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A revolução negra

Arquivo Harper’s Weekly

Revolta dos Malês

Valerio Arcary

Professor titular aposentado do IFSP. Doutor em História pela USP. Militante trotskista desde a Revolução dos Cravos. Autor de diversos livros, entre eles Ninguém disse que seria fácil (2022), pela editora Boitempo.

É pelo rastro que se conhece o tamanho da onça.
Sabedoria popular brasileira

Classes sociais não devem ser percebidas como uma categoria sociológica abstrata. Nada pode fazer sentido quando se despreza a geografia e a história, portanto, o espaço e o tempo. Utilizar o conceito de classe trabalhadora, curto e grosso, é uma ideia útil, mas somente em grau elevadíssimo de abstração. Em cada nação a classe trabalhadora tem uma história particular. No Brasil a condição de classe é indivisível da condição de raça.

O principal traço peculiar da evolução do capitalismo na América Portuguesa, depois no Brasil, é que ele se implantou de forma atroz, desumana e bárbara, recorrendo à escravidão como relação de trabalho dominante, em escala sem paralelo no mundo nos últimos mil e quinhentos anos.

O Brasil permanece muito diferente dos seus vizinhos sul-americanos de colonização espanhola, por muitas determinações, todavia, esta é a principal. Houve escravidão em muitas outras colônias das Américas. No entanto, nenhuma nação contemporânea conheceu em sua história escravidão negra em tão larga proporção, e por tanto tempo, como o Brasil1.

Sem valorizar o impacto histórico-social da escravidão é impossível decifrar a especificidade da formação da burguesia no Brasil. A escravidão indígena e negra foi dominante em muitas outras ex-colônias europeia, como Cuba, por exemplo. Mas os capitalistas do século XXI no Brasil são os herdeiros de um processo de dominação que, pela escala, não tem paralelo e não permite comparação com nenhuma outra classe dominante no mundo.

Não é possível entender a formação da classe trabalhadora brasileira. O capitalismo no Brasil, entendido como capitalismo comercial, não foi tardio. Tardia foi a urbanização e, sobretudo, a industrialização. A colonização recorreu à brutalidade do trabalho forçado, mas o seu sentido histórico foi capitalista.

As raízes ideológicas do racismo que envenena a maioria das classes médias, que são o núcleo duro da base social que sustenta a dominação de classe, repousam, inteiramente, na herança deixada pela escravidão. O mito da democracia racial brasileira é uma narrativa perigosa, provocativa e insolente, porque ainda é muito poderosa. A importância central do tema da escravidão, uma relação social pré-capitalista, para a compreensão das tarefas da revolução brasileira não se reduz a um debate historiográfico, porque tem consequências políticas programáticas.

Três correntes debateram no interior do marxismo, pelo menos desde meados do século XX, o sentido da colonização ibérica. O estalinismo defendeu a tese de que ela teria sido feudal. Gunder Franck respondeu defendendo que teria sido diretamente capitalista. Em 1948, Nahuel Moreno defendeu em Cuatro Tesis sobre la colonización española y portuguesa en América, uma terceira posição.

O processo teria sido mais complexo, porque resultado de um amálgama entre interesses capitalistas, relações sociais escravistas e formas feudais, portanto, uma formação social histórica original, um híbrido. Em uma interpretação desta discussão historiográfica, anos depois afirmou:

O marxismo latino-americano foi educado sob a influência de um pseudomarxismo extraído das fontes de historiadores liberais. Estes proclamavam uma suposta colonização feudal por Espanha e Portugal que tinha estado na origem do nosso atraso em relação aos Estados Unidos da América. Este falso esquema de colonização foi suplantado em alguns círculos marxistas por outro tão perigoso quanto o anterior: a colonização latino-americana foi diretamente capitalista. Gunder Frank é um dos mais importantes representantes desta nova corrente de interpretação marxista. Como cita George Novack, ele afirma categoricamente que “o capitalismo começa a penetrar, a formar-se, a caracterizar completamente a América Latina (…) já no século XVI”. Produção e descobertas para objetivos capitalistas; relações escravas ou semi-escravas; As formas e terminologias feudais (como o capitalismo mediterrânico) são os três pilares em que se baseou a colonização da América2.

A colonização do Brasil foi motivada por interesses capitalistas. Muito antes da independência, já existia uma classe dominante luso-brasileira com características burguesas, dissimulações feudais, embora as relações sociais fossem, anacronicamente, pré-capitalistas.

A acumulação capitalista precedeu, portanto, a abolição da escravidão. Existiam assalariados desde os tempos da América portuguesa, mas esta relação de trabalho era marginal. Por aqui a burguesia começou a se formar no século XVI. Mas o proletariado surge como classe, ainda assim, embrionariamente, somente nas últimas do século XIX, alguns séculos mais tarde. Como alertou, pioneiramente, nos anos quarenta, Caio Prado Júnior:

A situação do Brasil se apresenta de forma distinta, pois na base e origem da nossa estrutura e organização agrária, não encontramos, tal como na Europa, uma economia camponesa, e sim a mesma grande exploração rural que se perpetuou desde o início da colonização brasileira até nossos dias; e se adaptou ao sistema capitalista de produção através de um processo ainda em pleno desenvolvimento e não inteiramente completado (sobretudo naquilo que mais interessa ao trabalhador), de substituição do trabalho escravo pelo trabalho juridicamente livre3.

Se avaliarmos a escala nacional, só podemos considerar uma presença da classe operária em alguns poucos centros urbanos depois dos anos trinta do século XX e, de forma mais expressiva, somente depois dos anos cinquenta, quando ainda quase metade da população vivia no mundo rural.

Esta assimetria do processo histórico-social de formação das duas classes mais importantes da atual sociedade brasileira potencializou no marxismo duas posições opostas, que podemos classificar, simplificando, como os estruturalistas e os circulacionistas.

A primeira e mais influente foi a daqueles que não admitiam a possibilidade da existência de uma colonização capitalista desde a invasão portuguesa. Insistiram durante décadas na defesa esdrúxula de que teria existido feudalismo no Brasil. Alberto Passos Guimarães e sua obra Quatro séculos de latifúndio conseguiu grande repercussão4. Defenderam que uma sociedade deve ser caracterizada, historicamente, em primeiro lugar, pelas relações de produção dominantes. Afirmaram que o que caracteriza o capitalismo é o trabalho assalariado. Se o trabalho assalariado não é dominante, a sociedade não é capitalista.

A outra posição, embora oposta pelo vértice, era igualmente unilateral. Os circulacionistas afirmavam que a colonização tinha sido, sumariamente, capitalista, desprezando o fato incontornável de que o escravismo criou raízes profundas em 350 anos de existência. A Organização Revolucionária Marxista-Política Operária, POLOP, por exemplo, assumiu esta interpretação para concluir a necessidade de um programa diretamente socialista ou anticapitalista, diminuindo a importância das tarefas democráticas da revolução brasileira5.

Jacob Gorender tentou solucionar o debate com uma elaboração imaginativa e inspirada, ainda que sob forte influência estruturalista, sugerindo que o Brasil conheceu um modo de produção próprio, o escravista colonial6.

O Brasil é ainda um país muito atrasado. É atrasado econômica, social, política e culturalmente. É dramaticamente atrasado em termos educacionais, quando comparado com nações em estágio semelhante de desenvolvimento econômico. Atrasado, portanto, em toda a linha. Ao mesmo tempo, paradoxalmente, é o maior parque industrial do hemisfério sul do planeta, e uma das dez maiores economias, com mais de vinte cidades ou regiões metropolitanas de um milhão ou mais de habitantes, e 85% da população, economicamente, ativa em centros urbanos.

O Brasil tem a mais poderosa burguesia do mundo na semiperiferia. Tem também o mais poderoso proletariado. Mas a peculiaridade brasileira só se compreende, se equacionarmos que mais da metade desta classe trabalhadora é negra, entre mestiços e pretos, indistinta e, implacavelmente, oprimidos. O peso histórico-social desta condição de raça e classe é distinto da África do Sul, por um lado, e muito diferente dos EUA, mas esmagador.

Ser negro pobre nunca foi igual, durante séculos, a ser branco pobre. Ainda estamos muito longe de que seja. No Brasil, os negros entre a burguesia são invisíveis. Nas camadas médias, tanto entre os pequenos proprietários, quanto entre os que conquistaram escolaridade elevada, são uma ínfima minoria. Uma parcela da esquerda permanece míope diante desta tragédia histórica, e desqualifica a luta do movimento negro como sendo uma alavanca para acelerar o acesso à classe média. Esta posição é absurda e obtusa. Não é a luta contra o racismo que divide classe trabalhadora, é o racismo que é manipulado pela classe dominante que divide o povo. A defesa do movimento negro pela esquerda é uma condição para que seja possível construir a unidade da luta popular.

Só utilizando os recursos marxistas da lei do desenvolvimento desigual e combinado é possível equacionar a principal das peculiaridades brasileiras: o capitalismo usou em escala insólita a mão de obra escrava. O que nos remete ao debate estratégico sobre o programa. Nas palavras de Moreno:

Esta discussão teórica não é uma controvérsia acadêmica alheia à política. As teses da revolução permanente não são as teses da mera revolução socialista, mas da combinação das duas revoluções, a democrática burguesa e a socialista. A necessidade desta combinação surge inexoravelmente das estruturas socioeconómicas dos nossos países atrasados, que combinam diferentes segmentos, formas, produção e relações de classe. Se a colonização foi desde o início capitalista, não há outra opção senão a revolução socialista na América Latina e não uma combinação e subordinação da revolução democrática burguesa à revolução socialista7.

Não é possível lutar, seriamente, pela mudança da sociedade em que vivemos, sem compreender como ela é. Em perspectiva marxista, esta análise deve identificar quais são os sujeitos sociais interessados na transformação.

A força da classe trabalhadora brasileira repousou e se explica, em grande medida, pelo seu gigantismo, pela concentração e pela sua juventude. Historicamente, em comparação com a argentina, por exemplo, a classe trabalhadora brasileira é meio século mais jovem. Essa juventude, paradoxalmente, foi até hoje, também, a sua fraqueza. Porque a atual classe trabalhadora brasileira se formou, majoritariamente, pelo deslocamento para as cidades, em processo muito intenso e acelerado de ondas sucessivas de migrações internas, da população descendente, em sua maioria, dos afro-brasileiros cujos ancestrais foram escravos.

A revolução brasileira tem pela frente o desafio de ser uma revolução social anticapitalista, ou seja, a expropriação dos monopólios, porque a classe trabalhadora deverá ser o seu principal sujeito social. Mas só poderá triunfar se tomar como sua as bandeiras democráticas das tarefas inacabadas deixadas para trás pela impotência burguesa.

Essa revolução democrática tem muitas e variadas tarefas. Tem tarefas civilizatórias, como a erradicação da corrupção, a demarcação das terras indígenas, o fim das desigualdades regionais. Tem tarefas de libertação nacional na luta contra a ordem imperialista. Tem tarefas agrárias contra o latifúndio. Só poderá triunfar, contudo, se for também uma revolução negra.

Sem a maioria deles, que são a maioria demográfica, social, política e cultural do povo, uma vitória contra o capitalismo nunca será possível. Quem ainda não compreendeu isso não entendeu nada.

Notas
1 O primeiro censo nacional foi realizado entre 1870/72. O questionário era de difícil transcrição e apuração. Embora tenha sido feito em condições, especialmente, precárias, sua importância como fonte não merece ser diminuída. Sobre uma população próxima a dez milhões ou, mais exatamente 9.930.478, a população escrava era ainda um pouco maior que um milhão e meio, ou, mais precisamente de 1.510.806, sendo 805.170 homens e 705.636 mulheres. Estudos demográficos históricos são somente aproximações de grandeza, mas estima-se que nunca deve ter sido menor que um terço do total até 1850, e pode ter sido próxima à metade, ou pelo menos 40% no século XVIII, no auge da exploração do ouro das Minas Gerais. PUBLICAÇÃO CRÍTICA DO RECENSEAMENTO GERAL DO IMPÉRIO DO BRASIL DE 1872 do Núcleo de Pesquisa em História Econômica e Demográfica – NPHED da UFMG. Consulta em dezembro 2014. Disponível em: www.nphed.cedeplar.ufmg.br/…/Relatorio_preliminar_1872_site_nphed.
2 Ainda mais claro:”Eles não inauguraram um sistema de produção capitalista porque não havia exército de trabalhadores livres no mercado da América. É assim que os colonizadores, para explorarem capitalistamente a América, são forçados a recorrer a relações de produção não-capitalistas: a escravatura ou a semi-escravidão dos povos indígenas”. MORENO, Nahuel. Cuatro Tesis sobre la colonización española y portuguesa em América. https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm Consulta em dezembro de 2014.
3 Ou ainda mais claro em O sentido da colonização: “Coloquemo-nos naquela Europa anterior ao séc. XVI, isolada dos trópicos, só indireta e longinquamente acessíveis, e imaginemo-la, como de fato estava, privada quase inteiramente de produtos que se hoje, pela sua banalidade, parecem secundários, eram então prezados como requintes de luxo. Tome-se ocaso do açúcar; que embora se culti­vasse em pequena escala na Sicília, era artigo de grande raridade e muita procura; até nos enxovais de rainhas ele chegou a figurar como dote precioso e altamente prezado (…) Isto nos dá a medida do que representariam os trópicos como atrativo para a fria Europa, situada tão longe deles (…) É isto que estimulará a ocupação dos trópicos americanos. Mas trazendo este agudo interesse, o colono europeu não traria com ele a dispo­sição de pôr-lhe a serviço, neste meio tão difícil e estranho, a energia do seu trabalho físico. Viria como dirigente da produção de gêneros de grande valor comercial, como empresário de um negócio rendoso; mas só a contragosto como trabalhador. Outros trabalhariam para ele.” PRADO JÚNIOR, Caio. In Formação do Brasil Contemporâneo, Brasiliense/Publifolha, 2000, p.29.
4Sobre a interpretação da hipótese de feudalismo, Alberto Passos Guimarães é representativo: “A simples eliminação em nossa História da essência feudal do sistema latifundiário brasileiro e a consequente suposição de que iniciamos nossa vida econômica sob o signo da formação social capitalista significa, nada mais nada menos, considerar uma excrescência, tachar de supérflua qualquer mudança ou reforma profunda de nossa estrutura agrária.” GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro séculos de latifúndio. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1968, p.33.
5 REIS FILHO, D.A. & SÁ, J. F. de. [Org.] Imagens da revolução: documentos políticos das organizações clandestinas de esquerda dos anos 1961-1971. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1985.
6 Mário Maestri resgatou, merecidamente, este trabalho do esquecimento:“Em O escravismo colonial, Gorender superava a tradicional apresentação cronológica de cunho historicista do passado do Brasil para definir em forma categorial-sistemática sua estrutura escravista colonial. Ou seja, empreendia estudo “estrutural” daquela realidade, para penetrar “as aparências fenomenais e revelar” sua “estrutura essencial”. Isto é, seus elementos e conexões internos e o movimento de suas contradições.” MAESTRI, Mário O Escravismo Colonial: A revolução Copernicana de JacobGorender. http://www.espacoacademico.com.br/035/35maestri.htm#_ftn23 Consulta em dezembro 2014
7 IDEM. https://www.marxists.org/espanol/moreno/obras/01_nm.htm Consulta em dezembro de 2014.