ocorrem coincidências curiosas. As Jornadas de Julho, iniciadas pela tentativa de golpe militar de Kornilov, fracassou, como fracassou tentativa parecida, embora ainda mais caricata, de 8 de janeiro no Brasil. Nos dois casos, os centristas, que haviam cortejado a extrema-direita, pensando utilizá-la para galgar o poder, sentiram que também seriam atingidos em caso de vitória golpista. Abandonaram os possíveis aliados, evidentemente sem adesão à esquerda, mas calando por algum tempo seu reacionarismo.
São imensas as diferenças entre a Rússia de então e o Brasil de hoje. Incluem o empoderamento das massas ganhas ao projeto bolcheviques na Rússia em guerra e, no caso do Brasil, a relativa passividade do movimento de massas, após anos de servidão voluntária associada ao paternalismo lulista, num clima internacional moroso, no melhor dos casos. O papel tragicamente contra-revolucionário do fracasso soviético, com a transformação da direção burocrática em burguesia agressiva e ávida de espaço no quadro do capitalismo dito selvagem (e qual não o é?), teve um efeito determinante. Pode-se argumentar com certa razão que esta burocratização, profundamente contra-revolucionária, foi um fato bem mais tardio e portanto sem efeito – mas é também verdade que suas raízes estavam presentes na sociedade, somente convertida superficialmente ao “capitalismo democrátco”, tão esperado pelos reformistas. Mesmo quem ignora tudo a respeito dos acontecimentos políticos dos últimos 70-80 anos, é afetado pelo clima reacionário resultante. Nas circunstâncias políticas intimamente associadas às iniciativas do imperialismo – empreendedorismo, fanatismo religioso, denúncia do papel dos intelectuais, decadência cultural e promoção religiosa – tiveram um rápido efeito ultra-conservador. O “reformismo sem reformas”, ganhou em respeitabilidade, deixando espaço livre para o centro burguês, a chamada “Frente Ampla”, que no decorrer dos meses marcou sua oposição à projetada e mal constituída Frente de Esquerda. Evidentemente, o clima geral não poderia ser mais diverso: a Primeira guerra mundial provocou uma rápida politização, capitalizada por uma direção política competente, que, apesar de divisões internas que não foram expostas pelos interessados, enfrentou com galhardia as crises de Abril e de Julho, para desembocar no Outubro decisivo, comparada à evolução negativa da consciência dos trabalhadores e de suas direções, reais ou aparentes,, no caso brasileiro. O papel das forças armadas nos dois casos foi oposto: milhões de soldados de origem camponesa em acelerada politização passaram em meses, senão em semanas, do apoio aos reformistas, para o apoio aos revolucionários. Note-se o papel ultra minoritário da extrema-direita na Rússia, contrariando a ideia corrente que a religiosidade impede o progressismo. Nada parecido no Brasil: a extrema-direita, sobretudo de influência empresarial-religiosa, ganhou surpreendente força dentro de setores populares e, no momento em que escrevo (Março-Abril de 2024) nada indica que a estreita vitória eleitoral de Lula a tenha enfraquecido, bem ao contrário. A política reformista em curso tende a repetir promoções (e não mobilizações) num contexto internacional e financeiro bem diverso, limitando seu alcance e sua perenização. Esta situação pode evidentemente mudar.
Ainda na Rússia, uma vez derrotada a tentativa de restauração monárquica capitaneada por Kornilov e asseclas, sem chegar ao afrontamento armado, os resultados de eleições nos Soviets mostraram que a vitória estava ao alcance dos bolcheviques, os mais conscientes e exigentes das facções em presença. Muita coisa ocorreria entretanto antes de Novembro (e evidentemente após), No Brasil, uma vez derrotada a insurreição de 8 de janeiro e as provocações de curto alcance do setor mais agressivo da extrema direita, não ocorreu mudança significativa nas relações de classe. Permaneceu o equilíbrio instável entre o golpismo de setores significativos das cúpulas, civil e militar e a Frente dita Ampla, ancorada no legalismo jurídico (STF p. ex.), no lulismo, na corrupção e na situação internacional. As manobras do PT e a inesgotável capacidade de tergiversação de Lula contribuem para a aparente acalmia, apoiada pela posição conciliadora do imperialismo e pelas dificuldades que enfrenta e enfrentará o mussoliniano Natanayu. Tudo isso dá espaço para o setor desenvolvimentista da burguesia que, ao menos neste momento, acha que “ruim com Lula, pior sem ele”. Todos estes elementos são instáveis e é importante notar que a cada líder ”progressista” corresponde uma alternativa legal. Assim, o volúvel Boulos tem sua vice marcada por arrivismo e associação ao que há de pior na política brasileira; o equilibrista Lula, se cair, deixaria o poder nas mãos de Alckmin, que já provou em São Paulo que merece toda confiança da burguesia, como o mostrou sua atitude quando governador de SP diante das ocupações ou durante a repressão, inclusive contra forças juvenis em luta pela qualidade do ensino.
Antes de tratarmos da insurreição de Outubro propriamente dita, parece-me útil aprofundar a discussão sobre o etapismo e a revolução permanente.. Para tanto, discutirei a Carta sobre tática, escrita por Lenin entre 8 e 13 de abril de 1917, portanto logo após seu retorno de Zurich e a apresentação então contestada de suas Teses de Abril. Na primeira parte desta Carta, Lenin retoma à tradicional declaração de Marx e Engels, segundo a qual “Nossa doutrina não é um dogma, mas um guia para a ação“. Afirma que naquele momento a Rússia se encontra em uma fase de transição entre a “primeira etapa da revolução e a segunda“, a primeira consistindo na passagem do poder à burguesia, pois antes da revolução de fevereiro este pertencia à nobreza da terra, encabeçado pelo tzar Nicolau Romanov. Afirma, para reforçar seu argumento, que a passagem do poder de uma a outra classe caracteriza essencialmente a revolução, mas sem se referir à natureza da propriedade, que é o elemento decisivo, especialmente para a estabilização do regime. Escreve que a revolução democrático-burguesa terminou na Rússia, já que o poder mudou de mãos, passando do tsar ao advogado Kerenski, assessorado por burgueses ocidentalizados e enfrentando/envolvendo, os Soviets, que brotavam pelo país afora. Assim, na concepção expressa de Lenin, a revolução democrático-burguesa terminou com a passagem do poder de um bandido para outro. Pode-se indagar se a primeira fase da revolução chilena terminou com a vitória eleitoral de Allende?
Em seguida Lenin, creio que com razão, afirma que esta revolução não modificou a sociedade – não avançou em direção à paz almejada nem distribuiu terra àqueles que abandonavam a frente de batalha. A seus adversários, afirma que as palavras de ordem e ideias dos bolcheviques foram, em seu conjunto, confirmadas pela história, mas de forma imprevisível, mais original e curiosa… Se a primeira etapa começou em Fevereiro e terminou em Abril 1917, um outro objetivo entra na ordem do dia; a cisão entre os elementos proletários e os pequenos-proprietários e demais partidários do governo burguês. Afirma que se trata agora da segunda fase da revolução. Afirma também a originalidade imprevista dos acontecimentos, que ultrapassam as teorias (entenda-se a teoria da revolução por etapas) Curiosamente, afirma Lenin, que aguardar o “término” da revolução burguesa como se pensava anteriormente, é sacrificar o marxismo vivo à letra morta”. De fato, a antiga fórmula era: após o poder da burguesia deve-se instaurar o poder do proletariado e do campesinato”. Continua ele: “na vida real as coisas não se passam desta forma, ocorre uma mistura extremamente original, nova, sem precedente, das duas revoluções. Encontram-se lado a lado, juntos e simultaneamente, o domínio da burguesia (o governo Lvov, então empoderado), e a ditadura democrática-revolucionária que, por vontade própria, cede o poder à burguesia, tornando-se seu apêndice … o poder real em Petrogrado pertencia então aos trabalhadores e soldados: o novo governo não tem como exercer autoridade alguma, não existe polícia nem exército distinto do povo, nem burocracia acima do povo”. “Acontece que os deputados soldados e camponeses, formam um segundo governo, e que eles o completam, e desenvolvem livremente e até cedem o poder à burguesia … de fato, sempre dissemos que esta não se mantém somente graças à violência, mas também graças à inconsciência, à rotina, … à falta de organização das massas.. Respondendo a objeções, acrescenta Lenin: “O governo não pode passar hoje senão aos Soviets, onde predominam o campesinato, os soldados e a pequena burguesia“. Neste ponto, Lenin se defende de eventual acusação de sectarismo, de blanquismo (1), mas parece reconhecer o duplo poder, mesmo se “curioso” e “original”…
Esta e outras formulações de Lenin levam ao programa socialista: não seria mais claro e simples dar-lhe o nome já empregado em situações parecidas, de revolução permanente? Esta admissão, anterior à entrada formal de Trotski no partido bolchevique e ao papel eventual na luta que se aproximava, não podia evidentemente ser prevista por Lenin, e teria ajudado na luta ideológica, inclusive na política de alianças em plano mundial. Evidentemente, isto inclui o Brasil e o dia de hoje e tem razão Diana Assunção, quando diz numa nota, ao se referir aos participantes de manifestação golpista: Tarcísio e Nunes ao lado de Bolsonaro. Tarcísio (havia estado) de mãos dadas com Lula, que financia parte das privatizações em SP. Retrato de como a conciliação fortalece a extrema direita. Curto e grosso (2).
O final do mês de Agosto assistiu a uma multiplicação de rumores – falsos ou meio verdadeiros – de golpe iminente, por Kornilov e companhia. Ao entender que sua própria sorte estava em jogo, Kerenski tentou forçar Kornilov à demissão; esta ameaça endureceu a posição de muitos oficiais superiores, antecipando que esta demissão traria miséria à Santa Rússia… Será que ́ qualquer semelhança não é senão mera coincidência? Ou não será porque, dentro de contextos econômicos, religiosos, culturais etc., as classes sociais se enfrentam ou se aliam por razões e portanto instrumentos materiais e culturais parecidos? Kornilov seria operacionalmente o equivalente ao contra-revolucionário general António Spínola em Portugal, um Inimigo da revolução dos Cravos ou então de Gaulle, o mais inteligente de todos eles, que soube passar de colonialista rígido a negociador habilidoso para salvar o que fosse possível do domínio colonial francês na Argélia; Pinochet foi membro fidelizado do governo Allende antes de chefiar o golpe contra o próprio, e fazia figura de militar “democrático”. Deixo à imaginação do leitor determinar exemplos mais próximos de pseudo-aliados de Lula que, com sorrisos cúmplices e declarações ambíguas (e embolsando vantagens), escondem seu direitismo.
A surpreendente derrota de Kornilov sem que tenha ocorrido o menor enfrentamento, embora dispusesse do poder formal sobre o gigantesco exército (verdade que em rápida deliquecência) e do apoio dos oficiais e dos diversos imperialismos, requer uma explicação. Por um lado, seu militarismo num momento em que o exército russo se dissolvia, entre derrotas militares e tomada de consciência dos soldados, e a formação de uma espécie de Frente Ampla, com reformistas de todo tipo e bolcheviques, que momentaneamente, sem cessarem de criticar Kerenski, restringiram a intensidade. O conjunto da burguesia e notadamente seus partidos, temiam o banho de sangue que os atingiria caso Kornilov vencesse. Isto parece bem estabelecido e de fato lembra os eventos em torno da tentativa golpista de 8 de janeiro no Brasil, quando a maior parte da classe dominante e do aparelho de Estado se opôs à intentona. Esse espírito “neo-democrático” tende a rapidamente passar, os velhos tormentos da burguesia, notadamente retornando o medo pânico dos de baixo, como se provindos do telencéfalo, o cérebro pseudo-crocodiliano.
A situação criada pela corrupção do Estado Operário soviético, iniciada em torno de 1922 – portanto em vida de Lenin, que o havia assinalado – se estendeu por quase um século, até sua volta em 1989 à “normalidade” capitalista. A sombra reacionária estendeu-se ao mundo inteiro: as repetidas intervenções imperialistas, assim como o massacre da população palestina empreendido pelos supostos descendentes das vítimas do nazismo, seria impossível durante a existência da URSS: basta ver o que ocorreu anos antes, quando Israel, França e Grã-Bretanha pretenderam devolver o canal de Suez aos seus “legítimos” proprietários, após sua nacionalização por Nasser: bastou uma ameaça soviética (verdade que apoiada pelo alarme de Eisenhower, presidente republicano dos Estados-Unidos), para que as três potências coloniais recuassem imediatamente. O apoio do imperialismo central ao seu agente securitário no Oriente Médio tem raízes históricas, independe do partido que está no poder na matriz ou na filial.
É mais do que nunca necessária uma perspectiva histórica. A passagem do feudalismo ao capitalismo, ou seja, a substituição de um regime de propriedade privada por outro, levou séculos na Europa. As forças conservadoras conseguiram manter seu poder em meio a transformações burguesas da estrutura feudal. Em versão curta, o regime de propriedade pode ter mudado de forma, mas nunca de fundo, a propriedade privada persistindo, mesmo quando desafiada por uma minoria, como no caso do revolucionário Babeuf no final do século XVII na França (3). Não é estranho que, no contexto do atual domínio imperialista mundial, o socialismo tenha dificuldades em se impor.
Não nos espantemos portanto que a passagem formal do capitalismo a uma organização estatal socialista dure muito mais do que previam Marx, Engels, Lenin, Trotski e possa assim necessitar, para vingar no tempo e no espaço, tomadas sucessivas de poder em países diversos. Estes intervalos históricos possuem um poder dissuasivo e desmoralizante. Entretanto, a menos que sejamos social-democratas e/ou adeptos de um determinismo rígido, independente da subjetividade e da capacidade organizativa, devemos entender que as forças sociais em jogo são muito poderosas, capazes de convencer massas consideráveis a combaterem pelos interesses de seus inimigos históricos, como hoje no Brasil (4). A rara oportunidade de criar forças capazes de sustentar uma vitória socialista foi perdida pela combinação entre a derrota da revolução alemã de 1918 a 1923, sabotada pela social-democracia e a burocratização da URSS, que congelou a revolução pelo empoderamento das forças comandadas por Stalin (5).
Guardar a perspectiva e ao mesmo tempo a calma, compreender que possuímos um capital histórico, político e ideológico – assegurar, nas circunstâncias que a realidade impuser, a transmissão de uma mensagem histórica: eis uma tarefa essencial, a transmissão da esperança e
Voltemos ao Brasil: a derrota eleitoral da direita, com a vitória e posse de Lula e o fracasso da tentativa golpista de 8 de janeiro de 2024, consagraram a queda e marginalização do “quase-Kornilov brasileirodo racional.
” e permitiu que a democracia dita burguesa se mantivesse, o que evidentemente foi positivo e pode ser atribuído à “Frente Ampla”, mas… deixou a extrema-direita intacta, paradoxalmente com sua base fortalecida e capaz de reunir uma massa considerável na Avenida Paulista de S. Paulo! Evidentemente, a comparação entre os dois países é precária, na Rússia a guerra mundial e a política acertada do movimento revolucionário permitiram a tomada posterior do poder socialista em meio ao esfacelamento do estado burguês, duas condições inexistentes no Brasil. Embora Engels tenha dito que ” a guerra é a mãe das revoluções” e não tenha havido guerra no Brasil, parece-me que falta uma explicação para o conservadorismo contra-revolucionário crescente e as dificuldades da esquerda.
Nota: Como anunciado inicialmente, este trabalho discutiu os meses que precederam a tomada do poder durante a Revolução russa, mas não a tomada do poder propriamente dita, em Outubro-Novembro 1917.
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