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MOVIMENTO

Para sair da mesmice: por um futebol melhor e mais seguro para todos

Renato Saldanha, Verônica Toledo Ferreira de Carvalho e Arthur Henrique Antas, de Recife (PE)
Arena Pernambuco – Portal da Copa/ME

Na última quarta, 21/02/24, mais um episódio violento ganhou destaque na cobertura do futebol brasileiro. Após o empate pela Copa do Nordeste entre Sport e Fortaleza, no Recife, o ônibus dos jogadores e comissão técnica do clube cearense foi emboscado por torcedores locais, com pedras e bombas. Atletas e membros da comissão técnica ficaram feridos, e pelo menos seis deles precisaram ser encaminhados a um hospital na capital pernambucana para maiores cuidados. Entre os casos mais graves está o do goleiro João Ricardo, que levou seis pontos na cabeça, e do lateral-esquerdo Escobar, com trauma cranioencefálico. O zagueiro Titi, o lateral-direito Emanuel Brítez, o volante Lucas Sasha e o lateral-esquerdo Dudu também sofreram ferimentos.

Após o ocorrido, seguiu-se o protocolo de sempre em ocasiões como esta. Notas de repúdio, declarações indignadas de jogadores e jornalistas, e promessas de punições por parte de dirigentes, políticos e autoridades da segurança pública. Quem acompanha o futebol e o mundo das torcidas já sabe o que virá na sequência: propostas de jogos com torcida única (embora a torcida visitante não tenha tido nenhuma participação no caso em foco) ou com portões fechados, recrudescimento da atuação policial nos próximos jogos (preparem-se, torcedores pernambucanos!), e mais restrições às torcidas organizadas (proibição de bandeiras, baterias, camisas, operações policiais nas sedes, etc), que atingirão também torcidas de outros clubes do estado, que nada tem a ver com o episódio. Aquilo que seria óbvio, a identificação dos responsáveis pelo ataque e a individualização da culpa, dificilmente acontecerá. Ou seja, nenhuma novidade. Apenas a insistência obstinada nas mesmas medidas que vêm sendo tomadas repetidamente ao longo dos últimos 30 anos, sem nenhum sinal de sucesso. 

Para sair dessa mesmice, buscamos aqui levantar alguns pontos que precisam ser considerados por aqueles que realmente pretendem construir um futebol melhor e mais seguro para todos. 

A surpresa foi ter pego os atletas

Na rodada pré -clássico das multidões, entre Santa Cruz e Sport, 17 de janeiro, houve dois jogos no Recife com a diferença de 2 horas. A Cobra Coral recebeu o Flamengo de Arcoverde no Arruda, enquanto o Leão recebeu o Retrô na Arena Pernambuco.  O risco de confronto tomou conta das torcidas, que pressionaram Evandro de Carvalho, presidente da Federação Pernambucana de Futebol (FPF), a se pronunciar. Na sua fala, Evandro focou em frisar que só haveria torcida visitante no clássico caso não houvesse confusão neste dia 17. “Por enquanto o clássico será com as duas torcidas. Não houve nada até agora. Se houver algum problema vamos rever isso. A quarta-feira será um teste para a gente saber como vão ser os clássicos. Se a gente vai adotar torcida única, como era, ou se vamos ter torcida mista. Tudo vai depender do comportamento das torcidasdisse Evandro. A arapuca estava armada. Todo um sistema que facilitava o confronto entre os rivais para que a política de torcida única passasse a ter um respaldo social e conseguisse avançar. Diante disso, a Associação Nacional de Torcidas Organizadas (ANATORG) protocolou um ofício para passar a participar das reuniões da comissão de segurança, que não foi atendido.

A volta das Torcidas em Pernambuco expõe o fracasso da política atual

Em artigo anterior, publicado aqui no EOL, já indicávamos a ineficácia da política de criminalização e banimento das torcidas organizadas, praticada há mais de uma década em Pernambuco. Durante esse período, não se observou mudanças significativas no quadro de violência relacionada ao futebol. Banidas dos estádios desde 2012, proibidas de levar às arquibancadas suas faixas, bandeiras, camisas, e outros materiais necessários para promover suas tradicionais festas, as principais torcidas do estado, Inferno Coral, Torcida Jovem do Sport e Torcida Jovem Fanáutico retornaram aos estádios pernambucanos no início deste ano, utilizando um expediente já empregado por torcidas de outros estados. Refundaram-se, agora com novos nomes e CNPJ, “zerando a conta” das penas anteriores. Esse “drible” pueril na repressão expõe, mais uma vez, o fracasso deste tipo de punição, direcionadas ao coletivo. Além de simplistas e injustas, são ações inúteis, incapazes de produzir efeitos duradouros positivos. 

Arena de Pernambuco: 10 anos depois

Em maio de 2013, Pernambuco ganhou uma nova praça esportiva. A Arena de Pernambuco faz parte do pacote de estádios “Padrão FIFA”, erguidos do zero ou totalmente reformados para que o Brasil pudesse receber a Copa das Confederações de 2013 e a Copa do Mundo de 2014. Pouco mais de uma década depois, não há como esconder o fracasso desse projeto, que nunca foi totalmente concluído. Inicialmente, estava prevista uma série de outras edificações no entorno, como hotel, shopping center, escola, conjunto residencial, que formariam a Cidade da Copa em Pernambuco. Nada disso saiu do papel, e hoje temos apenas um estádio distante, cercado de mato por todos os lados. A promessa de atrair para lá permanentemente um grande clube da cidade também não se concretizou. Inicialmente, apenas o Náutico aceitou mandar todos os seus jogos ali. Porém, após algumas temporadas decepcionantes, com resultados esportivos e financeiros bem abaixo das expectativas, o alvirrubro optou por voltar para o Estádio dos Aflitos, seu campo tradicional na zona norte do Recife. Hoje, a Arena Pernambuco só é usada pelos grandes clubes locais de forma esporádica, e serve de casa para o pequeno Retrô.

Um dos principais entraves para o uso mais frequente da Arena é o acesso. Localizada no município de São Lourenço da Mata, a cerca de 20 km do centro do Recife, o estádio ainda está distante dos torcedores recifenses. Chegar lá é um martírio. Há uma estação de metrô relativamente próxima, mas além dessa não ser uma opção simples para grande parte dos moradores da capital (já que as linhas não chegam até boa parte da Região Metropolitana), ainda há a dificuldade do horário (o metrô funciona apenas até as 23h, o que inviabiliza seu uso na saída de jogos noturnos) (1). Por ônibus, as opções são escassas e demoradas, ou caras (para a última quarta, uma linha de ônibus especial foi disponibilizada, a partir da Praça do Derby, na região central do Recife, ao custo de R$20,00 por pessoa, ida e volta). Para piorar, a principal via de acesso até o estádio, a BR-232, local onde ocorreu o ataque ao ônibus do Fortaleza, passa por uma interminável obra de triplicação. No dia do jogo, a instalação de quebra-molas e sonorizadores físicos deixou o trânsito na via operando em apenas uma faixa, com engarrafamentos quilométricos na entrada e saída da cidade. O transtorno foi tamanho que os engenheiros da obra voltaram atrás, retirando na quinta-feira as barreiras construídas no dia anterior. 

Um estádio que custou uma fortuna aos cofres públicos (estima-se que o valor total tenha ultrapassado a casa dos 700 milhões de reais), e que segue consumindo outros milhões anualmente em manutenção, se tornou claramente um elefante branco, subutilizado. Passou da hora de discutirmos seriamente se vale a pena mantê-lo de pé nessas condições.

Pensando alternativas reais

O professor holandês Otto Adang, especialista em segurança pública, no artigo “Mantenimiento del orden público: teoria, práctica y educación del policiamiento de los campeonatos europeos de fútbol de 2000 y 2004”, se propõe a analisar dois modelos de policiamento, usados nos campeonatos europeus de futebol de 2000 e 2004. No primeiro tipo, policiais em duplas ou trios, sem equipamento pesado, circulavam entre os torcedores, interagindo e comunicando constantemente os limites. Era um modelo de policiamento “leve”, preventivo e proativo, feito com postura amigável, ainda que firme. O outro modelo de policiamento é o ostensivo, que aposta em policiais a cavalo ou equipados com todo aparato anti-distúrbio, em grupos maiores, que pouco interagem com os torcedores. Os dados mostram que nas ocasiões em que o primeiro modelo foi adotado o número de incidências foi menor e de menor gravidade. A conclusão é que quanto mais hostil é o ambiente (e o policiamento tem um papel importante na construção desse ambiente), mais violento tende a ser o comportamento dos torcedores. 

O caminho para um futebol melhor e mais seguro passa, portanto, pela promoção de um ambiente mais amigável e festivo, em que os torcedores tenham facilitado o acesso, permanência e saída do estádio e de seu entorno. Isso também envolve campanhas educativas contínuas, e um planejamento melhor do policiamento, transporte público, bem como do horário e local dos jogos. Por fim, e talvez o mais importante, passa pelo reconhecimento do torcedor (organizado ou não) como sujeito de direito, que merece respeito e tratamento digno. Países como a Alemanha e a Colômbia têm apostado no diálogo constante com organizações torcedoras, e têm tido resultados interessantes no combate à violência. No Brasil, a Anatorg, Associação Nacional das Torcidas Organizadas do Brasil, há 10 anos busca construir pontes de diálogos entre as torcidas organizadas e o poder público. Porém, infelizmente, esse diálogo ainda esbarra em políticas autoritárias e demagógicas, que insistem na simples criminalização e estigmatização desses grupos. Não haverá futebol melhor e mais seguro para todos sem diálogo e respeito aos direitos dos torcedores.

Notas
1 Para o jogo da última quarta-feira, após intensa negociação, o horário de funcionamento da linha que liga a Arena ao centro do Recife foi estendido até a meia-noite. O anúncio dessa medida, porém, aconteceu menos de 24 horas antes do início do jogo.