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Colunas

A Enfermagem brasileira tem cor

12 de maio, dia de relembrar enfermeiras negras apagadas da história!

Saúde Pública resiste

Uma coluna coletiva, produzida por profissionais da saúde, pesquisadores e estudantes de várias partes do País, voltada ao acompanhamento e debate sobre os ataques contra o SUS e a saúde pública, bem como às lutas de resistência pelo direito à saúde. Inaugurada em 07 de abril de 2022, Dia Mundial de Luta pela Saúde:

Ana Beatriz Valença – Enfermeira pela UFPE, doutoranda em Saúde Pública pela USP e militante do Afronte!;

Jorge Henrique – Enfermeiro pela UFPI atuante no DF, especialista em saúde coletiva e mestre em Políticas Públicas pela Fiocruz, integrante da Coletiva SUS DF e presidente do Sindicato dos Enfermeiros do Distrito Federal;

Karine Afonseca – Enfermeira no DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB, integrante da Coletiva SUS DF e da Associação Brasileira de Enfermagem, seção DF;

Lígia Maria – Enfermeira pela ESCS DF e mestre em Saúde Coletiva pela UnB. Também compõe a equipe do Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei do DF;

Marcos Filipe – Estudante de Medicina, membro da coordenação da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina (DENEM), militante do Afronte! e integrante da Coletiva SUS DF;

Rachel Euflauzino – Estudante de Terapia Ocupacional pela UFRJ e militante do Afronte!;

Paulo Ribeiro – Técnico em Saúde Pública – EPSJV/Fiocruz, mestre em Políticas Públicas e Formação Humana – PPFH/UERJ e doutorando em Serviço Social na UFRJ;

Pedro Costa – Psicólogo e professor de Psicologia na Universidade de Brasília;

Por Karoline Souza Silva, Brasília-DF

O dia 12 de maio é marcado mundialmente como o Dia da Enfermagem e o Dia Internacional da Enfermeira, em homenagem à enfermeira inglesa Florence Nightingale, considerada como a mãe da enfermagem moderna. Além disso, no Brasil, com o Decreto nº 2.956/1938, comemora-se a Semana Brasileira de Enfermagem entre os dias 12 e 20 de maio, datas escolhidas para homenagear, além de Florence, Ana Nery, enfermeira brasileira que se colocou à disposição do exército brasileiro para ir à guerra do Paraguai como auxiliar do corpo de saúde, sendo considerada a primeira enfermeira voluntária do Brasil. Porém, apesar desta data trazer à memória duas figuras brancas importantes para a história da enfermagem, este texto surge da necessidade de apontar o apagamento histórico de enfermeiras negras tão relevantes quanto as homenageadas.

Historicamente, há um reconhecimento de que, no período colonial do Brasil, as práticas de cuidado couberam às mulheres negras, tendo esta forte atuação como parteiras, amas de leite, empregadas domésticas e babás. Apesar de serem a maior força no trabalho de cuidado, mulheres negras tiveram acesso negado ao processo de profissionalização da enfermagem – conhecida como ciência do cuidado -, iniciado em 1860. Uma análise do lugar ocupado pelas mulheres na sociedade ao longo da história brasileira evidencia que as mulheres negras sempre foram colocadas em último extrato de visibilidade, sofrendo dupla opressão no contexto das relações de poder.

O apagamento histórico da mulher negra na profissionalização da enfermagem ao longo da história do País se tornou uma barreira na compreensão e na formação da identidade profissional das enfermeiras, por excluir de sua historiografia fatos e memórias. Esta invisibilidade está pautada nas relações de poder de gênero e de raça, ao atender os interesses do patriarcado – caracterizado como heteronormativo, elitista e branco. Assim, é possível verificar a presença latente do racismo na origem da enfermagem profissional ao analisarmos as admissões para a Escola de Enfermeiras do Departamento Nacional de Saúde Pública do Rio de Janeiro, fundada em 1923 – que mais tarde se tornaria a Escola de Enfermagem Ana Nery, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

De forma diplomática e estratégica, mulheres negras eram impedidas de acessar a Escola. Legalmente, mulheres negras não poderiam ser impedidas de frequentar o sistema de educação por serem cidadãs brasileiras, mas a exclusão era feita através do controle dos critérios de concessão de bolsas de estudos, que sempre desclassificaram candidata negra a partir de requisitos elaborados e impostos por organizações internacionais que fomentaram a sistematização do currículo de enfermagem no Brasil e a profissionalização da categoria: ser mulher, branca, culta, jovem, religiosa e saudável. Enquanto mulheres negras eram estereotipadas como sinônimos de doenças, incapacidade, fora dos padrões.

Durante duas décadas, a profissionalização através da enfermagem foi negada para mulheres negras. Embora em 1926 uma mulher negra tenha sido admitida na Escola de Enfermeiras, este fato gerou conflito, diante da suspeita que a candidata havia sido indicada pela imprensa. A fundação da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), em 1940, trouxe avanços para a inserção de mulheres negras na graduação em enfermagem, já que em sua segunda turma havia duas estudantes negras: Josephina de Mello e Lúcia Conceição da Costa. Mesmo assim, ainda havia padrões de comportamento e de beleza a serem seguidos, que apagavam a negritude dessas mulheres, pois seu regimento valorizava cabelos lisos e o clareamento da pele.

Se em 1943 havia apenas duas mulheres negras em uma turma de enfermagem, a realidade atualmente é outra. Dados do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN), mostram que, atualmente, existem 450.770 auxiliares, 1.611.639 técnicas e 670.581 enfermeiras registradas no Brasil, sendo 85,1% declaradas do sexo feminino. Os dados evidenciam, ainda, que do total de profissionais pesquisadas: 53% se autodeclaram negras, 42% brancas, 1,9% amarelas e 0,6% indígenas. Refinando ainda mais os dados apresentados pelo COFEN, ao confrontarmos o quantitativo de profissionais e sua distribuição por raça e escolaridade, nota-se que 57,4% são trabalhadoras negras de nível médio, sob o comando de 57,9% de enfermeiras brancas. A identidade construída para a enfermagem brasileira contempla mulheres brancas, conferindo a estas, representatividade. Porém, se os dados supracitados mostram que a enfermagem é, essencialmente, negra, quais são as figuras de representatividade para enfermeiras negras?

Lydia das Dores Matta, Josephina de Melo, Lucia Conceição e Maria de Lourdes Almeida
Em 1943, Lydia das Dores Matta, Josephina de Melo, Lucia Conceição e Maria de Lourdes Almeida foram as primeiras negras oriundas de estados pobres e distantes a ingressarem no curso básico de enfermagem da Universidade de São Paulo (USP), a escola de maior projeção da América Latina na época em que foi criada, em 1940.

Lydia das Dores Matta, Josephina de Melo e Lúcia Conceição, respectivamente

Maria José Barroso, a Maria Soldado
Nascida em Limeira-SP, em 1895, Maria Soldado viveu em São Paulo e trabalhou como cozinheira para a família Penteado Mendonça até 1932. Foi na guerra civil da revolução constitucionalista que seus feitos e posicionamentos políticos começaram a ser executados como enfermeira da Legião Negra, posteriormente passando a assumir papel importante na linha de frente da batalha, tornando-se uma notória enfermeira de guerra.

Maria José Barroso

Com uma atuação centrada em hospitais de sangue e postos de emergência das brigadas e frentes de batalha, Maria Soldado exerceu cuidado e destacou-se recebendo o título de enfermeira pela imprensa e um temporário reconhecimento social. Após o fim da revolução constitucionalista de 1932, a enfermeira caiu no esquecimento pela sociedade, assim como milhares de homens e mulheres negras que compuseram a Legião Negra. Porém, em 1957, foi escolhida como mulher “símbolo de 32” e como heroína da revolução no Jubileu de Prata do Movimento Constitucionalista. Faleceu em 11 de fevereiro de 1958, na cidade de São Paulo. Seus restos mortais repousam no panteão dos heróis da Revolução, simbolizado pelo obelisco no Parque Ibirapuera na cidade de São Paulo.

Rosalda Cruz Nogueira Paim, teórica de enfermagem e primeira enfermeira parlamentar negra

Nascida em Vila Velha-ES, em 1925, Rosalda Paim se autodeclarava uma mulher parda. Formada em Enfermagem pela Escola de Enfermagem Aurora de Afonso Costa da Universidade Federal Fluminense (UFF); especializou-se em pediatria, administração hospitalar e saúde pública, além de ter sido mestre em educação pela Faculdade de Educação da UFF e doutora em enfermagem materno-infantil pela PUC-Rio em 1975.

Rosalda Paim

Foi docente na Escola de Enfermagem do Estado do Rio de Janeiro, ocupando cargo de chefia do Departamento de Enfermagem Materno-Infantil e Psiquiatria da UFF, entre 1990 e 1992. Iniciou as discussões para criação do curso de Mestrado Profissional em Enfermagem Assistencial e do curso de Mestrado Acadêmico em Ciências do Cuidado em Saúde. Teorizou e aplicou conceitos de gestão de serviços de saúde, preconizados pelo Sistema Único de Saúde antes mesmo deste sistema ser criado. Na pesquisa, destacou-se ao elaborar a Teoria Sistêmica Ecológica Cibernética de Enfermagem, um modelo ampliado de saúde e cuidado que potencializa a possibilidade de assistência à saúde a partir das necessidades humanas básicas para a necessidade global em saúde. Paim visava romper com o modelo hegemônico curativista ao trazer conceitos que ainda não eram discutidos no sistema de saúde como: integralidade, humanização, hierarquização dos serviços, referência e contrarreferência.

Na política, Paim demonstrou uma marcante atuação nas atividades institucionais da UFF e nas entidades de classe da enfermagem, tendo sido presidente da Associação Brasileira de Enfermagem (ABEn)- seção Niterói. No período de 1983 a 1987, foi a primeira enfermeira negra parlamentar no Brasil, exercendo mandato de Deputada Estadual no Rio de Janeiro. Sua formação em educação, saúde e enfermagem foi base para criar as vinte leis aprovadas na área da saúde e da assistência social. Rosalda Paim foi uma ativista dos movimentos negro e feminista brasieleiros, trazendo sempre a temática em evidência em sua trajetória.

Izabel Santos, a idealizadora do PROFAE

Izabel Santos

Nascida em Pirapora-MG, Izabel Santos se graduou em enfermagem em 1950 pela Escola de Enfermagem Hugo Werneck, em Belo Horizonte. Sua trajetória profissional começou no Serviço Especial de Saúde Pública ligado à Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS), onde atuou por vinte anos e, posteriormente, passou a integrar o quadro de professores da Universidade Federal do Pernambuco, retornando a OPAS em 1976, onde foi assessora do Ministério da Saúde até 1997.

Sua maior contribuição foi para a formação profissional da enfermagem, sobretudo para o nível técnico com a idealização do Programa de Qualificação de Auxiliares e Técnicos de Enfermagem, o PROFAE – programa referenciado em Paulo Freire. Em três anos, este programa formou cerca de 250 mil profissionais. Izabel Santos faleceu em dezembro de 2010, aos 83 anos de idade, mas deixou um legado na área de formação em saúde.

Maria Stella de Azevedo dos Santos, a Mãe Stella de Oxóssi: enfermeira, Iyalorixá, escritora e imortal
Em 1925, na Ladeira do Ferrão no Pelourinho, em Salvador, nasceu Maria Stella, criada pelos tios em uma família de classe média da sociedade soteropolitana da época, após ficar órfã. Estudou nas melhores escolas da elite tradicional de Salvador, graduando-se posteriormente em enfermagem pela Escola de Enfermagem e Saúde Pública da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Especializou-se em Saúde Pública e passou a integrar o quadro de enfermeiras sanitaristas da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia em um centro de saúde.

Mãe Stella de Oxóssi

Iniciou sua vida religiosa no Candomblé aos 14 anos, sendo seu orí de Oxóssi. Aos 51 anos, foi escolhida pelo patrono do terreiro e aceita pela comunidade do povo de santo como a quinta Iyalorixá do Terreiro Ilê Axê Opô Afonjá. Sua representatividade como mãe de santo transcendeu a vida religiosa, sua formação intelectual, junto à convivência social com grandes nomes da literatura, música e artes, possibilitou que suas produções sobre povo de santo evidenciasse uma discussão sobre o povo negro e sua cultura, bem como o racismo. Tornou-se reconhecida como escritora, tendo publicado seis livros que refletem décadas de dedicação como candomblecista e suas viagens à África, onde aprofundou seus conhecimentos sobre a língua e a cultura Iorubá.

Em seu terreiro, foi fundada uma escola que faz parte da rede pública em convênio com a prefeitura de Salvador, que atende crianças de dentro e de fora da comunidade religiosa. Outro projeto importante é a Animoteca, um ônibus-biblioteca, que reúne um acervo de vários tipos literários e percorre a cidade de Salvador, possibilitando a leitura a pessoas de todas as idades.

Recebeu títulos de doutora honoris causa pela UFBA em 2005 e pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB) em 2009. Além disso, tornou-se imortal em 2013, ao assumir a cadeira de número 33 na Academia de Letras da Bahia, após ser eleita por unanimidade.

Dona Ivone de Lara, a dama do Samba
Formou-se pela Faculdade de Enfermagem do Rio de Janeiro, costumando percorrer as enfermarias e pavilhões do Instituto Psiquiátrico Pedro II, em busca das histórias, referências e laços familiares dos pacientes. Era uma rotina que, além de lhe dar satisfação, fazia parte do tratamento terapêutico. Prestou concurso público para o Ministério da Saúde em 1942.

Dona Ivone Lara

Teve destaque por sua atuação como enfermeira na área de saúde mental e também como artista, cantora e compositora. Numa época quando pacientes psiquiátricos eram institucionalizados e abandonados, Dona Ivone de Lara especializou-se em terapia ocupacional com a médica Nise da Silveira, desempenhando papel fundamental na reforma psiquiátrica no Brasil. Em sua atuação no Instituto de Psiquiatria do Engenho de Dentro, introduziu o cuidado humanizado que visava a integração do paciente, família e funcionários, através da música e da socialização. Em 2015, entrou para a lista das dez grandes mulheres que marcaram a história do Rio de Janeiro.

A Enfermagem brasileira tem cor

Por mais que a história tente apagar, é impossível ignorar o fato de que a enfermagem é, essencialmente, negra. Mesmo que a face que estampa o que chamamos de enfermagem brasileira, insistentemente, seja retratada como branca, nesta Semana Brasileira de Enfermagem precisamos reverenciar as mulheres negras que, duramente, abriram caminhos para que hoje outras de nós tenhamos a enfermagem como profissão.