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MUNDO

Gaza: sobre sionismo, judaísmo, racismo e barbárie

Por Ariel Feldman. Tradução de Gabriel Dayoub, do Esquerda Online
Ariel Feldman

Nasci em Israel há 44 anos. Sou judeu e vivo há mais de três décadas na Argentina. Desde então, visitei várias vezes o país onde nasci. Conheci cidades e povoados árabes, conversei com os chamados árabes israelenses (palestinos que ficaram dentro das fronteiras de Israel quando da sua autoproclamação como Estado, em 1948), cruzei os checkpoints e fui aos territórios ocupados. Em especial, caminhei por Hebrón mais de uma vez – uma das cidades palestinas com forte presença de militares e colonos israelenses – e conversei com famílias e jovens palestinos de lá. Não tive a sorte de conhecer Gaza. Para alguém com nacionalidade israelense, é praticamente impossível fazê-lo há 16 anos.

Esse dado biográfico não tem a pretensão de fazer com que minhas palavras valham mais graças a uma autoridade que não considero ter. Mas, sim, de evitar falácias ad hominem que costumam ser mobilizadas contra aqueles que criticam o Estado de Israel. Seja nesse contexto particular de terrível ataque a civis cometido pelo Hamas seguido da represália desumana contra a população de Gaza, seja em qualquer outro momento histórico, presume-se que uma posição antissionista esteja baseada numa falta de sensibilidade e empatia diante do sofrimento do “povo judeu”, atribuindo ao crítico um suposto antissemitismo, uma posição “ideologizada”, ou um desconhecimento do território e sua complexidade. Um conjunto de afirmações que evitam responder aos argumentos e pretendem bloquear a discussão, anulando o interlocutor.

Para fazer uma leitura sobre o conflito entre Palestina e Israel e a conjuntura atual é necessário, em primeiro lugar, desarmar duas falácias centrais que ilustrarei a partir de uma argumentação que circula entre aqueles que exigem a defesa do Estado sionista. Esse setor propõe um falso silogismo: ser humanista, progressista ou de esquerda implica em ser contra o racismo; o antissemitismo é, sem dúvida, uma forma de racismo; logo, culpar os israelenses por seu próprio assassinato é antissemita. Este argumento e outros similares que apelam à sensibilidade e empatia com as vítimas do ataque do Hamas têm sido utilizados para exigir solidariedade a Israel e sensibilidade para com sua posição no conflito. É necessário desmascarar esse contorcionismo argumentativo.

Sionismo e judaísmo são duas coisas sensivelmente distintas. Portanto, antissemitismo e antissionismo, também. O sionismo é uma ideologia política nacionalista com menos de duzentos anos de existência. Já o judaísmo é uma religião, para alguns uma cultura, uma nação, para outros, uma comunidade, que se originou há séculos, antes da era cristã. O vínculo entre os dois é, no entanto, inegável. O sionismo é uma corrente político-ideológica surgida e pensada como solução e salvaguarda para o perseguido povo judeu, que conseguiu estabelecer um Estado autoproclamado na Palestina, em 1948. Apesar disso, não deixa de ser uma corrente, uma parcialidade, como é o fundamentalismo islâmico teocrático em relação ao islã, ou uma seita cristã em relação ao cristianismo. É verdade que o sionismo é hegemônico entre os judeus. Explicar o porquê ultrapassa os limites deste texto. No entanto, o fato de ser hegemônico é central: hegemonia implica que aquele que a exerce (a ideologia sionista) é uma entidade distinta do que domina ideológica ou politicamente (o judaísmo). Também significa que toda a dominação é circunstancial, histórica, não essencial. A falsa a identificação e confusão entre um e outro é um estratagema ideológico do sionismo para que o capital simbólico e as atrocidades cometidas durantes milênios contra o povo judeu sejam transferidas ao Estado de Israel como prerrogativas. Desse modo, cada vez que se critica as políticas sionistas de Israel, os sionistas podem dizer que estão diante de uma posição antissemita. Assim, no Ocidente, culpável e culpado pelas atrocidades que sofreram os judeus nessa região, fabrica-se um tipo de intangibilidade à crítica, já que Israel supostamente encarnaria o espírito e salvaguarda de todos os judeus, dos perseguidos e exterminados nos campos de concentração nazista, assim como a representação de todos os seus sobreviventes e descentes pelo mundo.

Na Alemanha, todos se horrorizaram quando, recentemente, casas habitadas por judeus foram marcadas com estrelas de David. É uma constante a aparição de atos antissemitas em várias partes do mundo logo após os ataques de Israel a civis palestinos. O antissemitismo, sem dúvida, não desapareceu com a queda do nazismo e, obviamente, é muito anterior à fundação do Estado de Israel. É claro que as atrocidades cometidas pelo exército e colonos israelenses são aproveitadas por pessoas ou grupos que não têm nenhuma preocupação com o povo palestino. No entanto, a mencionada confusão intencional entre judaísmo e sionismo operada por Israel e seus defensores é um componente essencial para entender o antissemitismo contemporâneo.

Não é necessário ser muito inteligente para perceber que a operação de atribuir ao “judaísmo” o colonialismo, a opressão e os crimes de guerra cometidos por um Estado contra um povo praticamente indefeso, implica no desenvolvimento de um antissemitismo sui generis. O escandaloso é comprovar a todo o tempo que as organizações da comunidade judaica na diáspora – e muitos de seus intelectuais – financiadas pelo sionismo e alinhadas a Israel não se preocupam em absoluto o crescimento potencial do antissemitismo, mas sim com o apoio aos atos e políticas indefensáveis do Estado de Israel. É escandaloso que só nos preocupemos com as casas judias marcadas e não com leis que proíbem hastear a bandeira palestina – não a do Hamas, mas a bandeira nacional palestina – e reprimem manifestações pacíficas que denunciam o castigo coletivo ao povo de Gaza.

Para combater o aumento do preconceito e ódio ao povo judeu – que existe – o caminho não é apoiar atos criminosos, acusando quem os critica de antissemita. Ao contrário, devemos dizer sempre que Israel age enquanto representante do sionismo, não do judaísmo. E insistir em valores humanistas, na experiência do sofrimento, na resistência à crueldade, no amor à palavra e à reflexão, que distinguem taxativamente o judaísmo do sionismo.

Voltando ao suposto silogismo que mencionei no início deste texto, é necessário recordar que, além da confusão entre sionismo e judaísmo, ele opera também para embaralhar a noção de vítima. Podemos repô-lo e ampliá-lo da seguinte maneira: se condenamos o assassinato de civis israelenses (e é claro que o fazemos) e acreditamos que uma pessoa que está numa festa próxima à Faixa de Gaza é uma vítima inocente, logo o Estado de Israel é vítima no conflito. Por tanto, apontar sua responsabilidade primária pelo ataque do Hamas seria análogo a responsabilizar uma vítima pelo que faz seu algoz.

Apesar do poder argumentativo derivado da dor pelas vítimas civis israelenses, o raciocínio contém um evidente truque de mágica. Serve para neutralizar o debate, mas não ajuda a realmente destrinchar o que está acontecendo. O argumento toma a parte pelo todo, os cidadãos pelo Estado. Os mortos e sequestrados civis são, sem dúvida, vítimas inocentes. Mas isso não inocenta o Estado de Israel. Esse movimento que toma a parte pelo todo produz o isolamento de um fato atroz e condenável de seus condicionamentos históricos, materiais e políticos. É necessário condenar o ataque do Hamas e, ao mesmo tempo, explicar como as políticas israelenses são condições necessárias para que os atos de resistência do povo palestinos tornem-se desesperados e cruéis.

Os atentados da resistência palestina contra civis começaram no início dos anos 1970, mais de vinte anos depois da fundação de Israel. As organizações sionistas e, mais tarde, o Estado de Israel, iniciaram a expulsão e limpeza étnica da Palestina, décadas antes da expansão colonial da Guerra dos Seis Dias, em 1967. Mas os atentados a civis pela resistência palestina só começaram a partir da ocupação da Cisjordânia e de Gaza, que consolidou o colonialismo israelense e lhe conferiu uma característica particularmente cruel nesses territórios: uma minoria ocupante que se atribui o direito de governar, julgar, administrar e punir uma população nativa e majoritária. De despojá-la de suas terras progressivamente, humilhá-la e destruir qualquer possibilidade de construção de infraestrutura, de desenvolvimento econômico, de futuro.

Israel domina a Cisjordânia por meio de um sistema colonial de apartheid condenado pela ONU. Administra militarmente o território, produz sua fragmentação, impede a livre mobilidade e promove o contínuo assassinato de jovens em ações repressivas. Além disso, impulsiona a constante invasão por colonos e legitima seus progroms, protegidos pelo exército, contra palestinos. Gaza está há 16 anos bloqueada por todos os lados. Esse bloqueio se radicaliza com o cerco e bombardeio, estabelecendo periodicamente cortes de suprimentos essenciais, de acordo com a vontade da potência militar ocupante.

O castigo coletivo à população civil, condenado como crime de guerra pelo direito internacional, é prática essencial e frequente do empreendimento colonial sionista. Dias depois da expansão territorial israelense em 1967, o filósofo hebreu Yeshayahu Leibowitz afirmou categoricamente que Israel deveria se retirar deles, pois a alma das nações que exercem um poder colonial apodrecem progressivamente. Só se consegue justificar uma colonização reforçando uma ideologia supremacista e, consequentemente, desumanizando o povo colonizado. Em 2007, estive em Israel. Era o aniversário de 40 anos da ocupação e participei de uma manifestação contra a política colonial em Tel Aviv, a capital do país. Éramos menos de 200 pessoas. A alma da sociedade israelense apodreceu. Pude registrar, viagem após viagem, o racismo crescente e transversal dos israelenses. Não chamaram os palestinos de “animais humanos” após o ataque dos Hamas. Há décadas fazem isso nas ruas e os tratam como tais.

Quem tem visitado Israel nos últimos, seja qual for sua posição quanto ao conflito, com a existência de algo que podemos chamar de “dialética da segurança e sensibilidade”. Quanto maior é a sensação de segurança da sociedade israelense, graças à neutralização quase absoluta da capacidade de dano dos palestinos por obra de sua infraestrutura de “defesa” – muro segregador, aparato de inteligência, o domo de ferro que freia os débeis foguetes, assassinatos “seletivos”, diplomacia e colaboração colonial da Autoridade Palestina na Cisjordânia, etc.), menor é atenção que ela presta à situação dos palestinos. Menor é a empatia, menor é a pressão da sociedade para que o governo israelense encontre uma solução.

Tampouco há solidariedade ao povo palestino, é necessário dizer, por parte dos governos árabes, que foram normalizando relações com o Estado de Israel, apesar da situação apenas ter se agravado ao longo dos anos. Não parece despropositado que, nessa dialética, os palestinos pensem que os ataques são a única possibilidade de não serem invisibilizados em sua desesperadora situação.

Aqui, creio ser necessário afirmar algo, por mais óbvio que seja. Não há nada de essencial, ontológico, intrinsecamente cruel na genética de nenhum povo. Mas, sim, há movimentos ideológicos e formas de organização política que o são. As formações humanas são realidades históricas. Isso quer dizer que são processos históricos que engendram e enaltecem ou envilecem os grupos sociais que as encarnam. O Hamas é uma organização político-militar que não existiria, não fosse a inumana e cada vez mais cruel colonização sionista da Palestina. Essa é uma verdade indiscutível.

Sequer é necessário discutir a veracidade das investigações históricas que apontam que o governo israelense estimulou o surgimento do Hamas para confrontar a OLP e dividir o inimigo em grupos rivais. O que é inquestionável é que tornou Israel possível o crescimento da organização, especialmente ao minar de forma sistemática a Autoridade Palestina e frustrar toda a saída política para o conflito. O objetivo central foi, possivelmente, que se impusesse uma vertente particularmente violenta da resistência palestina que eclipsaria a violência colonial cada vez mais evidente, impedindo o fortalecimento da causa palestina em fóruns internacionais e na opinião pública.

Nenhuma organização palestina em sua história operou um ato semelhante ao do último 7 de outubro. Só é possível entendê-lo no contexto de um desespero absoluto desse povo e sua luta pela libertação nacional. Nos últimos tempos, bem antes do ataque do Hamas, as já devastadoras políticas do Estado de Israel foram recrudescidas significativamente: contínuos progroms de colonos fanáticos contra povoados palestinos nos territórios ocupados, aceleração do crescimento de colônias e expropriação de terras, incursões militarizadas e rituais judaicos em lugares sagrados ao islã como forma de provocação, emissão de leis e declarações oficiais supremacistas por parte do governo de extrema-direita de Israel, assédio a Haza e fechamento de todos os espaços para tratar do fim da ocupação e uma saída de autodeterminação. Nada está em negociação.

A tudo isso, é necessário somar a horripilante objetividade dos números. Nos jornais, é possível ler histórias de vida e familiares dos mortos israelenses. E praticamente nenhuma história que permita humanizar o sofrimento e a morte dos palestinos. Mas a única verdade é a realidade. A quantidade de mortos no conflito nos últimos dez anos, contabilizada pela organização de direitos humanos israelense B’Tslalem, comprova que o que existe entre palestinos e israelenses não é uma guerra, mas simplesmente um massacre. 95% dos mortos são palestinos. Entre eles, uma alta porcentagem de crianças. Talvez o leitor tenha outra sensação, porque na imprensa ocidental algumas mortes valem e aparecem mais do que outras… mas números são números.

Quando estava terminando o ensino médio na Argentina, ainda com memória bastante fresca de minha infância em um kibutz, pensei em continuar meus estudos em Israel. Ainda “amava meu país”, mas já era crítico de sua política. Assim, comecei a consultar conhecidos israelenses sobre como poderia fazer para estudar ali, mas não passar pelo Tzavá (serviço militar obrigatório de três anos). Havia opções, como começar a estudar e logo declarar objeção de consciência e se negar a servir o exército. Mas um amigo israelense me disse que não havia sentido em fazer isso. Desse modo, nunca pertenceria realmente a Israel, porque o exército era a coluna vertebral afetiva e cultural do país.

Ali, entendi algo. Para os israelenses, o serviço militar constitui de fato um ritual de passagem para a vida adulta e cidadã. É o momento em que deixam as casas de suas famílias e conhecem seus amigos de vida toda. É o lugar a que voltam a cada vez que são convocados da reserva, o que ocorre com certa regularidade. Essa conversa me ajudou a entender que, diferentemente do que ocorre na relação entre os palestinos e o Hamas, a identificação dos israelenses com a política colonial de seu Estado em armas tem um aspecto bastante estrutural. À exceção, obviamente, dos árabes israelenses, dos isentos por saúde, dos rabinos e dos que declaram objeção por consciência, praticamente toda a sociedade de Israel tem uma férrea educação militar e formação em violência armada. Acredita-se que o Hamas tenha 20.000 combatentes. Menos de 1% da população de Gaza.

Sou um militante pela paz justa entre palestinos e israelenses. No entanto, é central para mim desarmar e denunciar os discursos pseudopacifistas, que não são mais que uma encarnação da “teoria dos dois demônios”, bastante conhecida na Argentina. Falar de “pêndulo do terror”, como disse Jorge Drexler, é um exemplo entre outros de simetria reprovável e injusta de duas violências diversas. A violência palestina, ainda que em sua forma mais condenável, é um ato de resistência. Dizer isso não é romantizá-la: é ser descritivo. Trata-se de uma violência que está resistindo a outra coisa, a uma violência primeira e originária que iniciou e é a fonte cotidiana e contínua da violência do conflito. Essa violência originária terrível, que não é um pêndulo, é a da colonização.

Visitei os territórios ocupados pela última vez em 2016. As fotos que acompanham esse artigo são de minha passagem por Hebrón. Sabendo que era judeu (meu nome é Ariel, como o famoso e infame Ariel Sharón), palestinos abriram suas casas, contaram suas histórias e deixaram-se fotografar. A criança da foto sobre a parede de pedras sofreu uma tentativa de assassinato de colonos. Os adolescentes do terraço contavam sobre seus futuros impossíveis. Hebrón é uma cidade altamente disputada porque ali se encontra a Mesquita de Abraão, onde estariam os túmulos dos patriarcas compartilhados pelas religiões judaica e islâmica. Em 1994, Goldstein, um sionista fundamentalista, entrou na mesquita e assassinou 29 pessoas que estavam rezando. Nesta cidade vivem menos de mil colonos e mais de duzentos mil palestinos. As fotos de soldados e crianças foram tiradas quando presenciei como o Exército israelense protegia um provocador desfile de colonos pelas ruas do mercado palestino, o que se repetia todas as quintas-feiras. Era uma demonstração de que eles não dominavam apenas o bairro judeu, no coração de Hebrón, mas que toda a cidade lhes pertencia.

Em Gaza, a realidade é radicalmente pior. Os palestinos da Cisjordânia muitas vezes evitam opinar sobre os métodos do Hamas, dizendo que não conseguem saber o que fariam se estivessem sob o nível de opressão da Faixa. Se pensamos na sistemática tentativa de desumanização que implica o colonialismo israelense, buscando levar os palestinos a sua mínima expressão, a perseverança do povo resistente é realmente admirável. Gaza está há 16 anos sob bloqueio terrestre, aéreo e marítimo, com bombardeios constantes de civis, cortes no fornecimento de água, eletricidade, combustíveis e produtos essenciais. É comum dizer que Gaza é uma prisão a céu aberto. Mas é preciso acrescentar que é uma prisão em que não se respeitam os direitos humanos mais básicos. Gaza é um gueto. E estamos presenciando, em tempo real e televisionado, o processo de aniquilação desse gueto e de sua população. Os antepassados judeus, a quem os nazistas tentaram desumanizar nos campos de concentração, as vítimas de pogroms no leste europeu, os digníssimos insurgentes do Gueto de Varsóvia, hoje se levantariam indignados contra o colonialismo do Estado de Israel e o genocídio em curso. Uma vez mais, não em nosso nome.

Ariel Feldman é bacharel em Filosofia, fotógrafo e cineasta.

Publicado originalmente pela Revista Jacobin Latinoamerica, em 16/10/2023