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MOVIMENTO

O 8M argentino e os desafios do movimento feminista com o governo Milei

Entrevista com Luci Cavallero, militante feminista argentina. Por Clara Saravia, do portal Esquerda Online.
Lucia Hernández (Drone)

Hoje, no dia 19 de março, completam-se 100 dias do governo Milei na Argentina. Na semana do 8 de março, uma comitiva de mulheres do PSOL viajou até Buenos Aires e pode acompanhar de perto o primeiro 8M diante do novo governo de extrema direita, que há 4 anos não conseguia construir um ato unitário. A manifestação foi gigantesca, reunindo nas ruas cerca de 500 mil mulheres na capital, e o total de 1 milhão em todo o país, de acordo com as organizadoras.

Eu fui parte dessa comitiva e no domingo, dois dias depois do 8M, no dia 10 de março, tive a oportunidade de entrevistar Luci Cavallero1, militante feminista do coletivo Ni Una Menos, formada em sociologia e pesquisadora da Universidade de Buenos Aires. Luci, junto com Verónica Gago, lançaram recentemente o livro “Uma leitura feminista da dívida”, publicado no Brasil pela editora Criação Humana. Nos encontramos no bar La Poesia, em San Telmo.

Depois das apresentações, Luci logo me perguntou o que eu tinha achado do 8M de lá, e eu desatei a falar sobre a experiência inesquecível que tinha sido, não só por poder participar da gigantesca manifestação e sentir a energia do movimento feminista mais forte da América Latina, mas por perceber o quanto está capilarizado pelo país. As inúmeras páginas nos jornais dedicadas à temática do feminismo, os debates entre a população, a imensa diferença geracional no ato, as expressões culturais… Nos pareceu que o feminismo atravessou com força a sociedade argentina. E o que nos restava tentar compreender melhor é como o novo governo iria se relacionar com esse processo.

Portanto, engatei nosso papo comentando algumas das diferenças que observo do movimento feminista no Brasil em comparação com a Argentina, diante da ascensão da extrema direita. Em seguida, falamos sobre a sua avaliação dos primeiros dias de governo Milei, o que motivou a sua eleição, o papel histórico cumprido pelo movimento feminista nos últimos anos, como se deu o processo de legalização do aborto no país, a importância da greve internacional de mulheres, os métodos do movimento, e etc. A entrevista foi traduzida e transcrita ao português pela tradutora e pesquisadora feminista Camila Carduz Rocha. Espero que sirva para as nossas reflexões coletivas, e que fortaleça a articulação feminista latino-americana.

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Clara: Então, me parece haver uma distinção entre o movimento feminista do Brasil com a ascensão do neofascismo bolsonarista, e aqui na Argentina, com a ascensão do Milei.

Como você deve ter acompanhado, nós tivemos no Brasil uma série de derrotas muito grandes: o golpe contra a Dilma em 2016, a prisão do Lula e a operação Lava-Jato, as contrarreformas do governo ilegítimo de Temer, a execução da Marielle, em 2018… E, nesse processo, tivemos o que chamamos de Primavera Feminista. Claro, não tão grande como aqui, mas muito significativa, muito maior do que tudo que a gente já viveu, até o #EleNão, que foi a maior mobilização feminista da história do Brasil, gigante. Depois, o [Jair] Bolsonaro ganhou, veio a pandemia, e aí o movimento foi diminuindo. Mas tem uma diferença que me parece ser importante entre Milei e Bolsonaro, que o bolsonarismo mobilizou muita gente esse período, a população saiu às ruas por um programa reacionário, fascista. Por exemplo, a dois domingos atrás, saíram novamente às ruas, levando inclusive bandeiras de Israel. Me parece que aqui o Milei não chegou a mobilizar a população assim, nas ruas, certo?

Luci: Não.

Clara: Aqui me parece que as feministas vêm de uma onda de mobilizações, de um levante popular gigante, de uma inserção nos barrios2, nos movimentos populares… e gostaria muito de te ouvir sobre isso… Além, claro, de uma vitória categórica, em 2020, com a legalização do aborto. Então, quando Milei chega ao poder, vocês ainda estão nas ruas. Não a direita.

Luci: [Concordando] Não.

Clara: Por exemplo, eu senti no 8M que existia um sentimento de orgulho, uma grande moral das mulheres, que incide sobre a capacidade de mobilização… Diferentemente do Brasil, sinto que estamos mais cansadas, perdemos a Marielle, o que foi uma violência política muito grande. Então, atualmente existe um processo de reconstrução, que quando eu olho para o cenário internacional, para os Estados Unidos, a Polônia, outros, parece-me que a extrema direita ganhou mais a correlação de forças com o feminismo. E aqui não me parece tanto. Parece-me que há uma possibilidade de crescimento da mobilização, ao menos pelas feministas. Gostaria de ouvi-la.

Luci: Sim, é interessante. Era difícil fazer essa avaliação porque não sabíamos como estaria a mobilização. Agora, que temos essa foto, mudou a análise.

O 8M argentino e a oposição feminista à Milei

Clara: Quantas foram às ruas na sexta [8M]? Um milhão?

Luci: Um milhão em todo o país. Aqui [em Buenos Aires] 500 mil com certeza. Até este momento, não tínhamos uma avaliação clara. Efetivamente, o Milei nesse momento se sustenta em um apoio popular que não tem capacidade de mobilização e que está caindo em ritmo acelerado, pelos impactos da política de ajuste. E está apoiado pelos mercados financeiros, que, como nunca, nos últimos anos, se estabilizaram. E apoiado por um setor muito grande, muito importante, da burguesia local. Mas, ele não tem a capacidade de ocupar as ruas, e essa é a principal debilidade e o lugar a partir do qual temos que contribuir para desestabilizá-lo. Precisamos fazer com que o Milei não se estabilize, porque a estabilização do Milei, o que talvez seja diferente com Bolsonaro, é a destruição absoluta do país. Não é uma medida contra, ou duas medidas contra, é uma destruição total.

Clara: Conversando esses dias com a população aqui, quando apontei a inflação e o aumento dos preços, escutei de eleitores do Milei um discurso de que é preciso ter paciência porque as coisas vão melhorar…

Luci: Sim, isso é algo que escrevi agora e, em seguida, te envio a nota.

Clara: Eu li!

Luci: Ah, sim? Como a leu? Como soube dela?

Clara: No seu Instagram.

Luci: Ah, você me segue?

Clara: Sim, claro. Fui buscar análises das feministas argentinas sobre o 8M e encontrei seu texto.

Luci: Uma das vitórias mais importantes do Milei, ou seja, a vitória mais importante do Milei é a subjetividade, digamos. É uma população exausta, cansada, sem ter obtido uma resposta das duas forças majoritárias no sistema político. Uma população acostumada a anos de incerteza e instabilidade econômica, especialmente desde que o Fundo Monetário está na Argentina, em 2018, que é o momento em que o trabalho começa a ser desvalorizado em relação à remuneração. O que o Fundo Monetário está fazendo o tempo todo é tentar reduzir os salários, ainda mais dos trabalhadores informais e, obviamente, das mulheres. Há um plano de ajuste de 2018 até agora, que se baseia em uma depreciação generalizada do trabalho, de modo que as pessoas sentem que trabalham muitas horas e não são remuneradas de acordo.

E o Milei gera uma fantasia de estabilidade com a ideia de dolarização. Acho que ele trabalha com isso, com uma população que está superendividada, cansada e com essa ideia de que temos que fazer mais um esforço para chegar a uma espécie de sacrifício, para chegar a um momento de estabilidade. E é nisso que nós dizemos que temos que trabalhar, nesse ponto em que se dá o nó entre ajuste e disciplinamento. Que as pessoas vejam que há muitas feministas nas ruas dizendo que merecemos outra coisa, que merecemos uma vida melhor, que merecemos saúde, educação, que nós não temos que fazer nenhum sacrifício. Nós temos que trabalhar sobre esse ponto da subjetividade.

E o Milei gera uma fantasia de estabilidade com a ideia de dolarização. Acho que ele trabalha com isso, com uma população que está superendividada, cansada e com essa ideia de que temos que fazer mais um esforço para chegar a uma espécie de sacrifício, para chegar a um momento de estabilidade. E é nisso que nós dizemos que temos que trabalhar, nesse ponto em que se dá o nó entre ajuste e disciplinamento. Que as pessoas vejam que há muitas feministas nas ruas dizendo que merecemos outra coisa, que merecemos uma vida melhor, que merecemos saúde, educação, que nós não temos que fazer nenhum sacrifício. Nós temos que trabalhar sobre esse ponto da subjetividade.

Clara: É muito interessante essa relação que você faz entre meritocracia e sacrifício no seu texto.

Luci: Sim. Então, isso me parece que é um ponto importante e, além disso, com a mobilização de ontem, o feminismo está de volta ao campo, como dizem, porque há algum tempo vem sendo atacado pela ultradireita, mas ao mesmo tempo subordinado pelo progressismo, pelo peronismo. Há um tipo de onda conservadora em que nem mesmo as referências políticas das forças de centro-esquerda se reivindicam como feministas ou reivindicam as políticas com perspectiva de gênero.

Clara: Mas avançou muito nos últimos anos, não?

Luci: Ah, mas agora há um tipo de retrocesso. Com a exceção do governador da província de Buenos Aires3.

Clara: Sim, que é de um peronismo mais à esquerda, né?

Luci: Sim, ele é. Então, agora, com essa grande mobilização, estamos de volta a um lugar importante na discussão política, isso é importante. Essa foi a mobilização mais importante contra o Milei, inclusive foi mais massiva do que a dos sindicatos.

O papel do Feminismo Popular, da greve de mulheres e da campanha pela legalização do aborto

Clara: E me parece que agora, depois de tantos anos de lutas, vocês têm a capacidade de através do feminismo ter uma política, um programa, que seja para a classe como um todo. Porque assim, mais ou menos, desde 2015, e depois em 2020, vocês pautaram a questão do feminicídio, Ni una Menos [Nem uma a menos], e, depois, a questão do aborto foi pro centro da luta. E talvez agora seja um momento que, partindo de um saldo muito positivo de todos esses anos, podem propor algo mais profundo… Porque, me parece, há uma relação que eu gostaria que você abordasse sobre a greve das mulheres4 e todo o processo de construção da luta pelo aborto, que me parece que foi muito maior do que só a conquista da lei. Foi um aprendizado de como se relaciona a vida mais privada e o trabalho de reprodução social, o trabalho doméstico, etc. com as consequências do neoliberalismo, o endividamento, que é um tema que vocês tocam muito… Se for possível falar um pouco sobre o papel do feminismo ao se tratar os problemas gerais da classe.

Luci: Veja bem, eu acho que o feminismo, com a ferramenta da greve, deu um salto em termos qualitativos, não apenas quantitativos, mas qualitativos, em relação ao tipo de agenda que foi montada a partir das paralisações que começaram em 2016, que foi uma agenda muito mais focada em destacar na agenda pública a relação entre as violências econômicas e as violências baseadas em gênero. A partir da greve, o feminismo começou a se transformar em um Feminismo Popular, um feminismo que abraça as trabalhadoras sindicais, as trabalhadoras da economia popular, incorporando o que chamamos de feminismo sindicalista, colocando bem no centro a questão de classe e, difundindo mais, a luta mais geral contra os feminicídios. Aí é também onde começamos a discutir a questão da dívida. E acho que aí há uma mudança qualitativa, nessa utilização da ferramenta da greve. Tudo isso, obviamente, vai nutrindo o feminismo, porque o que aconteceu foi que a campanha pelo direito ao aborto já estava acontecendo há 12 anos5. Na época em que o aborto começou a ser discutido massivamente, já existia o Ni una Menos, então a Marea6 se nutriu do Ni una Menos e de toda essa organização. Portanto, quando a discussão do aborto ocorre, ela acontece nos sindicatos, nas escolas, nas universidades… E isso é feito de uma forma classista, ou seja, de classe. Quem são as primeiras que precisam ir a clínicas particulares para fazer um aborto? A discussão sobre o aborto vem de baixo para cima. Ela começa nos barrios, discutindo com a companheira do barrio, com o padre do barrio.

Veja bem, eu acho que o feminismo, com a ferramenta da greve, deu um salto em termos qualitativos, não apenas quantitativos, mas qualitativos, em relação ao tipo de agenda que foi montada a partir das paralisações que começaram em 2016, que foi uma agenda muito mais focada em destacar na agenda pública a relação entre as violências econômicas e as violências baseadas em gênero.

Clara: Sim, emocionante.

Luci: E aconteceu em todos os lugares e com uma característica muito centrada na classe. E, por isso, o [direito ao] aborto não aparece simplesmente como um direito civil, mas aparece como um mandato da saúde pública, de prover o aborto. Não apenas como um direito individual, mas, como uma obrigação do Estado e da saúde pública de fornecê-lo.

Clara: Como justiça reprodutiva.

Luci: Exatamente. Assim fica promulgada essa lei. E essa é uma diferença importante.

Clara: Sim, isso é incrível.

Luci: E, por outro lado, é uma lei, que de alguma forma também põe em evidência como essa lei foi construída. É uma lei que foi debatida em todos os lugares e que combinou uma estratégia de ocupação massiva das ruas com um lobby parlamentar, que também colocou em discussão a metodologia feminista para conquistar direitos.

Clara: A campanha se organiza através de frentes de intervenção, certo?

Luci: Sim, frentes de intervenção interrelacionadas, que se retroalimentam e não se excluem.

Clara: E como se dão as divergências, os debates, entre as organizações?

Luci: Obviamente, havia um setor mais à esquerda que queria estar nas ruas o tempo todo e outro setor que dizia que as mobilizações tinham que ser preparadas de certa forma para que fossem mobilizações fortes. O que acontece é que a campanha tinha sua própria dinâmica e, ao mesmo tempo, havia também as instâncias de coordenação das datas feministas, como o 8 de março, o 3 de junho…

Clara: 3 de junho?

Luci: Ni una Menos.

Clara: Ah, certo.

O feminismo e as razões para a eleição de Milei

Clara: Uma pergunta sobre algo que tenho muita curiosidade. Como você entende o processo de eleição do Milei nos marcos do ascenso feminista do último período? Vou contextualizar um pouco a pergunta. Quando nós organizamos o #EleNão, que foi às vésperas da eleição do Bolsonaro, foi a única mobilização de rua com caráter explicitamente antifascista, contra a sua eleição. Então, muitas pessoas colocaram a culpa no feminismo, dizendo que havíamos levantado pautas polêmicas e que havíamos dado o pretexto para que os eleitores se radicalizassem e votassem pelo Bolsonaro. E nós, mulheres brasileiras em geral… mesmo uma parcela de mulheres evangélicas, mas principalmente as mulheres nordestinas, mais jovens, mais pobres, foram a base eleitoral mais forte do Lula, que lhe deu a vitória nas últimas eleições. Portanto, nós acreditamos que aconteceu o contrário. Nós conseguimos conquistar uma opinião pública mais crítica entre as mulheres e disputar essa opinião. Então, sobre a Argentina, estou perguntando sobre as pessoas menos politizadas… Não me parece que o feminismo foi tão determinante para a eleição do Milei, senão que foi mais determinante um desejo de mudança, os problemas econômicos, e não tanto uma reação ao feminismo. Mas, gostaria de te ouvir se há um discurso que também tenta culpar as feministas?

Luci: Sim, o Milei ganha por muitos motivos. Posso lhe dizer alguns, mas é sempre um debate aberto. Mas há um que, evidentemente, todos concordam. E é que o Milei ganha em meio a uma crise de representação política, por uma crise econômica, que vem ocorrendo há pelo menos 8 anos. E uma crise econômica que não é uma crise econômica qualquer, como por exemplo, uma crise de desemprego ou uma crise de um período de recessão. Não, é uma crise que implica viver com níveis insuportáveis de inflação, em que você não sabe quanto o dinheiro vai valer de um dia para o outro. E isso te leva a uma situação que é enlouquecedora, porque você não sabe quanto vale o seu trabalho, não pode se projetar, não pode planejar o futuro. Isso desorganiza a vida cotidiana. E, frente a essa situação, o governo anterior não conseguiu dar respostas. Obviamente, isso tem a ver com o fato de que o Fundo Monetário está instalado na Argentina desde 2018. E, além disso, Milei constrói uma narrativa sobre quem são os culpados por esses males, o que ele chama de casta política…

E é que o Milei ganha em meio a uma crise de representação política, por uma crise econômica, que vem ocorrendo há pelo menos 8 anos. E uma crise econômica que não é uma crise econômica qualquer, como por exemplo, uma crise de desemprego ou uma crise de um período de recessão. Não, é uma crise que implica viver com níveis insuportáveis de inflação, em que você não sabe quanto o dinheiro vai valer de um dia para o outro.

Clara: Discurso de um outsider… Em que todos são corruptos.

Luci: Sim, faz muito sentido para as pessoas que acham que, há oito anos, ninguém lhes dá respostas.

Clara: Sim.

Luci: E, principalmente, o que se sente é que a política não fala sobre o que acontece em casa, que a política está em qualquer pessoa, faz qualquer coisa, que tudo seja um conflito interno. O governo anterior teve um conflito público entre o presidente e a vice-presidenta. É como se Lula brigasse com seu vice por cartas enviadas pela mídia. Enquanto as pessoas achavam que isso não tinha nada a ver com sua vida.

Clara: Certo.

Luci: Portanto, acho que foi uma combinação de uma crise de representação, uma crise econômica, que desorganizou a vida cotidiana, que gerou muito ressentimento, muita frustração. Não acho mesmo que o primeiro fator seja uma reação antifeminista. Não mesmo.

Clara: Tive essa mesma impressão ao estar aqui.

Luci: Não há uma reação antifeminista. Inclusive, acho que o Milei desenvolve uma política fascista, mas acho que a maioria de seus eleitores não são fascistas. Devemos fazer uma distinção.

Clara: Eu conversei com um jovem que trabalha como Uber, que votou no Milei, que disse que para ele o aborto era fundamental e estava a favor do feminismo, disse que as mulheres tinham que ter igualdade nos direitos. Mas contou que sua avó caiu, machucou o ombro e que foi ao serviço de saúde e não havia radiologista, era da Província, onde segundo ele, os peronistas sempre são mais votados, mas nunca tiveram uma melhoria de vida real. Então, fiquei com a impressão de que era uma situação pessoal com o desejo da mudança que motivou o voto em Milei. Mas não relatou problemas com as mulheres, com o feminismo, nada. Ele tinha ideias progressistas, era a favor da Palestina, contra Israel. Me pareceu ter uma visão progressista no geral. Claro, estamos em Buenos Aires, não é o interior da Argentina. Então, fiquei com a impressão de que o eleitorado do Milei aqui, na média, é menos conservador que os eleitores de Bolsonaro.

Luci: Não é generalizado.

Clara: Por exemplo, o que chamamos de pânico moral, a guerra cultural, é muito forte no discurso bolsonarista, e é também o que muitas vezes motiva a mobilização deles. Mas, não me parece que a guerra cultural seja tão forte aqui como no Brasil.

Luci: O que você chama de guerra cultural?

Clara: O pânico moral, a ideologia de gênero, o combate a um suposto “marxismo cultural”, que pelo que eu vi aqui em alguns jornais, o Milei coloca na conta de uma “influência gramsciana” na cultura.

Luci: Mas “nos de baixo”?

Clara: Sim, o fundamentalismo, uma grande parte das Igrejas evangélicas, cumprem um papel muito reacionário nesse sentido. Por exemplo, há uma fortíssima campanha anti-LGBT, um alto índice de transfeminicídio, da defesa da família tradicional…

Luci: Isso estão tratando de fomentar de cima para baixo, porque não se dá com “os de baixo” dessa forma.

A internacionalização do feminismo desde o sul global

Clara: Outra coisa que gostaria de escutar de você. O que você acha do internacionalismo feminista que surgiu nesses últimos anos? Porque me parece que a avaliação de vocês sobre a greve internacional de mulheres, esse último levante feminista, e a Verônica [Gago] fala sobre isso no livro dela7, tem uma característica particular e inédita que é que esse levante internacional começa no Sul global, e particularmente na Argentina. Portanto, se puder falar um pouco sobre essa relação, se vocês têm contato, mobilizam, articulam com mulheres de outros países? Como está o debate da internacional feminista?

Primeiro, concordo com a Vero de que uma das características dessa nova onda feminista é que ela é internacionalista, desde o início. Mas, é um novo tipo de internacionalismo, mais de acordo com uma época na qual, talvez, ainda não exista ainda uma organicidade geral, em nível mundial, mas se replicam palavras, canções…

Luci: Bom, essa pergunta é interessante. Primeiro, concordo com a Vero de que uma das características dessa nova onda feminista é que ela é internacionalista, desde o início. Mas, é um novo tipo de internacionalismo, mais de acordo com uma época na qual, talvez, ainda não exista ainda uma organicidade geral, em nível mundial, mas se replicam palavras, canções…

Clara: Os pañuelos [lenços]…

Luci: Sim! E, depois, quando vimos que havia um caráter internacionalista nesse feminismo, nós, do Ni una Menos, fizemos um trabalho desde o início de buscar articulações globais. Fizemos isso com a Itália de uma forma muito orgânica e sistemática, com o Non una di Meno. Com a Espanha, com a coordenadora do 8M-Espanha. Com a coordenadora do 8M-Chile. Também tivemos muitos contatos com os Estados Unidos e com o México. Acho que houve diferentes tentativas de gerar uma coordenação. Mas me parece que deveríamos… porque nada de interessante acabou se formando. Havia um espaço chamado feminismo transfronteiriço.

Clara: Sim, eu conheço, chegamos a articular um pouco com elas desde o Brasil.

Luci: Sim. Depois, foi organizado o espaço da internacional feminista, não sei se você o conhece, em que também havia mais presença de mulheres que tinham estado em lugares de gestão.

Clara: Conheço, mas não cheguei a participar.

Luci: Acho que ainda está faltando… Para mim é um problema… Temos que encontrar um internacionalismo que surja, que seja impulsionado pelo sul e não pelo norte. E, depois, que faça uma combinação mais interessante entre as mulheres que estão em lugares de poder, em experiências de governo, com movimentos. Isso não deveria estar separado… Isso que me pareceu… Ficou muito separado, como se houvesse… Como as transfronteiriças não têm nada a ver com experiências mais institucionais, a internacional feminista ficou muito associada apenas a funcionárias. Talvez seja interessante…

Clara: Quais funcionárias? De quais lugares?

Luci: Bem, está a ex-ministra da Espanha, a ex-ministra da Argentina. Acho que deveríamos juntar essas experiências e impulsionar uma a partir do sul.

Clara: Um encontro ou algo assim seria bom.

Luci: Sim, porque no geral acontecem todos no norte.

Clara: Sim, e porque, desde a crise, há um processo de precarização generalizada e que também, até nos países do norte, a vanguarda é frequentemente composta por imigrantes, pelas mulheres não-brancas, em situação de precarização, portanto, há uma conexão mesmo em termos da colonização, do debate do anti-imperialismo.

Luci: Exatamente.

Clara: E é muito diferente da onda dos anos 1970, por exemplo, de outros momentos históricos. Isso é muito interessante.

Luci: Sim, então, isso que você dizia… Que muitas das reformas mais progressistas surgiram no sul, antes que no norte. E essa ideia de que no sul sempre estamos mais atrasados culturalmente, isso não procedeu. Nós tivemos a lei de identidade de gênero mais avançada do mundo em 2011.

Clara: Que interessante. Também consideram como referência mundial a Lei Maria da Penha, que temos no Brasil… você a conhece?

Luci: Não.

Clara: É uma lei contra a violência de gênero e o feminicídio, que também é uma das mais avançadas do mundo8.

Luci: E de quando é essa lei?

Clara: É de 2006. E há uma oposição da direita bem forte no sentido dessas conquistas feministas, também contra outra lei bem importante, de 2015, que é pela regulamentação do trabalho doméstico. E ela é muito progressiva, porque a herança colonial, de escravização, mais forte do Brasil é sobre as trabalhadoras domésticas, as mulheres negras.

Luci: Isso chamou minha atenção quando fui ao Brasil. Que a trabalhadora doméstica não fala com você. Elas não se sentem autorizadas a falar com você. Faz muito tempo atrás, sim, mas como os garçons e empregadas domésticas não falam com você se você não os/as autorizar. Não há uma proximidade.

Clara: Depende um pouco do ambiente, mas existe um lugar de servidão muito forte, uma herança colonial da escravidão.

Acredito que sobre o debate do racismo, poderíamos ficar aqui conversando o dia todo, há tantas coisas… É curioso porque aqui não há muito desse debate e esse é, hoje, o grande tema do feminismo no Brasil: a relação com o feminismo negro, como se articula, como se une. O transfeminismo e o feminismo negro são os debates mais fortes dentro do movimento feminista hoje, me parece. Mas sobre o racismo no Brasil, tem muita gente que atribui só aos séculos de escravização e ponto, mas não, ele se renovou muitas vezes. Mas, para mim, o exemplo mais forte da relação direta com a escravidão, da herança que temos, é esse, o das trabalhadoras domésticas. Você conhece a Lélia González?

Luci: Sim.

Clara: Ela traz bastante esse debate, e fala sobre o feminismo afro-latino-americano, uma proposta que eu acho muito interessante. Mas sobre a lei que mencionei, que regulamenta o trabalho doméstico, além de simbólica, significou para a classe média e alta brasileira, branca, uma facada, porque têm que pagar direitos, salários, férias… Certamente isso contou para que o Bolsonaro conseguisse ganhar parte dos setores médios da população. Tem uma fala muito simbólica, extremamente racista, de um dos ministros do Bolsonaro, na qual ele reclama até que empregadas domésticas estavam viajando pra Disney9.

Luci: E o Bolsonaro acabou com esse direito?

Clara: Não, mas também é uma disputa se a lei é efetiva ou não. Há relações de escravidão até hoje no Brasil.

Luci: Claro, a lei não vai mudar tudo.

O protagonismo do transfeminismo e das dissidências de gênero

Clara: Ok, eu também gostaria… porque acho que seria muito bom para o Brasil saber um pouco sobre a relação do debate de vocês sobre o transfeminismo e as dissidências de gênero. Como se deu aqui durante esses anos no movimento? Parece-me que há um protagonismo…

Luci: É evidente que Ni una Menos em suas origens foi um movimento mais ancorado na vida de mulheres, pela questão da violência de gênero, pela questão da massividade… Mas, rapidamente, quando começou a se estabelecer o processo de assembleias, ou seja, a metodologia de assembleias para construir as diferentes ações, começou a haver um protagonismo do movimento da dissidência sexual. Mesmo dentro do movimento Ni una Menos foi sendo renovado. O Ni una Menos no início era formado por mulheres heterossexuais e agora quase a metade delas são lésbicas. Então, foi sendo renovado. E há uma relação em que Ni una Menos… É lido como… De alguma maneira fez com que todas essas lutas ficassem mais visíveis e mais audíveis. Eu não acho, quer dizer, o que me parece é que não há ruptura, ou seja, esses setores podem ter críticas ou podem sentir que, às vezes, não são levados em conta como uma prioridade. Mas, nós compartilhamos a mesma organicidade… O 8M…

Clara: O mesmo coletivo…

Luci: Sim, exatamente. Ou seja, temos um relacionamento de… Uma construção de uma organicidade onde todes apostam porque daí ganham legitimidade e visibilidade.

Clara: E o feminismo radical aqui não tem força?

Luci: Não.

Clara: Que bom. No Brasil ainda é um debate. Porque ainda existem, mas me parece que estão mais nas discussões nas redes, presentes em alguns grupos, às vezes fazem alguns movimentos, mas não aparecem em atos. Não me parece que tem muito lastro hoje em dia como já tiveram, ainda bem.

A metodologia argentina na construção do Feminismo Popular

Clara: Agora para finalizar, porque já tomei muito o seu tempo. Gostaria de ouvir um pouco sobre os métodos do movimento, que seria bom para contar para as companheiras. Porque aqui a prática de assembleias é muito massiva. E existem distintas organizações, então, acredito que tem disputas imensas…

Luci: Você esteve em alguma assembleia?

Clara: Não, tenho que ir! Tenho muita vontade de ir ao Encontro Nacional de vocês. Como funciona a construção do 8M a partir das assembleias? Tem grupos de trabalho? Para a construção do manifesto é uma loucura?

[risos]

Luci: Sim. Na realidade, acho que a principal metodologia que temos é a do Feminismo Popular. O que isso quer dizer? É um feminismo cuja organização tem uma característica de ser um feminismo que está dentro e fora das organizações e que o desafio é sempre reunir tudo isso. Não queremos que o feminismo seja separado das organizações do povo, acreditamos que há feministas nos sindicatos, acreditamos que há feministas nas organizações sociais. Portanto, essa é a metodologia do Feminismo Popular, dentro e fora das organizações. A outra é a capilaridade. Capilaridade significa que tentamos construir ações que gerem debates de cima para baixo, nas escolas, nas universidades, nos locais de trabalho. Ações que levem a discussão para todos os setores da sociedade. Para construir as datas mais importantes do ano, realizamos processos de assembleias de dois meses, entre um e dois meses.

Na realidade, acho que a principal metodologia que temos é a do Feminismo Popular. O que isso quer dizer? É um feminismo cuja organização tem uma característica de ser um feminismo que está dentro e fora das organizações e que o desafio é sempre reunir tudo isso. Não queremos que o feminismo seja separado das organizações do povo, acreditamos que há feministas nos sindicatos, acreditamos que há feministas nas organizações sociais. Portanto, essa é a metodologia do Feminismo Popular, dentro e fora das organizações.

Clara: A partir de janeiro?

Luci: Sim, janeiro e fevereiro, depois há outro processo de assembleias antes do 3 de junho, que é o dia do Ni una Menos. E esse é o momento de maior discussão, de construção do manifesto, como você disse. Mas também funciona. Cada assembleia deixa um saldo diferente. O encontro entre os diferentes setores funciona como uma caixa de ressonância para os conflitos e, ao mesmo tempo, nos transforma… por exemplo, este ano houve uma grande participação de setores, grupos de pessoas com deficiência [PcD].

Clara: Que ótimo!

Luci: E isso começou a mudar a característica da assembleia, de passar a entender por que era necessário colocar essa agenda no centro e promover uma manifestação que fosse acessível, promover acessibilidade na manifestação e começar a questionar a ideia de capacitismo. E isso é uma escola, a assembleia, cada vez que acontece, funciona como uma escola política. Bem, este ano houve uma grande participação de mulheres afro também. E depois, durante o ano vamos promovendo…

Clara: Mulheres afro? Pode explicar melhor?

Luci: As mulheres afro… na Argentina, têm uma população afrodescendente que está totalmente invisibilizada.

Clara: Eu mesma quase não vi.

Luci: Mas existe um setor da sociedade que é afro, pequeno.

Clara: Que ótimo que vieram à assembleia.

Luci: Sim, elas vieram para a assembleia.

Luci: Então, funciona como uma escola política e, durante o ano, temos uma metodologia que também trata de tomar os conflitos mais importantes do momento e preenchê-los com força feminista. Por exemplo, há uma grande demissão em uma grande fábrica. Podemos ter a iniciativa de fazer uma assembleia aí.

Clara: A questão das Aerolíneas10.

Luci: Aerolíneas, Télam, sim. Demissões e tentativa de privatização.

Clara: E o manifesto? É um grupo, uma comissão que escreve?

Luci: Uma comissão de redatoras em que todas podem participar até o momento em que se encerra e não podem ser feitas mais contribuições.

Clara: Quem era a mulher que leu o manifesto, no final do ato?

Luci: Uma jornalista histórica.

Clara: E foi a forma mais fácil de chegar a um consenso de quem o leria?

[risos]

Luci: É uma pessoa que tanto a esquerda quanto o peronismo aceitam. É uma pessoa em todo o país, ou seja, não tem outra maneira. Outra pessoa estaria identificada como peronista ou como esquerda. É muito engraçado.

[risos]

Clara: Agora, realmente finalizando. Esse 8M deu forças para continuar com as jornadas de luta do ano. Que será cansativo para vocês.

Luci: Sim, exatamente.

Clara: Você acha que vai haver uma greve geral?

Luci: Sim, em breve. Deve ser em breve. Oh, deus… Não vai sobrar nada.

Clara: Hoje é domingo, descansa e depois pensa nisso.

Luci: Não vai sobrar nada deste país.

Clara: A situação é mesmo muito difícil, por todo lado… mas acho que vocês têm uma boa oportunidade, o movimento feminista está forte. O que pudermos ajudar com a experiência do governo Bolsonaro, com todos esses anos de uma corrente fascista crescendo no Brasil…

Luci: Claro, vamos trocando.

Clara: Vamos sim, vai ser um prazer. Pedimos a conta?

Luci: Sim.

1 Quem quiser conhecer mais seu trabalho e suas opiniões, Luci está no Instagram como @lucicavallero e, no Twitter, como @lucicava86.
2 Comunidades, periferias.
3 Axel Kicillof foi Ministro da Economia da Argentina entre novembro de 2013 e dezembro de 2015, durante o segundo mandato do governo de Cristina Kirchner.
4 Em espanhol, o termo que se popularizou foi “paro internacional de mujeres”. Em tradução literal, “paro” significa paralisação, não greve. Nesta tradução, optamos por usar “greve”, já que tem sido o termo cunhado pelo movimento feminista brasileiro, assim como a tradução em inglês se dá no mesmo sentido, com a palavra “strike” [greve]. Como referência, utilizamos a tradução da obra de Verónica Gago, Potência Feminista ou o desejo de transformar tudo, publicado em 2020 pela Editora Elefante, onde Igor Peres, tradutor do livro, justifica que apesar de em espanhol se utilizar a palavra “paro”, o objetivo tanto para a autora quanto para o movimento feminista, era ampliar e dar novos contornos à ideia da greve, subvertendo seu significado tradicional.
5 Trazer um pouco do histórico dessa campanha.
6 O termo se refere ao que chamamos da “maré verde”, em referência aos lenços de cor de verde que viraram o símbolo da luta pela legalização do aborto. E que, por sua vez, tiveram como inspiração os lenços brancos usados pelo movimento das Mães da Praça de Maio, que lutavam em plena ditadura militar contra o desaparecimento de seus filhos.
7 Ver mais em Potência Feminista ou o desejo de transformar tudo, lançado em 2020 pela Editora Elefante, São Paulo.
8 A Lei 11.340, de 07/08/2006 (Lei Maria da Penha) é considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU), a terceira melhor lei do mundo no combate à violência doméstica, perdendo apenas para Espanha e Chile.
9 Declaração de Paulo Guedes em 2020, então ministro da economia do governo Bolsonaro, em evento em Brasília: “O câmbio não está nervoso, (o câmbio) mudou. Não tem negócio de câmbio a R$ 1,80. Todo mundo indo para a Disneylândia, empregada doméstica indo para Disneylândia, uma festa danada. Pera aí. Vai passear ali em Foz do Iguaçu, vai passear ali no Nordeste, está cheio de praia bonita. Vai para Cachoeiro de Itapemirim, vai conhecer onde o Roberto Carlos nasceu, vai passear no Brasil, vai conhecer o Brasil. Está cheio de coisa bonita para ver”. (Link: Guedes diz que dólar alto é bom: ‘empregada doméstica estava indo para Disney, uma festa danada’)
10 Foi anunciado pelo governo Milei em dezembro do ano passado um extenso plano de privatizações e reformas, que inclui a privatização da companhia aérea Aerolíneas Argentinas e uma série de demissões.
Lucí Cavallero é militante do Asamblea 8M na Argentina e professora.
Clara Saraiva é do portal Esquerda Online, militante feminista, compõe a Executiva Nacional de Mulheres do PSOL e o movimento Resistência Feminista. É doutoranda em serviço social na UFRJ, pesquisadora marxista da teoria da reprodução social.