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Colunas

Relato 08: “Tudo junto e misturado”

Que Loucura!

Coluna antimanicomial, antiproibicionista, abolicionista penal e anticapitalista. Esse espaço se propõe a receber relatos de pessoas que têm ou já tiveram alguma experiência com a loucura: 1) pessoas da classe trabalhadora (dos segmentos de pessoas usuárias, familiares, trabalhadoras, gestoras, estudantes, residentes, defensoras públicas, pesquisadoras) que já viveram a experiência da loucura, do sofrimento psicossocial, já foram atendidas ou deixaram de ser atendidas e/ou trabalham ou trabalharam em algum dispositivo de saúde e/ou assistência do SUS, de entidades privadas ou do terceiro setor; 2) pessoas egressas do sistema prisional; 3) pessoas sobreviventes de manicômios, como comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, e outras instituições asilares; 4) pessoas do controle social; 5) pessoas da sociedade civil organizada, movimentos sociais Antimanicomiais, Antiproibicionistas, Abolicionistas Penais, Antirracistas, AntiLGBTFóbicos, Anticapitalistas e Feministas. Temos como princípio o fim de tudo que aprisiona e tutela e lutamos por uma sociedade sem manicômios, sem comunidades terapêuticas e sem prisões!

COLUNISTAS

Monica Vasconcellos Cruvinel – Mulher, latinoamericana, feminista, escrivinhadora, mãe, usuária da RAPS, militante da Resistência-Campinas, da Luta Antimanicomial pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial (CLNMSMA) e Conselheira Municipal de Saúde;

Laura Fusaro Camey – Militante da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (RENILA);

Andréa Santos Miron – Mulher, feminista, apaixonada pelo Sistema Único de Saúde, por fazer trilhas e astronôma amadora; Assistente Social de formação pela Universidade Federal de São Paulo, pós-graduada em Saúde Pública, Saúde Mental e Psiquiatria; Militante pela Resistência / Psol – Mauá/SP, pela Coletiva Livre Nacional de Mulheres e Saúde Mental Antimanicomial, pelo Fórum Paulista da Luta da Luta Antimanicomial e Movimento Nacional da Luta Antimanicomial.

Se você quer compartilhar o seu relato conosco, escreva para [email protected]. O relato pode ser anônimo.

Por Silvia Nery, psicóloga arte-educadora

Em 2016, fiz um projeto de oficina de criação literária que foi aprovado pela Fundação Cultural Cassiano Ricardo (FCCR), em São José dos Campos – SP. A proposta foi executada, entre outros locais, no CAPS AD, numa virtuosa parceria entre Fundação Cultural e Secretaria Municipal da Saúde.

Consistia em realizarmos uma oficina de criação literária com um grupo de usuários do CAPS AD, interessados nessa atividade. Eu realizaria a oficina como arte educadora contratada pela FCCR, contando com a participação da psicóloga do CAPS, Clari Rennó, com quem tive uma parceria extremamente colaborativa.

O CAPS AD em que atuei tinha a participação somente de homens, sendo que o atendimento às mulheres era feito em uma instituição exclusiva para elas. A princípio, lidamos com a diversidade dos participantes, entre eles pessoas que gostavam de ler e tinham seus gostos variados, outros que pediram para participar apenas ouvindo, pois não achavam que teriam “dom” ou “capacidade” para escrever, o que a mim não pareceu de forma alguma um problema, pois toda maneira de participar seria bem recebida. Alguns participantes, inclusive, trouxeram a questão de não serem alfabetizados e se isso traria algum problema. A experiência já me havia mostrado, em realizações anteriores, que barreiras diversas poderiam ser quebradas para a realização de um processo literário entre pessoas a quem foi negado o acesso à leitura e à escrita. Um exemplo é a ampla criação e disseminação de saberes, entre contos e histórias, transmitidos por meio da oralidade nas nossas culturas originárias, indígenas, afro diaspóricas e mesmo europeias e do oriente médio. De modo que todos que quisessem participar seriam recebidos da mesma forma!

Em diversas ocasiões, trabalhando em CAPS, creches públicas ou parcerias com CRAS e CREAS, havia percebido alguns tabus impostos. Um processo de exclusão que considero estrutural em nosso corpo social, em especial quando se trata de comunidades de mais baixa renda, e que ocorre por caminhos diversos de crenças difundidas e aceitas como verdades pelo senso comum. Uma delas é essa sobre a palavra “Literatura”. Quando se fala em “Literatura”, “Cultura”, por exemplo, surge embutido nelas um viés de erudição e inacessibilidade que distancia e exclui grande parte de nossas crianças, adolescentes e adultos: “Isso não é pra mim”. Por outro lado, tínhamos no CAPS AD a crença, entre muitos usuários, de que eles não tinham, por causa do uso de drogas, a capacidade de concentração suficiente para ler um parágrafo sequer. Esses tabus fora TODOS quebrados!

Partindo desse contexto, começo a oficina propondo uma conversa na qual cada um poderia dizer de suas expectativas, como via a literatura e o que gostaria que lêssemos em grupo. A partir dessas falas, inicia-se um processo de leitura em grupo, uma experiência que eu tinha da minha própria adolescência, de leituras em grupo, onde podíamos compartilhar as emoções, as risadas e as dúvidas que os textos nos traziam. Não deu outra, escolhemos alguns textos para ler e o compartilhamento se tornou muito interessante, todos participando e se divertindo muito, quebrando os tabus de que literatura era coisa de eruditos e eleitos nesse mundo! Levamos, assim, o primeiro semestre todo lendo e nos emocionando com contos, causos, histórias, relatos de vida, histórias de infância, de tios e avós que contavam histórias de assombração! Descobrimos vários talentos de contadores de histórias natos, mestres do suspense, que nos deixavam presos para descobrir os desfechos dos causos. Outros tantos, mestres do humor, poetas e até uns com um gosto especial pelas mitologias. 

Depois de um semestre de descoberta da leitura, nosso propósito para o segundo semestre seria a dedicação ao processo de criação de textos que poderiam ser um relato de algo real, uma criação ou a reprodução de contos e histórias ouvidas na tradição oral. A criação poderia ser em forma de prosa ou poesia.

Após o intenso processo de leituras veio o processo criativo. Foi um mergulho na construção de textos. Lindo de ver e participar! Quem sabia escrever gravava o relato oral de quem tinha menos acesso à escrita e depois transcrevia o texto. Várias duplas se juntaram e, afinal, todos os participantes escreveram, no mínimo, duas histórias. 

A filha da Clari, Talita Rennó, uma profissional da fotografia que tem experiência com edição de textos, fez uma diagramação em forma de livro pra nós. Uma amiga que estava terminando a faculdade de publicidade, quando ficou sabendo do projeto, ofereceu-se para fazer as ilustrações de cada história, em uma linguagem gráfica alusiva à xilogravura característica da literatura de cordel. Desse modo, conseguimos criar um folheto em formato de cordel, tendo 2 histórias ou poemas de cada participante; cada história tendo uma ilustração feita pela Bianca Maeggi. Um primor!

A diretora do CAPS nos permitiu imprimir uma “tiragem” de 30 exemplares do folheto, que foi intitulado por seus autores, “Tudo Junto e Misturado”, na máquina xerox do CAPS. Foi um sucesso! Nossos autores todos muito felizes com sua produção. A Clari Rennó realizou um trabalho primoroso de suporte emocional para a realização de todo esse processo, tendo a perspectiva de que, muitas vezes, também os bons eventos nos afetam e desequilibram. 

Graças ao trabalho de equipe e ao empenho dos usuários, o resultado foi um sucesso e tivemos muita alegria naquele CAPS, sendo que cada autor levou um ou mais exemplares para casa e ainda conseguimos distribuir para os trabalhadores.  

No ano seguinte não conseguimos, por maiores que fossem os argumentos, dar continuidade ao projeto. Cheguei a ir, voluntariamente, ao CAPS, durante o primeiro semestre de 2017, momento em que fizemos um processo de revisão e aprimoramento dos textos junto com seus autores para fazer uma nova edição, que ficou pronta com a ajuda da Talita, a diagramadora. Mais que isso não conseguimos. O poder público parece não se interessar por experiências de sucesso, e esse é um debate fundamental.

O resultado desse trabalho é o Cordel “Tudo Junto e Misturado” que está concretizado pra todo mundo ver!

Meu nome é Silvia Nery, sou psicóloga formada na USP há 40 anos e há mais tempo que isso ativista na luta antimanicomial, com especialização em Teatro Educação pela ECA-USP, cantora, compositora e contadora de histórias.
Marcado como:
caps / psicologia