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TEORIA

Svierdlóv e Stálin como tipos organizadores

Por Leon Trótski

O presente texto, inédito em português, faz parte de um ensaio maior, intitulado “O Testamento de Lênin”. Esse ensaio, por sua vez, deveria ser parte de um livro que Trótski estava preparando quando de seu assassinato e que se chamaria Nós e eles. Nesse livro, seriam reunidos textos biográficos e ensaios memoriais caracterizando camaradas, amigos, adversários e inimigos da causa da revolução socialista. Esse projeto, no entanto, jamais foi finalizado. A presente versão está contida no livro Portreti revoliutsionerov (Retratos de revolucionários), publicado pela editora Moskovski Rabotchi, Moscou, 1991.


Para determinar o verdadeiro lugar que o Testamento ocupa no desenvolvimento do partido, é preciso voltar um pouco atrás.

Até a primavera de 1919, Svierdlóv1 foi o principal organizador do partido. Ele não tinha o cargo de secretário geral, que, naquela época, sequer havia sido inventado. Mas ele o era de fato. Svierdlóv morreu aos 34 anos, em março de 1919, da assim chamada “gripe espanhola”. No auge da Guerra Civil e da epidemia que matava a torto e a direito, o partido sequer tinha tempo de entender a fundo toda a gravidade da perda sofrida. Em dois discursos fúnebres, Lênin avaliou Svierdlóv de uma maneira que esclarece também, embora indiretamente, sua relação posterior com Stálin. “Ao longo de nossa revolução, de suas vitórias – disse Lênin –, coube a Svierdlóv expressar de maneira mais profunda e completa, mais do que qualquer outro, a própria essência da revolução proletária”. Svierdlóv era “antes de tudo e mais do que tudo, um organizador”. A partir do modesto profissional clandestino – nem teórico, nem escritor –, se ergueu, em pouco tempo, “um organizador que conquistou uma autoridade absolutamente inabalável; um organizador de todo o poder soviético na Rússia; um organizador singular, por todo seu conhecimento, do trabalho do partido”. Lênin era alheio aos elogios exagerados, tanto fúnebres, quanto comemorativos. A avaliação sobre Svierdlóv era, naquele tempo, a característica das tarefas de todo organizador: “Somente graças a que tivemos um organizador como Svierdlóv, é que pudemos, sob as condições da Guerra Civil, trabalhar de tal maneira que não tivemos um único conflito que fosse digno de atenção”.

E assim foi de fato. Nas conversas que tínhamos naquele tempo com Lênin, várias vezes observamos, sempre com uma satisfação renovada, uma das condições fundamentais de nosso sucesso: a unidade e a coesão do grupo dirigente. Apesar da terrível pressão dos acontecimentos e das dificuldades, do ineditismo de todas as questões e das agudas divergências práticas surgidas em alguns momentos, o trabalho fluía tranquilamente, de maneira amistosa e sem interrupções. Com alguns comentários soltos, lembrávamos os episódios das antigas revoluções: “Não, a nossa é melhor!”. “Somente isso já nos assegurará a vitória!”. A coesão do centro dirigente foi preparada por toda a história do bolchevismo e era sustentada pela indiscutível autoridade da direção, sobretudo pela autoridade de Lênin. Mas na mecânica interna dessa incomparável unanimidade havia um operador responsável: Svierdlóv. Seu segredo era simples: guiar-se pelos interesses da causa, e somente por eles. Nenhum militante do partido temia qualquer tipo de intriga vinda da direção. A base da autoridade de Svierdlóv era sua lealdade.

De uma rápida análise mental sobre a camada dirigente do partido, Lênin tirou uma conclusão prática que apresentou em seu discurso fúnebre sobre Svierdlóv: “Jamais poderemos substituí-lo, se por ‘substituir’ se entender a possibilidade de encontrar um camarada que possua tais características. O trabalho que ele fazia sozinho só poderá agora ser feito por um grupo de pessoas, que, seguindo seus passos, continuará a sua obra”. Essas palavras não eram retórica, mas sim uma proposta prática precisa. E assim foi feito: ao invés do secretário individual, foi estabelecido um colegiado de três pessoas.

Das palavras de Lênin, fica claro, até mesmo para quem não conhece a história de nosso partido, que, nos tempos de Svierdlóv, Stálin não cumpria nenhum papel dirigente no aparato do partido, nem na época da Revolução de Outubro, nem no período em que erguíamos os alicerces e as paredes do Estado soviético. No primeiro secretariado que substituiu Svierdlóv, Stálin nem mesmo foi incluído.

Das palavras de Lênin, fica claro, até mesmo para quem não conhece a história de nosso partido, que, nos tempos de Svierdlóv, Stálin não cumpria nenhum papel dirigente no aparato do partido, nem na época da Revolução de Outubro, nem no período em que erguíamos os alicerces e as paredes do Estado soviético. No primeiro secretariado que substituiu Svierdlóv, Stálin nem mesmo foi incluído.

No X Congresso, dois anos depois da morte de Svierdlóv, quando Zinoviev e outros (não sem segundas intenções em relação à luta contra mim) propuseram o nome de Stálin para o posto de secretário geral, ou seja, para ocupar de direito a posição que Svierdlóv ocupava de fato, Lênin foi contra a proposta e expressava nos círculos mais íntimos a preocupação de que “esse cozinheiro só nos preparará pratos picantes”. Essa única frase, comparada com as características de Svierdlóv, nos mostra a diferença dos dois tipos organizadores: um que incansavelmente resolvia os conflitos, facilitando o trabalho dos camaradas; e outro especialista em pratos picantes, que não se detinha em temperá-los com veneno puro. Se em março de 1921 Lênin não levou sua objeção até o fim, ou seja, não apelou abertamente ao congresso contra a candidatura de Stálin, foi unicamente porque o posto de secretário, embora “geral”, tinha então, nas condições de concentração de poderes e influência nas mãos do birô político, uma importância absolutamente secundária. Pode ser, de fato, que Lênin, assim como outros, não tenha percebido a tempo o perigo.

1 Iákov Mikhailovitch Svierdlóv (1885–1919) foi um revolucionário bolchevique muito ativo nas tarefas de organização e de trabalho clandestino do partido, já que era habilidoso na falsificação de documentos oficiais. Era famoso por sua enorme capacidade de memorização, tanto de nomes quanto de outros detalhes da vida dos militantes, e por sua grande capacidade de avaliação e de localização política dos mesmos. Participou da Revolução de 1905, na região dos Urais, e se tornou presidente do secretariado do partido em 1917, quando de seu retorno do exílio. Considerado por muitos como candidato natural ao cargo de secretário geral do partido, morreu aos 33 anos devido a complicações da gripe espanhola.
Tradução de Henrique Canary, do Esquerda Online